A minha palavra favorita da semana IX



Fodido

A verdade é que

A verdade é que há alturas na vida em que estamos completamente reféns uns dos outros.

A minha palavra favorita da semana VIII


Lentidão

Música de domingo VI



Lamb, Softly, in Fear of Fours, 1999

Portishead ou a redenção

Tempo demais depois, o regresso. Antes de dia 27, com presença assegurada no Coliseu, os Portishead deixam ver o primeiro vídeo de Third, o album a ver a luz do dia em Abril. É, agora, Machine Gun que mostra a face de um dos grupos mais decisivos dos últimos vinte anos. É, agora.


décimo segundo regresso

era breve. a manhã começava na leitaria da rua de campolide, antes do pão esfarelado aos patos, e os sábados apareciam no gastar tempo usual da infância. haviam sons de mar escondidos nos velhos nas paragens de autocarro. ao calor do início de tarde o sabor a rebuçados para a garganta assomava-se à porta, e o sonho de futuro desvanecia

décimo primeiro regresso

Hora do Monstro I - 1964

Música de domingo V



Alison Goldfrapp, A&E, in Seventh Tree

décimo regresso

apenas o amor é real

A minha palavra favorita da semana VII


Entropia

Das mulheres dondoca

Uma mulher dondoca é um urso pardo. Leve e ligeira, o espécimen tem profunda alergia a pó, próprio e alheio. Usualmente divorciada ou casada em papel, a dondoca habita largas partes dos centros urbanos, nomeadamente as linhas costeiras a sul das cidades ou no sentido da foz dos rios, onde a temperatura permite evitar transportes públicos ou mini-mercados. É comum formarem grupos de apoio mútuo, nomeadamente de cigarro na mão e alegando direitos a pensões vitalícias de outras espécies, os homens-camelo. Por vezes evidenciam uma óbvia falta de propensão para outras línguas, mesmo pensando o contrário e tentando demonstrá-lo com broches em carros a alta velocidade, circulando em scuts. Uma mulher dondoca preocupa-se com as unhas dos outros, de forma beata, como se os cotos fossem o local de maior concentração de religiosidade, tirando o buço. Com frequentes tiques de origem nervosa, nomeadamente o de enfiar os dedos compridos no cabelo como dentes de tigre-dente-de-sabre e redimensionar, assim, a cabeleira clara na direcção de Caxias, as dondocas trabalham arduamente na rua, percorrendo lojas em busca de fiscais da ASAE, ou constituindo-se como alternativa a estes na dimensão estética do social-lojismo. Uma dondoca nunca é brega, mesmo que passeando na Feira do Relógio às 10 da manhã na companhia de um homem-camelo ou de seu enteado, de cabelo mal cortado à chapada pelo cabeleireiro amigo da tia. A raça progride hoje como nunca, nomeadamente em países em vias de desenvolvimento com hortas a ladear vias rápidas e hortas rápidas a canalizar as vias públicas. Uma mulher dondoca é uma couve selvagem.

A verdade é que

A verdade é que me sinto profissional e estruturalmente derrotado.

Persépolis (*****)

Antes de ser um filme, já Persépolis era uma banda desenhada, saída directamente da cabeça de Marjane Satrapi. Mas será, talvez, na tela que a genialidade da iraniana ganha uma enorme respiração e um corpo absolutamente fantástico, pleno de cinema em todas as suas dimensões, perfeito no que se propõe. A história não é simples e está profundamente enraizada na história do próprio Irão, país absorto numa república islâmica contemporânea que se atirou de cabeça para um teocentrismo como fuga do Xá. Marjane, a pequenina Marji, percorre assim todo o filme tanto como personagem como voz verdadeira da verdadeira Marjane. Pelo meio uma criança descobre os Iron Maiden entre o vexame do véu, ou os Abba entre os sorrisos marotos das colegas na última fila das carteiras na escola. Persepolis, enquanto filme, é não só uma abordagem fidedigna e na primeira pessoa à evolução drástica de um país na encruzilhada entre o ocidente e o oriente, mas sobretudo a visão específica sobre o andamento da História e o impacto que a mesma tem em cada um. Marjane, a viver com os pais no Irão ou emigrada na Europa, a dormir na rua em Viena ou escondida num apartamento em Teerão, é um ser completo, profundamente inteligente e porém humano, que não sede ao racionalismo nem olha para si mesma, para trás, com uma luz de desdém ou moral. Antes prefere assumir as dificuldades em lidar com os outros e com o outro criado à sombra de uma sociedade radicalmente matizada por dispositivos de controlo visíveis. De uma ternura desarmante, Persepolis ultrapassa claramente o cinema de animação enquanto estilo e assume-se como uma peça de cinema frontal, humilde nos seus pressupostos e que cumpre tudo o que afirma, de forma cabal e esteticamente sem mácula, num dos grandes motivos para ir ao cinema este ano.

Música de domingo IV


If This Hat Is Missing I Have Gone Hunting, Get Well Soon in Rest Now, Weary Head! You Will Get Well Soon

Barcelona

Dois anos depois e a mesma sensação de conforto. Duas senhoras de idade conversam brandamente numa esquina, entre compras. Uma mulher jovem passa de bicicleta. As ruas enchem-se no final de tarde, como se a vida fosse aqui e o resto não passasse de um ocupar dos dias, esconsos.

A minha palavra favorita da semana VI


Soupa

Imagens do demo X



David J. Nightingale

England (*****)


Em tempos, escrevi aqui sobre An Oak Tree. O espectáculo na altura apresentado no Pequeno Auditório da Culturgest, em Lisboa, era um exercício brilhante sobre o texto teatral e a forma de comunicação com um público, que claramente funciona como elemento da construção do espectáculo. Nele, Tim Crouch convidava todas as noites um actor diferente para contracenar consigo, lendo um texto até ao momento desconhecido. Ora, no agora apresentado England, também ele na Culturgest mas na Galeria 2, mantém-se o desígnio do risco, mantém-se uma visão participada do público, mesmo que não participativa, mas Crouch leva tudo mais longe e cria um exercício fabuloso de interacção texto-actor, almejando os grandes valores humanos individuais da contemporaneidade. A estrutura é, em si, simples: dois actores, um homem e uma mulher, funcionam como guias de uma exposição real (no caso, a de Frances Stark) mas sobretudo de uma virtual, a da sua vida, a da vida de uma mulher desesperadamente amante de um homem. Mas ambos, homem e mulher, são voz única de um mesmo personagem, alter ego recriminado nas palavras para uma plateia que não sabe lidar com o momento, com os silêncios súbitos e os apelos para que "vejamos" o que está exposto. E pelo meio, entre afirmações de amor terrível, de realismo psicótico, a ideia de uma doença liminar e da necessidade de um coração, que num segundo momento, numa sala já sem quadros e apenas com vozes, se confronta, mediado, com o que resta do antigo portador, uma mulher estranha de língua. O resultado de tudo isto é um espectáculo absurdo na sua qualidade enquanto texto e enquanto forma de representação do pensamento, alterado, procurando na forma de uma exposição uma visita guiada ao íntimo mental não só de alguém exposto como de alguém construído, em Lisboa ou em Londres, em Osaka ou numa galeria, alguém apresentado enquanto manifestação verbal de algo percebido por outros na sua intimidade de expectadores. O desempenho de Crouch é extraordinário, o de Hannah Ringham para lá de competente, e o britânico, paulatinamente, começa a afirmar-se como personagem fulcral de uma nova visão do teatro na contemporaneidade, quando todas as formas pareciam inventadas.