Porquê

Como é que se explica o que era Auschwitz a uma criança na idade dos porquês?

- "Papá, o que era aquilo?"
- "(glup) Era um campo fechado onde faziam mal a umas pessoas"
- "Porquê?"
- "(e agora?) Porque havia uns senhores maus que não gostavam dos outros, mas agora já não há"
- ""Porquê?"
- "(f***) Porque depois vieram uns bons e prenderam os maus"
- "Prenderam todos?"
- "Sim, prenderam todos"
- "Mas faziam mal aos outros porquê?"
- "(c*****) Porque eram racistas"
- "O que é isso?"
- "É quando não se gosta de alguém por ser de outra raça"
- "Porquê?"
- "(m....) Olha, Joãozinho, tá a dar o Contra-Informação, olha o Bobi e o Tareco, olha!"

Ani




Começo agora a descobrir "Educated Guess", o album de Ani DiFranco nomeado para os Grammy deste ano (entretanto já lançou outro esta semana, "Knucles Down"). E, para já, uma recomendação para os mais audazes: oiçam "Grand Canyon", manifesto de "Educated Guess".

Vinho global

Há alguns anos que cheguei à conclusão que tenho graves problemas mentais (e tenho consciência deles, o que não ajuda). Um deles é ver bastante televisão (dos outros irei falando). Hoje em dia é chique e politicamente correcto dizer "eu não não vejo muita televisão, não tenho tempo" ou "não tenho paciência" ou ainda "não há nada de jeito para ver". Tudo são mentiras, o que é facto é que o fenómeno televisivo provoca medo de contágio e é considerado como manifestação cultural (no sentido sociológico do termo) menor. Ou seja, na prática o "não tenho paciência" é um "sou superior a isso, leio Bocage ao deitar e vejo Bergman ao pequeno-almoço." O meu problema mental faz com que não tenha medo, e, mais do que isso, goste de televisão. Até do mau que por lá anda. Confesso despudoradamente que vi os Batanetes algumas vezes, da mesma forma como quem vê Santana Lopes a falar da incubadora: com troça, a ver o barco afundar.
Tudo isto a propósito de uma garrafa de vinho no Canadá. A SIC Noticias tem o espírito de missão de emitir "Mar Português", um magazine (é bonito, este termo, lembra-me o Paris Match dos anos 80) sobre os conterrâneos espalhados pelo globo. Na sua maioria são peças sobre a comunidade tuga em Newark, uma vez que os meios audiovisuais estão presentes no local e não é necessário enviar ninguém para gastar umas centenas de contos de reis para falar com o Zé Manel do talho em Manila (e que interesse teria o Zé Manel e as suas aventuras nas varandas de luz vermelha). Muitas vezes também chegam peças do Canadá, com o dono do restaurante "Chiado", em Toronto, à porta a reclamar em português contra as leis do Canadá. E foi precisamente um desses donos que me chamou a atenção ontem. Ao que parece, o governo canadiano, ou um de natureza regional, decidiu que os clientes dos retaurantes têm direito a levar a sua garrafa de vinho de casa. O restaurador (não Olex) apenas pode cobrar por tirar a rolha. É uma ideia peregrina, há que admitir. Alguns donos de restaurantes admitiram mesmo para a camera que vão cobrar consoante "a qualidade do vinho", dando ares de escansão veterano.
Para escrever este post, quiz saber mais sobre a tal lei. A peça limitava-se a filmar donos de restaurante como quem filma funcionários da administração pública portuguesa a quem é negado o direito de sair às quatro da tarde. E agora gostava que me explicassem como é que se procura por uma lei fait divers na zona de Toronto na Internet. Já tenho uns anecos disto, e gosto de pensar que o Google tem poucos segredos para quem faz dezenas de pesquisas por dia, mas dou-me como derrotado. Procuram por quê? "Wine Toronto law"? "Law beverage canada"? "Toronto restaurant law"? Vão ao paperboy, linkam para o Toronto Star ou o National Post e fazem pesquisa específica? Vão ao site da SIC e procuram pelo "Mar português"? Esqueçam. Das duas uma: ou o restaurante "Chiado" de Toronto precisava de publicidade à carne de porco à Alentejana, ou não vale a pena pesquisar na internet. "Não tenho paciência, não dá nada de jeito".

Honestidade

"Os portugueses que confiaram em nós em 2002 não têm razões para deixar de desconfiar."

Pedro Santana Lopes

Meg Stuart

Tive a felicidade de conseguir ver, há uns anos, "Mazurca Fogo" no CCB. Pina Baush deu-nos a honra de descer ao extremo da Europa e admirar a ideia que tem de nós, dos nossos hábitos, do excesso de açucar no café e das deambulações próprias por quem transporta as colinas às costas em Lisboa. Raras vezes consegui entender o corpo como forma de expressão. A dança sempre me surgiu como a forma de arte de maior lonjura, pelo que as limitações físicas do saco de ossos que carregamos me intrigam ao ponto de atracção/repressão.
Depois de Baush, e no âmbito de uma breve cruzada no DN, tive a felicidade de ver "Pixel", de Rui Horta. Na prática, "pixel" era um contentor fechado plantado no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, onde dois seres se degladiavam com uma tela de premeio, onde eram projectadas imagens em tempo real. O público resumia-se a poucas almas bem-aventuradas e foi talvez o projecto que mais me entusiasmou nos criadores de dança contemporânea portugueses até hoje.

No dia do Sporting-Benfica, deixei o cachecol na loja (não tenho nenhum) e apresentei-me como agente visualizador de "Forgeries, Love and Other Matters". Ou seja, Meg Stuart na Culturgest. Novamente poucos, novamente espaço fechado por uma plateia metálica que se abismava do palco encurralando Stuart e Lachambre. Ao canto, um gajo de ar chinoca limitava-se a mexer os braços em volta de um campo magnético e a sussurar imagens para movimentar sons e provocar os movimentos de Stuart ao longo de um relvado de alcatifa. Lachambre correu nu por sobre uma enorme cicatriz que se alojou na perna, saberá ele quando. E no fim de contas, Stuart assume o corpo em registo verdadeiramente real como proto-objecto de transmissão. Há uma base, mas quase tudo parte do som do momento. Quase todo o som parte do movimento do momento. E como se Marx ainda habitasse na face ligeiramente pornográfica de Stuart, toda a dialéctica do espaço assumiu contornos de história, por quanto a história se faz em salas corrompidas pela ausência e não nas multidões que abandonam as praças. "Ele diz espaço, ela pensa tempo, ele percorre a curva, ela segura a linha, ele lambe a pele, ela aponta que é falsa" (Myriam Van Imschoot). Atenção: vão passar por Gent, na Bélgica, em Março.

Mensagem anónima



Atenção, sou comunista, como anónimos ao pequeno-almoço...

Tenho inveja deste texto

“Tinha eu vinte anos e tinha passado dois anos seguidos – pela primeira e última vez na minha vida - sem ver ou ouvir pedaço de Portugal. A viagem de comboio desde Manchester tinha durado 48 horas. Em Vilar Formoso, um revisor de bom coração tinha tido pena de mim e da minha figura e levou-me para um compartimento vazio de 1ª Classe onde eu finalmente adormeci, depois de ver, pela janela, no primeiro quilómetro do meu país, uma lua cheia, gigantesca e redonda e brilhante que eu juraria ter surgido só ali.

Cheguei de madrugada à estação de Santa Apolónia (tão perto do Convento da Madredeus onde viria a assistir, mais de uma década depois, aos primeiros ensaios dos Madredeus) e o que me fez chorar tão inesperada e vergonhosamente não foram os abraços nem as lágrimas das famílias que se viam reunidas ao longo daquela gare: foi o barulho – o barulho que levei tempo a perceber ser a música da minha língua, das vozes da minha cidade.

Seis meses antes, durante uma semana inteira, tinha sofrido uma crise definidora. De repente, em plena universidade e Inglaterra - e apesar de partilhar uma casa com mais quatro ingleses - quase não conseguia falar inglês, apesar de ser esta a minha língua materna e primeira.

Não sei porquê, alguma força misteriosa me levou a procurar o modesto andar onde se situava o Departamento Português: um único corredor com cartazes turísticos da Nazaré, de Viana do Castelo, de Óbidos. Aproximei-me de uma porta entreaberta de onde vinham sinais de vida e, apesar de ser um muito prestigiado departamento, o que ouvi, escondido junto à parede, parecia mais próprio de um centro de línguas. Ouvi dizer, muito devagar, com uma pronúncia muito inglesa: “Hoje vai chover e portanto vou levar o meu guarda-chuva.”

Desatei a chorar, sem domínio nem fim. Era como se pudessem ficar com Sá de Miranda, Camões, Cesário Verde, António Nobre, Pessoa, todos os fados de Amália: nenhumas palavras me tinham tocado tanto. É que eu julgava, até àquela altura, ser um cidadão do mundo, livre de sentimentalismos ou preconceitos nacionais, indiferente às cercanias e manias locais e inteiramente dado à cultura universal, que a nenhum lugar pertencia, por pertencer a todos os que havia.

Ou, posto em termos mais tristes, ainda não sabia que eu era português. Mas, graças a Deus, fodi-me. Era.

A partir daí, foi como se tivesse encontrado – e que se lixassem as limitações acompanhantes – a família que me faltava para além da outra, mais pequena e mais feliz, que eu já tinha. Nesse momento decidi que havia de ser a saudade o tema da minha tese de doutoramento e da minha vida (conclusão pragmática que revelava e aproveitava a minha costela inglesa e seria porventura impossível ocorrer-me naquele mesmo momento se eu fosse um “verdadeiro” português) – e assim foi e fiz.

Recuei e fui depositar a mala na estação para poder passear um bocadinho. Fiz caminho para o rio – logo ali – e a primeira coisa que vi foi um fragateiro, numa falua do Tejo a fazer as abluções da manhã. Estava a beber uma caneca de latão de café e (gostaria de inventar outra actividade mais lírica, mas foi realmente esta em que ele estava abstraído) a cortar as unhas dos pés, com uma toalha minúscula e grotescamente multicolorida à volta do pescoço. E lá vieram as lágrimas que, não sei como, tinham sobrado – talvez por ser o corpo humano composto por 80% de água…

Falo destas coisas, importantíssimas para mim mas de pouco interesse para os outros, porque, depois de 25 anos seguidinhos a viver em Portugal (tal como os primeiros 18), julguei já estar imunizado a reacções histéricas daquele tipo, apesar de ter sido bastante feliz.

Adoro a música dos Madredeus – não é segredo para ninguém – e houve muitas canções deles que me comoveram e continuam a comover seriamente. Mas não sou pessoa dada a choros (a não ser, comedidamente, com certas canções da Amália, de Billie Holliday ou Miles Davis). Odeio chorar; dá cabo de mim; desmancha-me; faz-me sentir indefeso e à nora; tolda-me; confunde-me durante muito tempo depois.

Com a pressa destas coisas, pus a tocar o “Faluas do Tejo”, a ver se despachava uma apreciação do disco que se apresentasse. Julgava-me já veterano dos Madredeus (para mais tendo a sorte de ser amigo do peito do Pedro Ayres), embora já antes me tivesse escaldado com essa presunção.

Mas, mal comecei a ouvir a “Rainha do Mar” (ainda tive tempo de pensar mecanicamente que ainda faltavam nove canções), senti as palavras cantadas pela Teresa esgaravatarem-me o cérebro e a alma, espalhando as pedras e fósseis que lá encontraram para abrir caminho, criar casa e lá aninharem-se mesmo no meio, na parte mais quente. E não é que desatei a chorar como naquele dia de 1977 na estação de Santa Apolónia? É.

Por julgar-me mais sábio do que naquele tempo tão moço, fiz um intervalo em que me deixei chorar no silêncio, por ser (inglês ou masculinamente) tão resguardado e cobarde nas emoções. Pelo sim, pelo não (com a desculpa de precisar de ajuda para perceber certas palavras), fui buscar a minha mulher para me acompanhar.

De nada serviu – é capaz de ter sido pior. Há umas muito poucas canções primorosas e imortais que evocam Lisboa (algumas dos Madredeus) mas, depois de ouvir “Rainha do Mar”, compreende-se que Lisboa é apenas um pano de fundo – o céu da gaivota de Alexandre O’Neill; a colcha amarela de David Mourão-Ferreira – para emoções humanas universais.

“Rainha do Mar” é inteiramente sobre Lisboa – o que Lisboa foi e não se sabe se (em que medida?) é ainda ou continuará a ser. Seria indecoroso da minha parte falar do que o poema de Pedro Ayres Magalhães tão enfaticamente consegue omitir, tal é a força elegíaca mas vivíssima (agora, aqui, connosco) que substitui o rol de memórias históricas e sentimentais que cada ouvinte fornecerá com os pormenores que mais lhe falam.

É essa a generosidade – e é esse o génio – da canção. Ninguém pode saber e basta que cada um julgue (por misericórdia) que sabe de si. É o carácter não-definidor e não-definitivo da canção – a extraordinária abertura que consegue levar a cidade inteira e Portugal inteiro com ela – que a torna tão comovente e eterna.

Por uma deliciosa e sem dúvida acintosa perversão no alinhamento – um trabalho inigualável nos discos dos Madredeus que é raro ver justamente apreciado, mesmo pelos mais fiéis e entendedores – o transtorno causado por “Rainha do Mar” é seguido por uma canção que, de todas quantas ouvi em língua portuguesa, considero ser a mais bonita e verdadeira cantiga de amor de todas: “Fado das Dúvidas”. Contém um verso que ficará: “E nunca sei como é que estás”. O segredo são as palavrinhas “é que”. Reproduzem, como faziam Irving Berlin ou Ira Gershwin, a nossa maneira particular de falarmos e de nos preocuparmos. É isto o que as pessoas dizem: não “Como estás?”, como é vulgar nas canções, mas “Como é que estás?”

Mesmo esquecendo a língua, canções enormes como “All The Things You Are” de Jerome Kern e Oscar Hammerstein II, ou “My Funny Valentine” de Richard Rodgers e Lorenz Hart, ou “I Get Along Without You Very Well” de Hoagy Carmichael e Jane Brown Thompson, não têm, mesmo assim, a mesma sincera ambiguidade; a mesma quebrante incerteza. Quando é do amor real entre pessoas de carne e osso que se trata, a única coisa certinha a que nunca se chega é a uma conclusão.

E lá redesatei a chorar, agora acompanhado pelas lágrimas da minha mulher – embora, desta vez, fosse um sofrimento suavizado – graças a Deus - pelo pasmo diante tal beleza musical. À primeira oportunidade, ela levou-me o CD para o escritório dela, onde ouviu a canção vinte ou trinta vezes seguidas, como é hábito feminino quando não aguentam a comoção, a ver se passa com a repetição e interiorização.

Em casas de Fado; em festas do “Avante”; em cozinhas e salas de concerto, o “Fado das Dúvidas” será cantado por longos anos por quem tenha o jeito ou a vontade de cantar. Tal como a “Maria Lisboa” (?título correcto? ) de David Mourão-Ferreira e Alain Oulman cantada por Amália, o facto de Teresa Salgueiro cantá-lo milagrosamente não inibirá ninguém.

Não se pode falar em melhores interpretações numa cantora tão abençoada mas, mesmo descendo (ou subindo) a considerações técnicas de natureza puramente vocal, se alguma canção mostra tudo o que Teresa Salgueiro consegue fazer neste momento (de “timing”, ritmo, enfatização, timbre, amplitude), é este “Fado das Dúvidas”. Por agora, pelo menos…

A ambiguidade da canção – tão parecida com a verdade sentida – é reforçada por uma melodia que não é triste nem feliz. Antes as duas coisas, com um arranjo genial (aparentemente simples) que faz sobressair – portuguesmente no sentido pleno e universalista de António Vieira – evocações do Tango mais sublime.

Nunca a saudade, a esperança e o desejo - e aquela tão nossa resignação arrependida que acha, no próprio arrependimento, a maneira de talvez alcançar a redenção amorosa de que precisa - foram tão habilmente casados. Que pena Teixeira de Pascoaes não estar vivo para poder ouvir materializado o sonho ambicioso que tinha para a sensibilidade portuguesa!

“Faluas do Tejo” é um disco felicíssimo. A outra maneira, mais empírica, de dizer “ambíguo” e “aberto” é dizer “completo”. Está aqui o Brasil – finalmente fruiu, por exemplo, a absorção reversa, agradecida e reverente da Bossa Nova, sem prejuízo para os tecidos internos, por muito colonial ou imperialmente tingidos que tenham sido.

É como se os Madredeus tivessem feito, como portugueses de Portugal, aquilo que os brasileiros, cabo-verdianos, angolanos e os outros povos com que profundamente nos cruzámos, fizeram espontaneamente, sem complexos, por estarem seguros das culturas que tinham e, sobretudo, por estarem inteligentemente interessados em produzir boa música, viesse de onde viessem as influências.

Já vi que, por não me poupar, já vai longa de mais a encomenda que me fizeram. Mas outra apreciação não seria nem justa nem possível. E assim só vou chegando à terceira canção – “Adoro Lisboa” – que, sendo muito lisboeta, tem muito de Bossa Nova, da autêntica, com cheirinhos e temperos andaluzes muito clássicos e impecavelmente tocados.

“Adoro Lisboa” é outra grande canção, desde a coragem de revalorizar o depreciado verbo “adorar” (tão nobre!) à generosa abébia que oferece àqueles distraídos que poderão ver “adoro” como uma expressão queque, pondo-os logo de sentido com as palavras portuguesíssimas (ou latiníssimas) “Quero-lhe bem”.

Trata-se de uma canção-lista, na tradição de “You’re The Top” de Cole Porter ou “Foi Deus” de Alberto Janes mas, ao contrário daquelas, não é rebuscada nem pretende impressionar com truques retóricos. Pedro Ayres Magalhães sempre teve um enorme talento musical e lírico mas este é o disco em que ele ficou em paz e à vontade.

Arrisco-me a dizer que seria impossível escrever estas letras sem ter, pelo menos, quarenta anos de vida intensa. Permitiu-se assim a poesia mais difícil, que é a corajosa e simples, já sem qualquer necessidade de afirmação. Pode escrever um verso perfeito como “vinho e sardinhas no Verão à beira do rio”, que é verdade eterna e não podia ser dito com tão poucas letras por alma menor. Ou: “Adoro Lisboa e sei que há muita gente que adora também”. (E sabes bem que não é mentira, rapaz!)

Quando somos mais novos, fazemos questão de sermos os únicos que sentimos uma coisa: “É meu! É meu! É meu!” E esta atitude também produz maravilhas. Mas o escritor que, na expressão etérea de Pedro Homem de Melo, “sobe ao povo”, é capaz de escrever o que sentem os outros. E é por isso que “Rainha do Mar” e o “Fado das Dúvidas” me fizeram chorar tanto: éramos tantos de nós a cantar que mais um não faria diferença e, com um pouco de sorte, passaria sem comentário.

Vai já tão extenso o elogio que me vejo obrigado a chamar a vossa atenção (sim, como se fosse preciso…) para apenas duas outras canções que, no contexto da obra dos Madredeus, assinalam novas partidas e futuros ancoradouros, sacrificando, para isso, por exemplo, o arroubamento lírico de o “Cais Distante” ou o enlevo musical, absolutamente luso-brasileiro de “O Canto da Saudade”. É uma canção que uma (ou muitas) das grandes cantoras brasileiras tornará dela de uma assentada, não tanto apesar, como por causa da maravilhosa interpretação original da Teresa).

A primeira dessas duas largadas é “Faluas do Tejo”, que dá o título à colecção. Tal como tenho feito até agora, abstenho-me de minimizar a cantiga através da evocação de dados concretos da memória portuguesa – embora suspeite que tenha sido a palavra “falua” que preparou a minha crise de choro, ao fazer com que me invadisse a memória, perdida há quase trinta anos, daquela madrugada em Santa Apolónia e do marinheiro que, numa fragata bem vivinha e ondulante - embora enquadrada em terra por um cemitério de carcaças de barcas antigas que já tinham dado o que tinham para dar, já meio-afundadas no areal malcheiroso e quase preto – vi entregar-se à tarefa, em nada particularmente alfacinha ou impossível de encontrar noutro país, de arranjar, com maneirinho alicate, as unhas dos pés.

Bem sei que uma falua – a palavra chegou-nos dos nossos mouros – não é bem uma fragata, mas pouco interessa, porque até podia ser um cacilheiro ou um moliceiro ou um barco rabelo. A partir de agora, com a música dos Madredeus, não é a precisão que importa: é o precisar. Atingiram a universalidade. Em Istambul, uma canção como “Faluas do Tejo” navegará, sem esforço, sobre o Bósforo.

As canções dos Madredeus já não dizem (se é que alguma vez disseram): “Esta é a minha pátria – Portugal – e esta é a minha cidade – Lisboa.” Ou então dizem mais – mas tanto, tanto que imagino qualquer outro cidadão, de qualquer outro país, a sentir e a dizer “Até aceito que sejam à partida, mas desde já vos aviso que não conheço nem Portugal nem Lisboa e que, para mim, eu oiço é. E a minha pátria e é a terra onde nasci e a rapariga ou o rapaz que amei e a lua que vejo e as pedras que conheço e o céu que me guarda e leva a casa, quando me perco”

“Faluas vadias (…) em tardes perdidas, que eu nunca esqueci …” Não é preciso ser-se Einstein para se imaginar, com a mesma força, juncos do Mar de Pérolas da China. Ou que as “velas ao sol” tragam a qualquer alma sensível, em qualquer ponto de planeta onde haja água, através do encantamento desta música e desta voz, os mesmos “quadros de infância” e a saudade doce mas falsamente esperançada que voltem ao lugar onde, em pequenino, se viram e gravaram.

“Lá de Fora” poderá ser a única canção resolutamente portuguesa e liricamente intransmissível – mas duvido. Não o será pela letra: antes será pelo toada gingona e quase bairrista deste belíssimo fado corrido que suspeito só poder ser plenamente compreendida, em toda a tristeza e todo alegre, irresponsável abandono que mostra tão descaradamente, por quem seja de Lisboa. Embora os restantes 99%, mesmo para os mais obtusos forasteiros, esteja disponível.

Tal como todas as outras canções, é universal. Mas, o picadinho das guitarras e o ritmo insolente poderão requerer algumas noites perdidas em Alfama e, apesar do brilho cintilante da letra, a Teresa (pela primeira vez que tenho presente) parece entregar-se completamente à Lisboa que é dela de todas as maneiras que Lisboa pode ser de alguém, esquecendo (magnificamente!) o resto do mundo.

Já mãe e mulher, Teresa Salgueiro, a par do incrível aperfeiçoamento vocal (fruto de muito trabalho, bem sei, mas à mesma cortador da respiração), não deixou de ser o rouxinol mais estonteantemente bonito do conto de Andresen mas tem acrescentado camadas de cotovia, de céu aberto e, neste caso, da lua de Alfama, que parece sempre (não me perguntem como) aluada por ela própria e, em vez de envergonhada, orgulhosa e arisca.

É uma grande fadista a Teresa (coisa rara nas grandes cantoras, partilhada apenas com Amália). E é uma grande fadista sem mais qualificativos e, se quase sempre escolhe envolver esse dom nos muitos outros que tem, aqui, em “Lá De Fora” fez o favor (a nós lisboetas) de se esquecer dos demais. É caso para agradecer, porque nunca mais morre, mesmo que nunca mais se repita.

Digo isto embora, do ponto de vista literário e técnico, não houvesse, de facto, outra maneira perfeita de corporizar uma canção como esta, com versos impagáveis como “o espírito alegre de certo vinho [de] que eu gosto” e não obstante o já vasto espectro interpretativo (e mesmo, em termos dramáticos e políticos, representativo) da arte vocal dela autorizar as maiores licenças, podendo ter simplesmente ocorrido que achou a forma mais impressionante e eficaz de transmitir toda a força – e mais alguma – da canção.

Só resta dizer que “Faluas do Tejo” é a obra dos Madredeus que, quanto a mim pelo menos, não só tem os mais sublimes arranjos (comedidos, rigorosos, utilíssimos, com a simplicidade difícil dos mestres) como é, de longe, o mais bem tocado. É um tratado de guitarras; um prazer que nos deixa estarrecidos, tal é a mestria técnica e criativa; a aparente facilidade de um contentamento tão esbanjador e perene que cada arte se desprende mal se executa, voando para se oferecer pura e inteira e nova a quem a ouve.

Nunca ouvi, num contexto de música popular, guitarras tão bem tocadas (ou bem gravadas) - salvo talvez na introdução de “Something Stupid” de Frank e Nancy Sinatra; num ou noutro disco de Paco de Lucia ou nos melhores momentos de Roddy Frame/Aztec Camera. Nem tão-pouco ideias tão originais - como, por exemplo, o proveito fantástico do que parece ser um orgão Hammond, subtil mas vigorosamente celebrado; reduzido a uma essência não tanto enfática como reticente, para maior efeito poder surtir.

Este tal órgão Hammond é sempre apresentado com uma distância à partida proibitiva mas, como em todas as aplicações inspiradas, ficamos convencidos que todos os órgãos Hammond, em todos os discos passados e futuros – seja qual for o chamado “tipo” de música” - deveriam ser obrigatoriamente situados da mesma maneira.

Sendo-me permitido misturar duas línguas os Madredeus conseguiram, tão cedo numa carreira particularmente trabalhosa, passar do “Ora ouçam lá” ou “Olhem para mim” para a universalidade do “Eu bem vos ouço” ou do “Here’s looking at you” de Bogart ou de Sinatra.

“Faluas do Tejo” é um abrir de olhos; uma revelação interior do que nos rodeia e nos falta; um milagre que pertence, milagrosamente, tanto a quem o ofereceu como a quem o presencia. É a música como partilha mágica, que não é menos deles por se tornar tão profundamente de cada um que a ouve e, ao mesmo tempo, de todos nós. Por muito que mudemos, a música dos Madredeus, enquanto dormimos, já mudou – para que caibamos quando acordamos – antes de nós.

“Faluas do Tejo” é a música de um mundo onde já vivemos e havemos de viver durante muito tempo."

Miguel Esteves Cardoso, sobre "Faluas do Tejo", o novo álbum dos Madredeus, a lançar no início de 2005

(breve) revista de imprensa

Tenho o péssimo hábito de comprar e ler jornais. Durante a semana é mais um "folhear", mas ao fim de semana é mesmo o "ler" real. Por entre imagens do que já foi Banda Aceh, a imprensa portuguesa (a de referência, DN, Público e Expresso) consegue transmitir o surreal em que este país se tornou, seja com visões chamemo-lhes "curiosas" das questões, seja apenas transmitindo o "curioso" que já lá estava. O que se segue são excertos, pedaços e retalhos do Público e DN de hoje, que me obrigaram a conter o riso para não me engasgar com a bica:

-> "No primeiro encontro dos candidatos do PSD por Coimbra com a comunicação social, Zita Seabra afirmou ter aceitado este desafio por guardar em si "o bicho da política" e por entender que é nesta altura de "crise económica e social" que os cidadãos têm o dever de "não ficar apenas de fora, a criticar." – Público, pag. 12

-> "Os partidos políticos podem gastar até 7,374 milhões de euros na campanha para as legislativas de Fevereiro, mais do dobro do que puderam despender nas anteriores eleições, em 2002." – Público, pag 14

-> "A Nova Democracia vai apresentar durante a campanha eleitoral para as legislativas a proposta para uma nova Constituição para Portugal" – Público, pag. 14

-> "O ministro da Defesa, Paulo Portas, afirmou ontem, no Porto, que o grupo finlandês Patria foi excluído do concurso para aquisição de blindados para o Exército e para a Marinha por razões de rigor jurídico. "Quando a lei diz que se tem de entregar propostas até às 16:30 e a proposta é entregue às 17:07, que quer que lhe faça senão que exclua para cumprir a lei?", questionou o Ministro. (...) Os finlandeses argumentam que o atraso na entrega da proposta se deveu a um acidente, algo que a lei classifica como "justo impedimento". – Público, pag. 15

-> "O ministro da Defesa Nacional anunciou ontem, no Porto, o investimento de 600 mil euros na recuperação dos cemitérios e talhões onde estão sepultados militares portugueses, designadamente em países de África e Timor." – Público, pag. 15

-> "Submarino americano encalhou no Pacífico: o "USS San Francisco" encalhou cerca de 350 milhas a sul da ilha de Guam, enquanto se encontrava debaixo de água. Veio depois à superfície e encaminhou-se para terra, aparentemente sem estragos no reactor." – Público, pag. 16

-> "Soldados da ONU continuam a abusar de jovens africanas: (...) O pagamento dos serviços sexuais prestados pelas adolescentes ia de dois ovos a cinco dólares por encontro, sendo algumas das vítimas órfãs abandonadas e muitas vezes analfabetas." – Público, pag. 19

-> Manuel Monteiro: "Tenho claras suspeitas de que o meu telefone esteja sob escuta" – DN, pag. 9

-> "Schwarzenegger propõe ‘revolução’ na Califórnia: (...) E para resolver a questão dos medicamentos caros, propõe que sejam dados aos cinco milhões de californianos sem seguro de saúde cartões de desconto, que lhes permitiriam adquirir os medicamentos aos preços praticados no Canadá, evitando importações ilegais." – DN, pag. 14

-> "Inês de Castro tem apoio forte do Governo: (...) No total, o Ministério vai apoiar as comemorações com 450 mil euros", DN, pag. 30

Need to coment?

'05

Tomei a decisão de concorrer aos Jovens Criadores 2005, para ver se arranjo mais uma frustraçãozinha....

Maxi

Parece que o Glorioso decidiu contratar um jogador chamado Maxi qq coisa. Para quando um Mini Milk, ou Corneto de Morango?

Silêncio

Confesso que não sabia dos três minutos de silêncio ontem levados a cabo a nível europeu. Acabei por saber à noite, no telejornal, com as reportagens feitas sobre centros comerciais a meia luz e gente parada à porta da Notre Dame. Confesso que mesmo que tivesse sabido não sei se cumpriria, são sempre eventos muito hipócritas. Mas enfim... De qualquer forma, as peças de TV deram para rir durante um bom quarto de hora. A SIC foi até Bragança, filmar o centro de saúde, a escola, etc. As razões e reflexões durante os três minutos tiveram várias variantes:

A estupefacta: "Realmente não estava nada à espera, tinha ouvido na rádio, mas como estamos assim tão longe de Lisboa... Nunca esperei que, prontos, as pessoas aderissem, mas como foi assim tb fiz." (senhora no centro de saúde)

A existencialista: "Nestes três minutos reflecti sobre a fraqueza da condição humana. Não somos nada, as nossas acções não servem de nada." (aluna do 12.º na escola)

A política/conspirativa: "Estes minutos deviam servir para os nossos políticos pensarem no que andam a fazer" (senhor no jardim)

A contestária/vigilante: "Lá na Câmara Municipal não fizeram, continuaram a trabalhar, não têm respeito nenhum!" (senhor na rua)

A mental: "Pois, não fiz, estava aqui a servir estes senhores, pois é, mas lembrei-me de manhã, é como se tivesse feito!" (empregada de esplanada)

Este país se não existisse tinha que ser inventado...

Vou para casa



Sexta-feira levantei-me à mesma hora de sempre. A rotina, tomar duche, sair, apanhar o mesmo comboio (vazio), tomar o mesmo pequeno almoço no mesmo local (vazio), entrar na empresa (vazia) à mesma hora. Trabalhei como normalmente, telefonemas, material a chegar, papéis em cima da mesa, o aquecimento ligado. Almocei sozinho, por entre escombros de gente. Saí, como usualmente, mais de uma hora depois do encerramento. Fechar estores, desligar o aquecimento, arrumar a mesa. O comboio para casa vazio. A RTP transmitia um documentário sobre dinossauros, ligo quando um cometa atinje a terra e gera uma onda de destruição que pôs termo ao Cretácico. Cozinhei sozinho para mim mesmo, enquanto já eram mais de 120 mil mortos oficiais. Jantei camarões de Madagáscar comigo mesmo, enquanto Acabado Silva dava umas estaladas no bébé da incubadora improvisada do Contra. Adormeci ao som dos The Gift numa Alcobaça gravada para encher hora noticiosa, acordando com foguetes de pouca dura. Uma chamada, duas SMS, "sim, obrigado, para ti também, adeus". Li o jornal até às 2 da manhã, sobre a cama, para me deixar adormecer com a espertina a rezar feita beata.

Em Beijing ainda é 2004. Os rituais que marcam a passagem do tempo são fenómenos culturais enraizados no mais íntimo pessoal das sociedades, antropologicamente e socialmente estudados, assumidos como manifestação necessária à organização mental, motivando a gestão de expectativas que conduz a conduta da maior parte dos seres humanos. Mais do que isso, a definição de períodos de tempo de natureza organizativa (semanas, meses, anos), ainda que baseados em noções científicas da interacção da Terra com o Sol, assumem contornos de necessidade em termos económicos, burocráticos e organizacionais para um funcionamento social mínimo com o própósito de evitar a violência (no sentido abstracto e lato do termo).

Um ano podia ter 364 ou 366 dias. Seria igual. Na China ainda é 2004. A morte não sabe contar.