BES Photo 2005

NOTA PRÉVIA: mais um post comprido, recomendado para as senhoras que consideram que o tamanho importa e para almas temporalmente espreguiçadas.

Fui ver BES Photo 2005 há umas duas semanas, antes de se saber quem era o premiado. E dos quatro, e isto pode parecer duvidoso dizer agora, o trabalho de José Luís Neto é, efectivamente, o melhor. Dos quatro fotógrafos a concurso, dois pareceram-me muito maus e os outros dois muito bons, pelo menos a avaliar pelas imagens expostas no CCB (que lá ficam até 5 de Março). Primeiro, os maus. António Júlio Duarte tem meia dúzia de fotografias inócuas, a piscar o olho à tendência freak da noite, como se bastasse apontar a lente a table dancers. Aliás, as fotos são de tal forma desprovidas de conteúdo que nem se compreende qualquer intenção, mesmo que fosse chocar. Não têm dimensão estética, não criam qualquer ambiente, reduzem-se a existir (mais valia não existirem mesmo). Não é Duane Michaels ou Diane Arbus quem quer. Por outro lado, Paulo Catrica tem no CCB imagens de paisagem e arquitectura industrial perfeitamente banais. Lá está, são raros os casos em que edifícios ou paisagens urbanas têm uma dimensão estética imanente, que não tenha que ser construída pelo olhar do fotógrafo (senão éramos todos grandes Cartier-Bresson). O olhar de Catrica é praticamente nulo. Ainda assim, compreende-se uma intenção de captar ou criar um espaço estético para além do objecto representado, mas perfeitamente por cumprir. Do lado bom, temos então José Maçãs de Carvalho e o premiado José Luís Neto. Maçãs apresenta a democracia das imagens, trabalho dividido entre um vídeo, uma montagem vídeo de fotografias e fotografias de oferta. O vídeo tem uma actriz, jovem, sob um fundo preto, que por gestos diz "as imagens são as palavras dos analfabetos". Os gestos começam como uma linguagem organizada (linguagem gestual) e evoluem para algo mais caótico, acompanhado por uma atitude mais agressiva da actriz, sendo que são três as formas de apresentação da frase. Para além do óbvio que a frase em causa transporta, o vídeo é interessante na medida em que se serve de um dispositivo imagético para querer afirmar algo consubstanciado em texto. Mais: quer impor, através da agressividade emprestada, uma noção de democraticidade "das imagens", paradoxo. Para além disso, reforça a transformação do gesto em imagem e obriga a uma participação do espectador, na medida em que o vídeo não tem som e obriga a uma interpretação de gestos e leitura de lábios. Mais à frente, a montagem vídeo de fotografias contém imagens fortes, com duas por plano, um após outro. As duas imagens são montadas horizontalmente uma sobre a outra, de forma a comunicar reciprocamente, quer formal quer substantivamente. Para além disso, cada plano comunica necessariamente com o anterior, obrigando uma vez mais o espectador a um duplo trabalho de construcção de sentidos sobre as imagens, que vai para além da análise da imagem isoladamente. Ao lado, em caixas de cartão, o autor oferece cópias de algumas dessas imagens, devidamente emolduradas. O espectador é convidado a levar uma consigo. Maçãs leva a questão da democracia ao ponto limite, retiranto à fotografia a sua dimensão de arte e inserindo-a no plano do objecto transportável e oferecido a qualquer um, além de obrigar a um desvio de olhar por parte do visitante. Este é compelido a deixar de ver a fotografia enquanto criação artística de alguém com um estatuto diferente do seu, para passar a vê-la como objecto emoldurado e oferecido por alguém no mesmo plano do seu. Ao equilibrar os planos e retirar as imagens da parede, tornando-as transmissíveis e transportáveis, Maçãs marca uma posição final sobre a questão da Democracia da Imagem, e fá-lo não através da simplificação estética (as imagens não têm nada de fáceis) mas através da manipulação das formas de apresentação do dispositivo e do equilíbrio de estatutos entre fotógrafo e espectador. O vencedor do BES Photo, José Luís Neto, aposta noutro tipo de abordagem radicalmente diferente mas com pontos de contacto. O trabalho de Neto exposto no CCB divide-se em três partes: as séries Irgendwo, 322475 e fur Claudia. Esta última não me motivou grande impacto, sinceramente. O fotógrafo trabalha sobre a eterna questão da folha em branco, tentando partir para a abordagem da questão da passagem do tempo. Já em 322475 a questão é mais interessante. Neto parte de um pequeno negativo original de Joshua Benoliel, feito em 1913 e pertencente ao Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, para criar enormes ampliações. As imagens originais eram de presos políticos da Penitenciária de Lisboa, o resultado são traços a preto e branco do que já foram faces, como que personalidades atrás de vidro martelado. Se do ponto de vista estético as imagens são positivamente interessantes, do ponto de vista de proposta teórica ficam aquém da mera manipulação do dispositivo fotográfico, ou antes apelam a um nível de especulação exagerado por parte do espectador. Irgendwo é, assim, o melhor conjunto de fotografias da BES Photo 2005. Na parede, as fotografias não são maiores do que o tamanho de uma unha, inteligentemente emolduradas em formato maior (ou seja, com uma consideravel área branca à volta da fotografia em si). Do ponto de vista do objecto representado, na esmagadora maioria não se percebe. Mas este trabalho tem vários focos de interesse. Senão vejamos. Primeiro, Neto, do ponto de vista global, aborda a imagem na sua possibilidade de desnivelamento de escala, ampliando (em 322475) ou reduzindo (em Irgendwo) aos limites a imagem original. Cria, assim, uma dimensão imagética que nada tem a ver com o original, mas que também não parte da sua manipulação estética, objectivamente falando. Ou seja, as imagens são meramente ampliadas ou reduzidas, não transformadas. O que quer dizer que o objecto fotografado está lá da mesma forma em que foi captado. Isto faz com que o autor retire à fotografia a sua dimensão referencial e explore o seu potencial imagético real. E fá-lo da forma mais original e difícil, não mexendo na imagem em si mas no seu tamanho, servindo-se da forma e não do conteúdo. Segundo, o espectador é, naturalmente, obrigado a invadir o espaço do objecto fotografado. Ou a tentar. Em imagens do tamanho de uma unha, o primeiro impulso, e natural, é querer compreender o que lá está, o que é aquilo. E na prática, muitas vezes acaba por percepcionar o que lá está, de forma vaga. O que faz com que construa para si uma representação do fotografado. Eu não vi o que lá está, eu penso que vi. Ou vi o que quiz ver. Esta separação entre o objecto fotografado e a sua percepção pelo espectador é motivada pela manipulação do tamanho levada a cabo pelo fotógrafo. Terceiro, Neto aproveita sempre imagens de arquivo, cuja dimensão estética ou artística é ausente. E portanto, ao modificar o seu modo de apresentação, e com isso inseri-las numa dimensão artística, está a reinventar as possibilidades da fotografia enquanto arquivo, para além de estar a revelar a potencialidade imagética que esse arquivo tinha mas que estava oculto. Tudo isto é bem mais que suficiente para o BES Photo 2005 ter um vencedor justo.

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