Há-de vir o dia

Há-de vir o dia. Tu entrarás de forma cansada, curvada sobre o calor lá fora, enquanto os pássaros regurgitam o Verão. A casa fria, uma brisa infiltra-se na cozinha, folhas espreitam nas janelas desinteressadamente. Virá o dia em que não mais partilhamos as dores do mundo e o egoísmo vence, penhoradamente, sobre a noite, com pó em fundo, em jeito de lamento doce, sobre tudo. Tu entrarás concomitantemente à espera, e a temperatura acolhe-te como uma língua, breve, levemente empoleirada no tempo, a ruminar avatares de humilhação. A mala rapidamente esquecida depois do início, um vapor que se imagina criado há minutos, a máquina de lavar como um monstro velho à beira da morte arrastando-se um pouco ainda, um copo singularmente junto mas não perto do canto da mesa, um precipício evitado mas consciente, uma gota seca. Há-de vir o dia em que a criança que nunca quiseste se apodera da potência e imagina-se, finalmente, longe, deixando-te envelhecer nos fins de tarde, como as pontes, ou mesmo os pelos que se agarram às cordas dos instrumentos, de tampa fechada sobre o voo. Entrarás e tudo se sublima nos passos na escada, a dura pausa, e depois um restolhar de presença na engrenagem da porta. Virá o dia e não mais o cansaço te impede de entrar, olhar em volta para não cair em passos perdidos, reconhecer o imaginário das flores secas ao fundo, e manter o silêncio sólido da ternura.

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