Dia 1: Barcelona

[2 de Julho] No avião, ligo o laptop. Coloco os headphones e Daniel Blaufuks conta-me a história dos judeus que, fugidos à guerra, decidiram ficar em Portugal. Poucos. A voz do fotógrafo não vai mais além, pois que se desce. Da janela, de súbito, uma massa de água anuncia-se para depois desaparecer. Pouco passa das quatro e meia da tarde e o taxista perguntará daí a minutos por Cristiano Ronaldo. Como se os temas fossem universais dentro de um taxi. O calor anuncia um fim de tarde sonhado em filmes e brochuras por estrangeiros de escaldão orgulhoso. Plaça de Catalunya e a multidão nasce onde começa a Rambla, disforme, poliglota, de camisola de alças e um leve torpor sobre a pele, que não chega a suor. Um homem de ar concentrado na realidade empunha um enorme letreiro sobre a fúria de Deus. Mais abaixo, dois diabos pintados riem à gargalhada de forma natural, como se a personagem só tivesse uma forma de mostrar os dentes e não precisasse de motivo. A Plaça Reial abandonada a si mesma. Uma velha sentada num banco espera pelo tempo fresco. Empregados solícitos agitam-se na entrada de restaurantes olhando o arco por onde hão-de passar clientes ávidos, leitores de guias que falam num jantar tardio. Subo o Carrer de Férran e uma música com cheiro a autonomia desce em sentido contrário. Na Plaça de S. Jaume dezenas de idosos dão as mãos em grandes rodas e dançam uma enorme valsa colectiva, lenta, torpe, orgulhosa, como se não houvesse outro sentido para a vida para além do sangue que lhes corre nas veias. Contorno a catedral por trás para descobrir uma fachada coberta, em face lifting. À porta um segurança de aspecto sul-americano impede a passagem a jovens com os ombros descobertos, fechando os olhos a ombros de maior idade com iguais alças veranis. O pecado tem idade, ou a tentação é jovem. Em frente, uma velha de cara fechada aguarda pelo passar do tempo do alto da sua cadeira de rodas e do seu aprumo, maquilhagem, brincos de pérola, cabelo arranjado em suaves canudos para senhoras de respeito, rugas de orgulho catalão. Atravessando a rua a multidão dissolve-se na ditadura dos percursos pré-determinados e as ruas ganham ar de domingo urbano. No mercado de Santa Caterina, duas mulheres de sensualidade pacífica e terrível conversam ao balcão do restaurante, enquanto cinco empregados circulam com guardanapos na mão e olhos no relógio pendente, ao fundo. Duas crianças passam de bicicleta. As duas mulheres sorriem levemente, com as palavras nos cantos dos lábios, de forma sexualmente transmissível. Irão para casa, quando o domingo acabar ou o calor deixar de fazer sentido.

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