NOTA PRÉVIA: O Animatógrafo, como não podia deixar de ser, está presente no docLisboa 2006 como espectador. O festival vai na sua quarta edição, já se sente confortável na Culturgest e cresce, mais uma vez, a olhos vistos. O programa é vasto e variado, e o tempo curto. Como é mais do que óbvio, o Animatógrafo não vai ver tudo, nem perto. Vai tentar estar numa sessão diária, pelo menos. É uma amostra da totalidade dos documentários que estão a passar, e perfeitamente subjectiva, não foi seguido nenhum critério para além do mero interesse pessoal do autor destas linhas. Assim sendo, esta semana é inteiramente dedicada ao docLisboa. Novamente...
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"No fim do mundo" é uma curta documental, mais do que um documentário. Assumido claramente pela realizadora Mariana Gaivão como um exercício (realizado no âmbito universitário), é um trabalho feliz. Em 13 minutos seguimos um conjunto de crianças do bairro do Fim do Mundo (Cascais) que participam num workshop de fotografia. No começo, Mariana dá o contexto através da memória de uma barraca ardida e seis pessoas carbonizadas. A partir daí temos imagens de imagens, fotografias felizes de crianças literalmente do fim do mundo. Muito bem construído na sua curta duração, o trabalho procura sempre arriscar nos planos e uma cumplicidade com os personagens que lhe traga a felicidade nas imagens. E consegue-o, seja na tristeza com que Tânia olha para a camera, seja na fotografia do mar que vemos de seguida. E pelo meio há o Fim do Mundo, o bairro, visto pelas crianças que o habitam, e que centram as suas imagens nos que as rodeia, desviando o olhar de tudo o resto. Mais um caso que prova que a felicidade no documentário procura-se. Bem conseguida estreia de Mariana Gaivão.
Já "Fora da Lei", de Leonor Areal, tem bem mais fôlego. A realizadora, também autora de um blog caro a este (DocLog), seguiu as mediáticas Lena e Teresa após a sua aparição na vida pública portuguesa, comungando das suas dificuldades e dramas. O casal homosexual que saltou para os media com o pedido de casamento em 2005 assume-se como personagem central do filme de Areal, mas não o canibaliza. Mas vamos por partes. No que diz respeito à história, "Fora da Lei" dá a ver duas realidades, uma surpreendente a outra não. Primeiro, é claríssimo ao fim de alguns minutos que Lena e Teresa em momento algum mediram o impacto que a sua decisão de confrontar o Estado português teria nas suas vidas. Quando Teresa fala com Fernanda Câncio ao telefone, é real o estado de desespero e estupefacção em que se encontra. Nunca as duas mulheres terão pensado que se a vida já era difícil, mais seria a partir dali. Segundo, também rapidamente se percebe que Teresa e Lena são um casal real e convencional. Podem não sê-lo na sua orientação sexual, mas são-no nas formas de estar, na comunhão de preocupações ou mesmo nas irritações mútuas. Percebe-se isso quando Teresa utiliza uma faca para quebrar o gelo do congelador e afirma não ter usado outra por saber que Lena se iria irritar. Aquele tom de voz, aquela forma de pensar e de reagir são comuns a qualquer casal português, são reconhecíveis. E aqui o documentário de Leonor começa a ser feliz no conteúdo. Em termos de atitude, Leonor Areal tem uma limpeza cristalina. A realizadora, que não poucas vezes se debruça sobre as formas e substâncias do cinema, consegue uma posição de cumplicidade mas sem nunca se abraçar à militância. Peça transparente da vida das duas mulheres (excepto quando as interpela directamente), a câmera de Leonor procura sempre o ponto de fuga do triângulo. Não ver as coisas como Lena e Teresa as vêm, mas vê-las como algo externo as vê. Não admite para si uma posição de imparcialidade (senão o próprio documentário perderia a sua razão de ser), mas não puxa a si também as dores de parto alheias. E isto é feito quer pelo lado do conteúdo como da forma. Formalmente, Areal demonstra uma inteligência amadurecida. Todo o filme é pontuado por uma banda sonora emocional mas clara e por imagens genéricas de ambientes urbanos ou paisagens concretas que permitem nunca sair do campo do documentário e entrar pelo da reportagem. Muito é filmado pela janela de um comboio, como se tudo se tratasse de uma viagem, como se a realidade presente do casal não fosse mais do que o antes e o depois de algo. Nunca o filme se dramatiza para além dos factos que contém, ou do olhar que o espectador queira criar para si. Tudo isto faz com que "Fora da Lei" seja uma peça de cinema documental equilibrada, inteligente na construcção e no olhar, e com margem de liberdade deixada a quem vê. O que não é pouco.