Mondovino Vs Sideways

Aos 16 anos, mais coisa menos coisa, defini para mim mesmo que, quando fosse suficientemente abastado e não precisasse de trabalhar, e chegado à crise de meia idade, rumava a Bragança e tirava o meu curso de enologia. A Universidade de Trás-os-Montes é a única com a referida licenciatura aqui no rectângulo e até ser rico e quarentão não tenho grande forma de me conceder tempo e espírito para me entregar à religião pagã. Tudo isto decorre de ter compreendido que há muito mais numa garrafa de vinho que fantasmas das sopas de cavalo cansado ou estatísticas do número de vítimas na estrada a flutuar. Para quem não aprecia vinho, não vale muito a pena tentar compreender. Palavras como terroir ou casta não passam, nesse caso, de sinónimos de Marte engarrafado. É como aquela desculpa feminina para o futebol como “22 homens atrás de uma bola”.
Para o comum dos portugueses (e lá estou eu outra vez a pressupor, mas contradigam-me se não estiverem de acordo), vinho, em sentido global, corresponde a duas realidades: umas quintas lá no Douro com uma paisagem catita e umas garrafas caras no hipermercado, e o tio Joaquim lá da terra que faz uma água-pé de matar castanhas à nascença. Possivelmente, ainda sabem que Bordéus tem “umas boas pingas”, mas a coisa morre por aí. Não sabem que os Estados Unidos da América são, actualmente, o maior player num mercado que se joga a nível mundial. Não sabem que o que nós damos como adquirido em qualquer casa, por menos de meia dúzia de euros, é vendido em Nova Iorque a 100 e 150 euros a garrafa em qualquer restaurante de toalha posta e velas na mesa. Não sabem que há uma indústria turística a promover uma multidão de terceira idade que percorre a costa da Califórnia para provar Pinot e Merlot a torto e a direito. Caramba, não sabem que há vinhas no vale de Napa, ou na África do Sul ou na Nova Zelândia, ou na Índia. Ora eis que surgem dois filmes para falar disto tudo: “Mondovino” e “Sideways”.
”Mondovino”, diz o autor, é sobre cães. Realmente eles estão lá, mas a realidade é que se veem mais uvas e velhos que canídeos. Filmado em digital, estilo Dogma 95 bem disposto, o documentário aposta em duas ideias. Primeiro, a de que existe a tentativa de manipular um mercado à escala global, não só através de marketing, mas sobretudo da manipulação química dos vinhos. Segundo, a de que existem dois lados da barricada, e que os americanos estão do lado do costume. Ora, quanto à primeira parte, parece que os nossos amigos do outro lado do atlântico estão apostados em fazer aquilo que uma das entrevistadas descreve como “vinhos-puta”: dão prazer imediato mas deixam-nos no segundo seguinte. Para os apreciadores, estamos a falar de baixo nível de acidez, muita baunilha, muito carvalho e pouca personalidade. Quanto à segunda parte, basta olhar para a cara dos Mondavi para perceber que aquela mania de controlar o mundo é genética e não olha a meios. Ou seja, não interessa o terroir, mas vender uns quantos milhões de garrafas de Opus One ao preço do ouro, e toda a gente acha o máximo. O documentário vale, como João Canijo dizia no fim da sessão a que assisti, pelas pessoas que lá estão. E como é feliz nas pessoas, nos olhares, no focinho dos cães, ça marche!
”Sideways” chegou a nomeado para óscar, mas ficou-se por aí. A receita é simples: pegue-se num frustrado de meia idade com sensibilidade acima da média, junte-se um actor idiota à beira do casamento, despache-se os dois para a terra das vinhas. Depois de marinar, deixe alourar uns dias de sexo desesperado do actor, junte uns copos de Pinot Noir em cenários turísticos e regue bem com imagens de vinhas. No fim, sirva-se com banda sonora minimalista e final de festa triste. O resultado não vai além do mediano. E porquê? Porque não se pode pegar na imagem romântica das vinhas e pensar que sai um filme do caraças. E, explicação derradeira, porque as vinhas da Califórnia não emanam nada de romântico. Para um europeu (e falo por mim) tudo parece forçado. Tudo denuncia a falta de História, a importação das castas, as salas de prova para turista. Todo “Sideways” perde aos pontos para meia dúzia de minutos em “The French Kiss”, comédia romãntica com Meg Ryan e Kevin Kline, por exemplo. Kline vestia a pele de um francês carteirista que consegue roubar um pé de vinha. Na sua terra, numa encosta por plantar e com a vinha na mão, Kline tem mais terroir na unha do dedo mindinho que todos os planos de copo na mão em “Sideways”. O “terroir” é como o fado: não é quem quer, mas quem pode.

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