Museu Colecção Berardo

Meses depois, e a visita. E expectativas que se cumprem. Mas vamos por partes. Neste momento, o CCB expõe um conjunto de obras da colecção de Joe Berardo. Sabemos que o conjunto exposto está longe da totalidade, mas ainda assim ficam algumas ideias. Primeiro que tudo, a de que não existe uma ideia de exposição, antes uma de conjunto ou agrupamento. Dividida por estilos, ou associações de conceitos, ou núcleos, a exposição tem no piso 0 uma série de trabalhos sob a égide "Surrealismo e Mais Além". E é, definitivamente, a pior parte do espólio, tal como está. Com uma única linha condutora - a do figurativo - misturam-se Breton com Pollock, Picasso com Matta ou Warhol. Estão Cesariny e Cruzeiro Seixas, mas misturados com Miró e Ernst. Todos os quadros parecem desamparados, e sobressai claramente a noção de posse mais do que a de colecção. Berardo parece aqui ter as obras, mas não enquadradas num espírito de reflexão sobre si mesmas, ou sobre o movimento. Ter por ter. Excepção feita, aqui, às fotografias de Fernando Lemos (já vistas em Sintra), em sala própria e que se sustentam por si mesmas, sem ligações extra. E nota sublinhadamente negativa para Head, de Jackson Pollock, cujo Expressionismo Abstracto não cabe de forma alguma frente a Picasso ou perto de Miró. O quadro de Pollock é, aliás, um dos trabalhos menores, e nada justifica a sua inserção para além do "querer mostrar" de Berardo. No piso -1, a coisa mantém a mesma linha de rumo, ainda que com surpresas positivas. Em Figura Reinventada, uma sala acolhe The Barn, de Paula Rego, e Oedipus and the Sphinx After Ingres, de Francis Bacon, ao lado de trabalhos desinteressantes de Pierre Klossowski ou Eric Fischl. Em Poder da Cor, guarda-se toda uma sala para Cabrita Reis e mostra-se Frank Stella, ignorando Malevich ou Rothko (terá Berardo algum?). Em Pop & C.ª naturalmente surgem Lichtenstein e Warhol, ao lado de Lourdes Castro (!). E depois algo que justifica a visita a Belém: a secção Autonomia, que, supostamente, tem como linha de partida o facto das artistas expostas serem mulheres (!). Por sorte, o que vem à tona é muito mais do que isso, revelando uma dimensão organizada sob o chapéu da vanguarda ou do risco. É aqui que estão diversos trabalhos de Helena Almeida ou Cindy Sherman. É aqui que se descobre o empenhamento, em finais da década de 70, de Ana Mendieta, ou a frontalidade do real de uma desconhecida (confesso a ignorância) Aino Kannisto. Repare-se que, aqui, todas elas alicerçadas em imagem fotográfica ou vídeo. É aqui também que está devidamente alojado o extraordinário projecto Balkan Barroc, de Pierre Coulibeuf, que só por si compensa a deslocação. Apresentado como instalação, tratam-se de dois filmes e uma fotografia, todos na mesma sala. Os vídeos correm em simultâneo, em paredes diferentes mas na mesma orientação de profundidade, de forma a que um seja pano de fundo deslocado do outro. Em ambos, a figura central de Marina Abramovich, performer de body art nascida em Belgrado. Em imagem de fundo, um loop de menos de um minuto com a jugoslava a ser conduzida num Caddilac, algures na Europa de Leste. No outro, uma longa metragem de uma hora com a biografia ficcionada da mesma, onde concorrem imagens surreais criadas como fantasmas, percorrendo uma vida imaginária de uma artista. O resultado é extraordinário, quer pela liberdade de Marina nas suas pressuposições, quer pelas margens visuais a que tanto ela como Coulibeuf não se reduzem. O filme traça uma vida mental de uma artista potencial, que se exprime pelo corpo e com o corpo, mas não se extingue no mesmo. Ano a ano, o vídeo é uma peça de arte, profundamente pensada e livre, onde se criam imagens na mesma proporção da sua profundidade simbólica. A presença de Abramovich é esmagadora nos mais diversos sentidos, e o projecto de Coulibeuf é uma lança em África numa exposição à deriva, no mar de dinheiro e insanidade de Berardo. Absolutamente a não perder para mentes inquietas.

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