Howl's Moving Castle (****)

Há vários tipos de pessoas no mundo (é uma frase brilhante para começar um texto). Há as que gostam de Cinema e as que não gostam. E atenção, a maiúscula é propositada. Ou seja, não vamos falar das pessoas que gostam de filmes. Essas são a esmagadora maioria. Agora as que gostam de Cinema já são bem menos (das que não gostam nem de uma coisa nem de outra não vale a pena falar). De entre as que gostam de Cinema, há as que gostam de Cinema de Animação e as que não gostam. Uma boa amiga minha, por exemplo, não compreende o conceito de Cinema de Animação. Para ela, vai tudo no saco de "Desenhos Animados". Mas estes estão para o primeiro como os telefilmes para o Cinema. Estas distinções, aliás, dão casos curiosos na história do cinema, como X-Files, o filme, que era um excelente episódio para televisão mas de cinema não tinha absolutamente nada (partiu de um equívoco, portanto). Mas voltando atrás, este texto fará muuuuuuito mais sentido para quem gosta de Cinema de Animação, e não de Desenhos Animados. É assim como ter óculos: quem tem progressivos não tem simples, quem tem simples não tem progressivos. E portanto falar de progressivos a quem usa simples não serve de muito. A não ser que o pitosga tenha interesse em ter progressivos, e aí podemos explicar as vantagens (este exemplo era óptimo se não estivessemos a falar de um produto necessário, cuja escolha de uso ou não uso não é grande). Ora, para os que usam progressivos vamos falar de umas lentes do caraças, para os que usam simples vamos falar de progressivos, se um dia quiserem pensar nisso... Ora, os que usam progressivas das boas (isto é, gostam de Cinema e de Cinema de Animação) sabem porque é que gostam. Não, não é pelos bonecos. Não, não é pelas cores. E não, também não é por ser uma boa forma de ter os putos entretidos a olhar pro boneco durante duas horas. É porque o cinema de animação (globalmente, agora com minúsculas) cumpre um dos objectivos do Cinema: o da criação de Imagem (mais uma vez, diferente da crianção de imagens). Ou seja, a manipulação imagética que está na base da constituição do filme, seja desenho 2D, programação 3D ou plasticina, cria, efectivamente, um campo estético que não existia. É tal como a diferença entre Cinema e Filmes. No Cinema falamos do cinema de Godard, Eastwood ou Cronenberg, nos Filmes nem sabemos quem é o realizador, só sabemos o nome do filme, dos actores, etc. Como é óbvio, há correntes, nomes, estéticas. E a corrente, chamemos-lhe assim, mais conhecida e forte do Cinema de Animação é a japonesa, verdade de La Palisse. Não falamos, amigos das não-progressivas, do Dragon Ball Z, mas de Akira, não de Heidi, mas de Blood: The Last Vampire, não de Pokemon, mas de Spirited Away. Falamos de Howl's Moving Castle, que em tuga deu um literal mas não ofensivo "O Castelo Andante" (Spirited Away tinha dado um idiota "A Viagem de Chihiro"). Falamos, no caso concreto, de Hayao Miyazaki. O senhor Miyazaki nasceu a 5 de Janeiro de 1941. Em 1963 começou a sua carreira de animador no estúdio Toei Douga. Depois de muito trabalhinho, fundou o estúdio Ghibli, referência hoje mitológica no Cinema de Animação. O senhor Miyazaki criou Princesa Mononoke em 1997. O senhor Miyazaki criou Spirited Away em 2001, para depois criar Howl's Moving Castle em 2004. Spirited Away é possivelmente o que, dos três, mais incorpora todas as premissas da corrente do cinema japonês que o senhor Miyazaki criou ao longo de décadas: desenvolvimento gráfico arrebatador, com uma definição de personagens principais de aparência frágil mas substantivos na acção, cenas aéreas a torto e a direito, aproveitamento da mitologia nipónica panteísta, uma obsessão privada por porcos, visão optimista sobre a vida, espelhada no desenlace dos argumentos e na tentativa de um fundo pedagógico (e não pedagogo). O senhor Miyazaki, distinguido este ano no Festival de Veneza, repete a dose em Howl's Moving Castle, se bem que de forma não tão perfeita (o que poderá ser explicado pelo facto do projecto não ser originalmente seu e só o ter assumido quando o realizador inicial o abandonou?). Howl é um feiticeiro jovem, com uma enorme importância no reino. Para fugir a inimigos criou um castelo que se move, qual locomotiva sem necessidade de carris e com pernas de galinha, alimentado por um pequeno demónio do fogo que sobrevive na lareira acesa. Quem está dentro do castelo roda uma maçaneta, abre a porta e está ora na cidade real, ora no meio do nada, ora numa ruazinha da zona histórica. Em cada localização Howl tem um nome diferente, em cada localização vende feitiços para diferentes situações, como uma mercearia. Na multiplicação de egos, Howl perde-se do seu e é apanhado por uma guerra entre nações. No meio de tudo há Sophie, alvo de feitiço alheio que a deixou como velha de nariz pontiagudo e costas dobradas. Nos filmes de Miyazaki nada é o que parece: novos parecem velhos, alter egos pululam por todo o lado, rios parecem ruas, demónios parecem fogo de lareira. A estrutura dos argumentos baseia-se sempre na ilusão como factor primordial, em como essa mesma ilusão gera angústias, e essas angústias são superadas pela consciencialização da ilusão e pela recuperação de um estado "puro", inicial, "correcto". Sobre as antagonias dentro do seu trabalho, dizia o senhor Miyazaki em Maio deste ano que "this film is intended for a sixty years old little girl". E, portanto, é uma óptima oportunidade para as meninas de 60 anos que andam por aí deixarem as lentes fundo de garrafa e comprarem umas novinhas progressivas, para abrirem bem os olhos e fazerem aquele conhecido movimento de pescoço: "sim, sim, é isto".

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