Manhãs perdidas

Dez horas e olho o rio. Dois homens de barba sardenta descansam as canas e fumam um sol mortiço. Pouco se move. Conduzo na linha ténue da água e a vida alheia parece verde, mediterrânica na luz. À porta de uma igreja uma mulher de idade mais aparente cabeceia de sono, desequilibrada no degrau. Uma tristeza profunda apodera-se-me das mãos e renuncia a velocidade. Com a manhã condenada, dou por mim a folhear Godard de forma distante. Um torpor familiar devolve o livro ao seu espaço de aluguer. Isolamento sonoro. Uns metros depois e Becket abandona-se numa capa às mãos de Cartier-Bresson. Não tenho fome. Recordo as letras no espaço em que estavam há apenas alguns dias, de forma doente, como que inspeccionando a marcha das estantes durante a semana. Perto, uma mulher compra um dicionário de forma agressiva. Como se a definição das coisas fosse um trauma conhecido à partida.

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