Mulheres levadas da breca XII


Patricia Petibon

China, França

O meio dos festivais ou ciclos de cinema em Portugal dificilmente foi mais activo do que na actualidade. Esta semana chegam notícias de mais duas iniciativas que o provam, e de forma cabal. Primeiro, a Festa do Cinema Francês apresenta-se na sua 9.ª edição e parece maior que nunca. Serão nove salas a nível nacional, três secções e um Prémio do Público, num evento desta feita alargado a Lisboa, Porto, Faro, Coimbra e Almada. Na prática, serão, diz a organização, 45 longas-metragens, 36 das quais nunca estreadas em Portugal, e muitas das quais passaram por Cannes ou outros festivais internacionais. Em termos de organização, e para além da Secção Principal que compreende 25 longas, a Festa surge este ano com "Paris-Lisboa", uma secção com 10 filmes rodados nas respectivas cidades, e "Cannes em Portugal", uma homenagem à Quinzena dos Realizadores do conhecido festival francês, e onde pontuam outros 10 filmes inéditos entre nós. A apresentação oficial será a 15 de Setembro, no Instituto Franco-Português, mas já se sabe que a Festa começa a 2 de Outubro, em Lisboa, e encerra a 2 de Novembro, em Faro. Noutro registo, a Zero em Comportamento, que tem no IndieLisboa o seu evento de proa, continua a parceria com o Museu do Oriente e organiza em Setembro (até 5 de Outubro) um ciclo dedicado ao cinema chinês. Com sessões no auditório do referido museu, a iniciativa mostra seis filmes de produção recente, olhando para uma China contemporânea à procura do seu lugar. Dos projectos agendados, destaca-se Grain in Ear, o vencedor do Prémio de crítica internacional no Indie2006, e sobre o qual tivemos oportunidade de escrever então (ler aqui). De resto, a avaliar pelas sinopses, estaremos atentos a The Red Jacket e Blackguard Quiangzi. No ano que se vê a China em todo o lado, puxada pelos Olímpicos, bom sentido de oportunidade da Zero e da Fundação Oriente, sobretudo por mostrar, certamente, uma China muito diferente da do fogo de artifício de Pequim.

Segurança e o seu contrário

São neste momento 20:28h e o Jornal da Noite da SIC ainda não largou os assaltos, roubos, violência e afins. Os assaltos da noite passada já foram em restaurantes da periferia de Lisboa, onde estavam ainda clientes e proprietários. Churrasqueiras, onde os meliantes levaram, inclusive, a carteira do cliente. O PGR vem mostrar os músculos, como lhe compete, enquanto o Ministério da Administração Interna lança o Secretário de Estado numa posição securitária, para o lado legal da coisa. A "onda", desta feita não mexicana e não em qualquer estádio de futebol, assim obriga. São 20:31h, e a SIC martela. Se há questão que surge aos olhos do público como de interesse público é a da segurança, ou da falta dela. E portanto os media cavalgam. Agosto dá jeito. Agosto, Agostinho, mês rei da "estação xoné". Antes das oito, na SIC Noticias, alguém revelava uma verdade escondida: o volume de crimes violentos, assaltos e etc, está longe do valor, por exemplo, de 2006. Longe, para baixo. Tudo isto me traz à cabeça uma história, também ela não desvelada. Na minha infância, corriam os belos anos 80, era muito comum o suicídio na linha do comboio, nomeadamente na linha de Sintra. Todos os dias a RTP lá estava batida para cobrir a coisa, o carril, a pedrinha onde o tipo tinha caído. Até que a CP fez um pequeno acordo com a então única TV, ao abrigo da qual a RTP se comprometeu a evitar a cobertura noticiosa de suicídios na linha. E por artes mágicas eles desapareceram. Desapareceram mesmo, a partir daí as formas de chegar ao fim da linha passaram a ser outras na cabeça de quem toma a decisão fatal. A segurança é, em termos globais na sociedade, uma sensação. E essa, agora sim, está à mercê de repórteres a precisar de férias, ou de notícias. A "onda" está aí. Daqui por um mês, quando tudo voltar a olhar para o parlamento, e para as eleições presidenciais norte-americanas, e para o regresso às aulas e afins, os meliantes lá terão que procurar alvos diferentes. Porque nessa altura a churrascaria já não dá no Jornal da Noite. A "onda" enrola na areia.

Genéricos de TV IV: Big Love

Wall.E (****)

Wall.E é um dos filmes que tínhamos apontado para ter atenção este ano (ver aqui). Dizia eu, na altura, que "a avaliar pelo trailer #2 é animação da melhor, com tudo veiculado por imagem ou movimento, porque Wall-E não fala, praticamente. E tem tudo para ser um dos grandes do ano". E aqui, grande satisfação porque sim, é um dos grandes do ano. E quando as expectativas são cumpridas é sempre bom. Andrew Stanton, que andou com Wall.E na cabeça durante uns anos, já tinha dado Finding Nemo à humanidade. Portanto, o senhor não é virgem em matéria de animação de topo. Mas realmente Wall.E é elevar a fasquia um bom bocado. Não só porque o trabalho de animação é brilhante, mas porque será (talvez) o primeiro projecto desta magnitude a arriscar em personagens sem comunicação verbal. E, para nós, essa é a grande aposta ganha do projecto. Todo o trabalho, quer visual quer sonoro, tem o objectivo claro de veicular comunicação sem recorrer ao verbo. E aí Stanton ganha em toda a linha. Wall.E é uma personagem com enorme densidade, personalidade evidente e capacidade para comunicar apenas com os seus sons, movimentos, acções e demais componentes, e é aí que tudo parece alicerçar-se. Claro que é a mensagem "verde" que conquista corações mais militantes, e que a projecção da humanidade que surge no ecrã também ajuda a adoçar a coisa (é possível que aquele seja mesmo o nosso futuro, em potencia?), mas a grande conquista do filme, a nosso ver, está na capacidade de se sustentar e de comunicar com o espectador de forma clarividente sem verbo. Não é qualquer um. Mas atenção, e aqui talvez algo politicamente incorrecto: Wall.E não é um obra-prima, nem está num patamar sequer próximo de ET. É um grande filme, magnificamente bem feito, mas não vai marcar a história do cinema, sobretudo porque lhe falta densidade dramática (desde o primeiro plano que sabemos que vai acabar tudo em bem) e porque Wall.E está apostado em ser adorado por todos. Em ET aprendíamos a gostar daquele ser ao longo do filme, e havia medo de início, que se convertia em defesa depois e pena ou tristeza por fim. É esta capacidade de convocar diferentes estados emocionais, motivados por uma surpresa recorrente, que não se vê no projecto do robot do lixo. Portanto: parabéns senhor Stanton, mas continue a mandar postais.

Baile de Outono (***)

Não é muito comum chegarem exemplos da cinematografia da Estónia a salas portuguesas. Também por isso, mas não só, Sügisball, que em português deu "Baile de Outono", é uma boa surpresa. O filme de um desconhecido Veiko Õunpuu é sobretudo uma visão cinzenta da solidão humana, sem deixar cair um traço de identidade de leste. Ao longo de duas horas a camera leva-nos a seguir um escritor abandonado por uma mulher, uma mulher abandonada pela sorte, um barbeiro finlandes esquecido e demais personagens emocionalmente fragilizadas, que acreditam mais no silêncio do que na conversação. Sendo notório que o estónio foi beber a escola de Bergman, a sua grande conquisa é a criação de um ambiente emocional e visual que veicula a solidão contemporânea, desta feita não agregado à abstracção de uma grande metrópole, mas numa cidade neutra, lenta e nocturna, onde os personagens se encaixam como peças de um puzzle. Õunpuu tem o filme ganho enquanto filma e estrutura, mas quase que se perde quando começa a introduzir texto e a cruzar personagens e respectivas histórias. Aí começam a aparecer disparates, frases feitas, que quase deitam tudo a perder e se revelam como perturbadoramente desnecessárias. Mas depois recupera-se o silêncio, a alienação consciente, o drama pessoal psicológico de cada um, em tom poético, bem filmado, com imagens felizes e sons a condizer, e no fim de tudo temos o "filme-ovni" do Verão, que faz ter saudades do Inverno e daquele olhar perdido do quotidiano.

Rob Schneider quer salvar o Miguel

... e nós assinamos por baixo.


"Desmarcar depilação"

Colocou-se este estimado autor (por alguns) na tarefa de organizar e indexar em base de dados os breves volumes existentes cá em casa. A mudança havia-os deixado na onda da "boa vizinhança", ou seja, no acaso. Lobo Antunes ao lado de Rushdie, Cardoso Pires paredes meias com Kafka, Borges a segurar Bruce Chatwin. É preciso arrumar a casa, e sobretudo saber o que existe, uma vez que já se chegou ao ponto da compra de exemplar em desconhecimento da sua existência prévia. Duas cópias, portanto, e um coçar de cabeça à banda desenhada. A tarefa implica, então, desalojar todos os volumes do seu lugar actual, inserir os detalhes na base de dados, limpar estantes com a aranha Beatriz a passear (assim rompendo a sua mais recente armadilha), e depois casar livros por estilos e autores, queimando as feridas da situação anterior, alcólicos e abstémios agora separados por existencialistas, para quem vinho pouco fala. No meio de tudo isto, e no meio de uma edição de Sophia lida na infância, uma folha de filofax para indexação de cartões de crédito, coisa antiga, cuidadosamente dobrada na longitudinal. Abro, e a surpresa: "desmarcar depilação". Assim, a frio, sem mais, a lápis, também na longitudinal, em caixa alta, sem pontuação. "Desmarcar depilação". Como que à sombra da morte (dizem) revejo a minha existência, em ritmo acelerado, passando frames. Nada. Olho-me ao espelho. No meio de Sophia e dos seus Contos Exemplares em edição Figueirinhas gasta pela gordura de mãos pequenas e pela secura do tempo, um recado, curto, sem temperatura ou hesitação, como uma acção que se escreve e que quando escrita existe já por si, sem esperar pelo real que a concretize. Revendo, agora em camera lenta, tudo o que é passível de rever, não encontro nada nem ninguém nem coisa alguma intimamente ligada a tal expressão. Nenhuma memória. Nenhum vestígio. Nenhuma recordação ou potencia de. Olho-me ao espelho e nada me vem, para além da imagem de mim mesmo.

El Bulli

Uma faceta praticamente desconhecida do Animatógrafo é a de gourmet. Por ser tema mais de acção do que de explanação, nunca nos deu para aqui discorrer sobre o vasto campo da gastronomia, sobretudo a que convoca emoções e sensações que, de alguma forma, provocam um avanço humano. Ainda assim, acreditem, essa faceta existe. Aproveitando produção alheia, vimos humildemente propor a visualização da reportagem da SIC, transmitida há dias, sobre o El Bulli, considerado nos últimos anos o melhor restaurante do mundo. O projecto de Ferran Adriá, como se verá, é muito mais do que isso, e merece, sem dúvida, uma atenção que se deve não a comida, mas à experiência que a mesma pode constituir. Sobretudo, mais do que tudo, emoções imaginadas e provocadas. A presença internautica do El Bulli está em http://www.elbulli.com. A reportagem, em três partes, fica aqui em baixo. Vejam, porque vale a pena.





The Dark Knight (****)

A história de Batman no cinema merece ser vista com olhos de ver. Ou seja, vale a pena acompanhar as várias viagens ao universo de Gotham e do herói talvez mais negro da história da BD. Algo que merece também ser dito é que o primeiro filme da saga, com data de 1989, é de Tim Burton. E daí para cá foi impossível olhar para o personagem e para os filmes sem esquecer este dado. Porque Burton é Burton, e porque Batman, o primeiro, é um filme sem mácula e que definiu o patamar numa posição alta. Muito alta. Tão alta que os desastres como Batmand Forever, em 1995, ou Batman & Robin, dois anos depois, vieram pôr em causa a presença do morcego no grande ecrã. Depois veio Cristopher Nolan, na ressaca dos marcantes Memento e Insomnia, a querer salvar a coisa para aquilo que hoje se gosta de designar como o período negro. E a primeira experiência não correu de forma particularmente brilhante. Batman Begins centrou-se na formação da personagem, na sua infância e ligação aos pais, e esqueceu-se de encontrar um vilão a sério ou o ambiente certo para um universo que foi totalmente estilhaçado pelo trabalho de Joel Schumacher. E portanto chega-se a 2008, de novo, com a sensação do vai ou racha do homem-morcego. E a coisa parece ganha. Não, The Dark Knight não é melhor que o paladino de Tim Burton. Mas simplesmente porque Burton é Burton, e o batman do realizador bonecreiro não é repetível. Desta feita, Nolan parece ter aprendido com os erros e mostra agora um filme bem estruturado, que não cede na acção mas não se reduz à mesma, que dá máxima sequência à criação da personagem Batman e, mais do que tudo, à sua contínua luta consigo mesmo enquanto herói negro, simultaneamente luz e negativo de si mesmo. Christian Bale move-se muito bem no meio de tudo, e Nolan tem um enorme jackpot em Heath Ledger. À parte de qualquer visão romanesca impulsionada pela morte do actor, o trabalho de Ledger dentro de Joker é incrível e tremendamente comparável com o de Jack Nicholson, precisamente o joker de Burton há quase vinte anos. Comparável porque onde Nicholson era demasiado Nicholson, Ledger é carne, osso e risos totalmente Joker, sem espaço para mais nada. A performance de Heath Ledger é memorável e entra directamente para a galeria dos grandes vilões do cinema, ao lado do Hannibal Lecter de Hopkins, por exemplo. E a consistência de um grande Batman tem que vir da força da sua antítese. Mesmo que que essa acabe por vir de si mesmo, mas potenciada pelo mal em forma de sorriso cortado.

O Animatógrafo vota Barack Obama

Cavaco e os Açores

"Declaração ao país". "Assunto da maior importância". "O Presidente da República interrompe as férias para uma comunicação em directo nas televisões". Medo. Muito medo. Sobretudo porque Cavaco Silva acabou ontem, a partir das 20:01h, por provar o que dissemos de forma dura e directa durante a campanha que o elegeu: que não tem o menor perfil para o cargo. Quando o país se vai deprimindo atrás do preço dos combustíveis, quando a inflação dispara como não se via há quase 15 anos, quando a taxa de desemprego não dá sinais de abrandamento efectivo, quando as taxas de juro não estabilizam minimamente, quando a Europa e os Estados Unidos se vêm a braços com problemas de ordem económica e social profundos, quando o falhanço do Tratado de Lisboa mergulha a Comunidade Europeia em nova crise institucional, quando a Assembleia da República parou os seus trabalhos, quando tudo isto acontece, o Presidente da República Portuguesa decide fazer uma comunicação ao país sobre um tema absolutamente periférico. Mais do que isso, vai para os ecrãs de televisão, a meio da época estival, dramatizar um estatuto que já havia sido recusado pelo Tribunal Constitucional e que, assim, teria sempre necessariamente que regressar à Assembleia. E, por cima de tudo, o que o preocupa é a obrigatoriedade, inscrita no documento, de aumentar o número de audições prévias a uma dissolução do parlamento regional, bem como ter que ouvir a assembleia regional antes de nomear um representante da república para o arquipélago. A meio do Verão, num país meio parado ou pelo calor ou pelo custo de vida, o assunto é tudo menos o que preocupa os portugueses, ou sequer a classe política, cujas reacções não deixaram esconder o espanto pela forma como a questão foi levantada. Mais: em vez de manter a questão num plano político-institucional onde claramente pertence e será resolvida, Cavaco hiperbolizou-a totalmente, procurando os ecrãs nacionais com cara de caso. Numa época em que se fala à boca cheia sobre a exagerada mediatização do sistema político-partidário e dos seus intervenientes, e da apropriação que estes tentam fazer dos media para passar um conjunto de mensagens, usualmente vazias, o Presidente da República dá o pior exemplo possível. Preocupado apenas e só com as suas competências no cargo, com o seu umbigo, escondeu-o atrás de um fatinho de economista de empréstimo em Belém e veio gritar "aqui d'el Rei, que me querem foder!". E ninguém quer. Medo. Muito medo.

Vénia do dia: Lykke Li