Repetição

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai insistir na sua declaração inicial enquanto projecto profundamente anti-Cavaco sempre que isso se justificar.

Consciencialização

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai promover um trabalho de consciencialização dos portugueses sobre Cavaco Silva, sublinhando questões de especialidade do professor como:

1) - Provincianismo;

2) - Limitação e desinteresse intelectual;

3) - Ignorância sobre política internacional;

4) - Falta de capacidade de representação nacional;

5) - Inabilidade social genérica;

6) - Ausência de passado ideológico relevante;

7) - Outros.

Acção

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai enviar um generoso bolo-rei para casa de Cavaco Silva, acompanhado de repórteres de imagem e do Alberto João Jardim.

Sugestão

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, sugere que alguém informe Cavaco Silva que as eleições são presidenciais, e não legislativas.

Declaração

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, declara que é profundamente anti-Cavaco.

docLisboa 2005: El Cielo Gira (*****)

Premiado internacionalmente, El Cielo Gira é o primeiro trabalho de Mercedes Álvarez e parte de si mesma: a espanhola foi a última pessoa a nascer em Aldeaseñor, uma aldeia em Soria, no norte de Espanha. Outrora populosa, a aldeia que alberga inúmeros vestígios de dinossauros está hoje à beira da extinção, tendo apenas 12 habitantes, 14 à data de realização, segundo sublinhou a própria realizadora antes do visionamento em Lisboa. A particularidade de ter sido a última "filha da terra" serve a Mercedes, que abandonou o local muito pequena, como mote para revisitar os espaços e os sobreviventes, criando uma imagem forte da zona mais desertificada da Europa. A espanhola, envolvendo-se no trabalho de criação do documentário como objecto muito para além do mero registo de uma realidade, convoca elementos que a ele são estranhos, como o pintor Pello Azketa à beira da cegueira. É Mercedes que lhe pede para visitar a aldeia, é por sua sugestão que a percorre com as mãos e o velho Antonino como legenda sonora dos edifícios. El Cielo Gira converte-se assim, facilmente, de um registo de uma realidade palpável para uma sua interpretação e descodificação, à sombra da uma ideia de ruralidade perdida. Desde cedo, desde as primeiras palavras de Mercedes, que surge como narradora de estados de espírito e acontecimentos que não vemos, como a morte de um familiar, que se compreende que o trabalho de revisitação da aldeia é, em primeira instância, seu. E, no caso, pessoal. É a sua revisitação que fica registada enquanto documentário. O risco é, assim, grande. E só é suplantado porque esse olhar, que se reflecte em cada plano ou pausa, consegue transcender o seu carácter pessoal e ilustrar um sentimento de perda que varre vastas regiões da Europa mediterrânica. Quando o inverno chega à tela, já o olhar de El Cielo Gira é também o nosso, e não o de Mercedes apenas. Inteligente, a espanhola tenta fugir dos pormenores pessoais que não tenham significância global. E muito do trabalho para estabelecimento de uma relação com o espectador é feito pela imagem, pela definição estética dos planos, pela organização. Mais uma vez, como em Samagon, há uma dose de sorte com os personagens que habitam Aldeaseñor, idosos dotados de personalidades vincadas e de humor afiado, potenciado pela presença da lente. Mas é preciso saber filmar o acordar a meio da tarde, começando pelos gatos, passando aos cães, e acabando no levantar de sobrolho de Antonino, que logo regressa ao sono interrompido. O trabalho de Álvarez é respirado, dando espaço ao objecto documentado para se revelar, sem pressas mas sem excesso nas pausas, ponderado mas não mole. O resultado é um filme belíssimo e de uma simplicidade desarmante, quase natural nas suas formas. E, curioso, muito longe da imagem de auto-comiseração que graça na ruralidade portuguesa. É o definhar lento de formas de vida, sem dramas, mas sem alegrias.

docLisboa 2005: Samagon (*****)

São 12 minutos puramente fantásticos. Samagon, curta-metragem de Eugen Schlegel e Sebastian Heinzel, segue nas palavras, gestos e sorriso de Vera, uma velha no interior profundo da Bielorrússia. Vera vive numa casa de madeira de postal ilustrado, numa aldeia onde não há homens. Uns atrás dos outros, todos morreram deixando a sobrevivência às mulheres que restam. O tempo corre respirado. Ao amanhecer, Vera acorda para abrir a porta aos gansos que saem a posar para a camera. Ao anoitecer as janelas emanam uma luz de caramelo e Vera agita-se para lá da janela. A velha conta-nos como durante a II Guerra Mundial salvou a aldeia com uns copos de vodka. Apenas com 10, 12 anos, a criança Vera deu de beber aos soldados alemães que se preparavam para incendiar as casas, com a sua vodka caseira, conseguindo, na inocência rural da sua juventude, evitar a ira alheia. Vodka que nos ensina a fazer desde a primeira imagem: fruta cozida com aguardente e compotas, mistura coada que se acalma durante um mês junto a uma janela vendo nevar. Morre depois à luz da fogueira, destilada para uma garrafas que fazem a dona sorrir gota a gota. Se é verdade que é preciso ser-se feliz com as personagens que surgem num documentário, e disso os dois estudantes alemães não se podem queixar, também é verdade que tem que se procurar essa sorte e tirar dela o maior partido. Os dois jovens alemães (um deles presente no visionamento em Lisboa) fazem de cada plano uma imagem quase inigualável, quer cromaticamente, quer na sua simplicidade. Os 12 minutos de Samagon, que estão justamente incluídos na Competição Internacional do festival, convocam sentimentos e afectos, para além de cumprirem aquilo a que se cumprem: documentar um espaço, um tempo, os seus habitantes. Além disso, é a assumpção da ruralidade como algo não necessariamente castrador e depressivo, mas antes como um modo de vida com tempos diferentes, cuja respiração se vai perdendo nas sociedades contemporâneas. Ainda que viúvas, nem Vera nem as vizinhas são chorosas ou fechadas no seu casulo de idade. Têm consciência que é aquela a sua vida, e não enjeitam a hipótese de sorrir ou de beber mais um copo.

docLisboa 2005: Avenge but one of my two eyes (****)

É possivelmente um dos candidatos à vitória final no docLisboa deste ano. Avenge but one of my two eyes, que vai buscar o título às palavras de Sansão antes de matar 3000 romanos de uma só vez, é um filme mergulhado no conflito israelo-árabe, à procura das suas razões culturais mais íntimas. Avi Mograbi foge de Jerusalém e prefere filmar as montanhas de Masada, onde guias turísticos incorporam o papel de pregadores e tentam inspirar os curiosos com a lenda do suicídio colectivo naquele palco. Muito longe da abordagem comum sobre a questão, Mograbi tenta passar para imagem toda a crueza que existe no contacto com a realidade quotidiana, tanto do lado israelita como do lado palestiniano. Junto a uma estrada controlada por militares israelitas, um grupo de crianças aguarda a abertura de um portão para poder regressar a casa, enquanto os soldados limitam-se a estar no local sem qualquer acção. Antes, um grupo de palestinianos começa a lavrar a terra quando é interrompido por militares que afirmam que a zona está interdita. Numa escola, crianças palestinianas de 6, 7 anos descodificam a lenda de Sansão, que depois de torturado e sem forças, pede ajuda a Deus para uma última vingança, afirmando que preferem morrer e matar simultaneamente muitos inimigos a serem capturados. Mograbi filma faces, rostos, humilhações, em descampados longe de tudo, acentuando o surrealismo das acções. Interventivo, interpelando os militares, gritando, Mograbi sente o trabalho de imagem por dentro. Os pontos de fuga estão na longa conversa telefónica com um amigo palestiniano, tensa mas desencantada, equilibrando os momentos mais rudes com uma dose de racionalidade. O pano de fundo, no entanto, é sempre a raíz histórica da questão, da luta judaica pela liberdade em Massala à resistência palestiniana inculcada em casa criança pelos cabelos de Sansão. Mais do que um conflito bélico, político ou religioso, Mograbi mostra um conflito histórico e cultural, degladiado nas palavras de uma professora primária e nas explicações de um guia turístico, quase que cirurgicamente implantado no estomago de quem quer ouvir.

docLisboa 2005: Nous/Nihna (***)

Mais do que um documentário, os 13 minutos de Nous/Nihna (Nós) tentam criar uma imagem de afecto. A libanesa Danielle Arbid filma o pai na consciência da sua morte e tendo presente a arma que sempre os dividiu. De natureza pessoal e quase intransmissível, Nous só chega a documentário pela forma como coloca a questão dos afectos humanos, em momentos respirados de imagens que ficarão como memórias. A arma que dormiu anos a fio debaixo da almofada do pai de Danielle ganha um espaço de personagem central, apesar de apenas surgir no início, de rompante. É a arma que nos diz que estamos no Líbano, é a arma que nos diz que entre aquele pai e aquela filha há separações insondáveis. Ainda assim, Nous é mais um documento do existir do que do propor, uma reflexão muito breve sobre o que está.

docLisboa 2005: Before the flood (***)

Depois de um dia de descanso forçado (por falta de bilhetes), voltei ao docLisboa para ver Before the flood, trabalho de Yan Yu e Li Yifan sobre o desalojamento de milhares de pessoas na cidade histórica de Fengiie. O pano de fundo é o maior projecto hidroeléctrico do mundo, a barragem das Três Gargantas no rio Yangtsé, que deverá estar concluído em 2009. No entanto as águas já sobem desde 2002 e foi antes disso que os dois chineses andaram atrás de compatriotas a registar todo o processo de destruição de uma cidade, mais do que o de construção de outra. Pode dizer-se que Fengiie é China profunda. Construída na margem do rio, ao longo de uma enorme serra com acentuado grau de inclinação, constitui-se como um aglomerado de habitações sub-humanas que cresceram a partir da porta com arco que marca a presença fundadora. O filme, sem narração ou qualquer tentativa explicativa, limita-se a registar e seguir os habitantes durante todo o processo de abandono dos espaços. A maior parte dos edifícios são deitados abaixo à marreta, estando a implosão reservada para uns quantos de dimensão considerável. Mais um documentário cru e sem preocupação para além da de mostrar a realidade, Before the flood acaba por criar a imagem de uma China sem neons nem bicicletas a circular, um país onde os produtos chegam de barco e são carregados aos quilos escadaria acima, nos ombros dos homens. Panelas fumegam à entrada das casas. Entalada pelo crescimento caótico, uma igreja cristã protestante, erguida em 1905 por um missionário anglicano, tenta apaziguar as almas que desistiram das igrejas clandestinas mas não vêm Buda como a orientação suprema. Fengiie, à beira da destruição total, é um espaço de conflito unipessoal iminente, pela falta de oportunidade de uma vida nova noutro lado, pelo sentimento de abandono por parte do "partido", onde cada discussão começa com "camarada" e acaba com insultos e agressões descoordenadas. Fengiie transforma-se, ao longo de todo o filme, num cenário de guerra sem balas, à espera da grande inundação, condenada, como um fantasma que se concretizará no silêncio absoluto e perpétuo. Mesmos os mais resistentes, mesmo os que empilham os tijolos inteiros que sobram das implosões o sabem. Yan Yu e Li Yifan acabam por aproveitar algo que se documenta a si mesmo, limitando-se a seguir o ritmo dos acontecimentos e concretizar planos que poderiam escapar ao olhar de quem lá estava. Os 143 minutos são exagerados, e o trabalho dos dois chineses pode pecar sobretudo por aí, por querer uma exaustão que não era necessária. A montagem é competente e a escolha dos "personagens" a seguir é feliz. Não sendo um objecto esteticamente arrebatador, nem sequer completo nas suas diversas vertentes, Before the flood mostra aquilo a que se propõe com rigor. E às vezes não se pode exigir muito mais.

docLisboa 2005: D'Est (***)

Era o filme de Chantal Ackerman que faltava passar em salas portuguesas. Datado de 1993, D'Est vai à procura do Este europeu, da Alemanha à Rússia, passando pela Polónia e destinos que tais. Sem nunca os identificar, e sem qualquer preocupação de situação geográfica ou narrativa, Ackerman filma paisagens rurais e urbanas na tentativa de criar a imagem do Este. O plano-sequência é o recurso primordial do trabalho formal da francesa, ao longo de 107 minutos de silêncios, rostos, neve, edifícios desancados pelo tempo. Não há frases, não há histórias para além das que as faces das mulheres deixam ver, numa paragem de autocarro enterrada num Inverno profundo e castrador. Muito longe do estilo de documentário como "grande-reportagem", e muito próximo do cinema enquanto espelho estilizado da realidade, D'Est cumpre-se como exercício de estilo de natureza estética vincada. Ou seja, é muito bonito mas com pouco sumo. As imagens são soberbas, e a realizadora goza da cumplicidade dos "actores reais", que assumem a consciência da camera com olhares esguios mas não se deixam perturbar na sua tranquilidade. Há poucos sorrisos, nenhumas facilidades. Os rostos são limpos. As cidades têm avenidas largas e largos descampados entre edifícios que contrastam do cinzento pela tinta descascada. Os corpos deixam-se estar nas gares à espera. As árvores agitam-se nos intervalos de um carro que passa de tempos a tempos. É um Este desencantado, fechado sobre si, com o peso da história a espreitar em cada esquina que não chega ao plano. Não há guerra. Há uma paz estática de entre-épocas. Há o reconhecimento de uma dimensão geográfica com significado a partir do termo que a designa. Ackerman, honra lhe seja feita, consegue retirar todo o potencial estético das imagens que no quotidiano nos escapam. Mas a ideia de querer mostrar a realidade como ela é, sem mais, de forma nua, sem roupagem, produz um filme também ele nu, baseado em longos planos que se reduzem, muitas vezes, à sua própria beleza. Documentar não é apenas mostrar, é também contar. D'Est mostra muito, mostra muito bem, mas conta pouco.

docLisboa 2005: Rize (****)

NOTA PRÉVIA: O Animatógrafo, como não podia deixar de ser, está presente no docLisboa 2005 como espectador. O festival vai na sua terceira edição, já se sente confortável na Culturgest e cresce a olhos vistos. O programa é vasto e variado, e o tempo curto. Como é mais do que óbvio, o Animatógrafo não vai ver tudo, nem perto. Vai tentar estar numa sessão diária, pelo menos. É uma amostra da totalidade dos documentários que estão a passar, e perfeitamente subjectiva, não foi seguido nenhum critério para além do mero interesse pessoal do autor destas linhas. Assim sendo, esta semana é inteiramente dedicada ao docLisboa 2005. Que já começou no sábado...
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Muito possivelmente, já viu fotografias de David LaChapelle numa revista qualquer. Conhecido como fotógrafo de Hollywood, LaChapelle é presença contínua nas mais conhecidas revistas de moda e cinema norte-americanas e britânicas. Ao que parece, está a acabar ou já acabou o video-clip do primeiro single do novo album de Madonna, a sair até ao fim do ano. E, portanto, o nome era mais do que razão suficiente para ver Rize, mais do que não fosse para ver como é que o homem faz um documentário que não tem nada das luzes e bling-bling de Hollywood. De camera digital na mão, LaChapelle desceu das colinas e seguiu direitinho aos bairros problemáticos de Los Angeles, nomeadamente South Central. E a realidade é que a onda do hip-hop gangsta de 50 Cent e companhia limitada não mora ali. As comunidades negras que dominam a zona por completo, em termos de ocupação urbana e social, dividem-se, no que às suas gerações mais jovens diz respeito, em duas actividades: o crime organizado, em regime de gang, e o clowning e krumping. Mais uma moda? Dragon, de lenço na cabeça e pinturas na cara, jura que não. Basicamente, a história conta-se com um palhaço ex-presidiário, Tommy, festas de aniversário para crianças e a vontade de fugir a uma vida de arma na mão. O resultado é um movimento de dança e expressão que parece querer dominar os holofotes nos próximos tempos. Com uma estrutura musical semelhante ao hip-hop, o krumping é uma forma de dança que se aproxima de forma perigosa dos rituais tribais de Chaka Zulu. A rugir. O nível de "fisicalidade" é extremo, a velocidade dos movimentos quase tecnológica. Nos primórdios do rap, que viria depois a dar origem ao hip-hop, a palavra de ordem era "revolta". A segunda geração das comunidades suburbanas, de natureza maioritariamente negra, sentia-se oprimida e criou um movimento, que viria a descambar no "mainstream" que hoje se regista, para alertar, contestar, protestar contra a natureza das coisas. Como era de esperar, o rap evoluiu para um hip-hop agressivo na rima e na bala, para tomar o que "era de direito" a qualquer preço. O pano de fundo na South Central de hoje é parcialmente semelhante. O krumping é também uma forma de protestar, contestar, alertar. Mas contra os gangs. Qual consciência interna dos bairros, que vai ruminando lentamente, o movimento tomou de assalto "os putos lá do bairro" que não querem acabar como o pai ou o irmão mais velho. Rize é um trabalho visual soberbo de LaChapelle. Ok, é fácil filmar um corpo num movimento quase antes nunca visto nas sociedades contemporâneas, os músculos entram pelos olhos, a face agride-nos. Mas LaChapelle monta todo o documentário respeitando os pressupostos de uma tragédia grega, com os seus altos e baixos, com os seus heróis e vilões. O resultado é ligeiramente tendencioso, mas com todos os ingredientes para deixar o espectador rendido, quer em termos formais, quer no que diz respeito à informação documentada e transmitida, quer relativamente à especificidade de cada "actor". O realizador vai dando voz a cada um dos marcos do bairro como se retratasse uma contenda, em que é necessário ouvir todas as partes. E parece que estão todas do mesmo lado. Mas estando o krumping em mutação diária, quase como que um caminho de ascese individual por via do corpo, cada um tem a sua teoria. Cada um o seu krumping. Rize é um documento poderoso sobre a relação de cada um com o seu corpo e a forma como esse mesmo corpo é um elemento determinante na forma de relacionamento com o meio urbano. Da mesma forma que os guerreiros de Chaka Zulu eram corpo em acção simbólica, os putos de South Central são corpos em acção contra a lei da bala. "É o guetto ballet".

PS: Rize estreia comercialmente em Novembro.

Animais Domésticos

Letizia Russo tem 22 anos, se a memória não me falha. Parece que entregou um trabalho escolar, o qual lhe pediram que adaptasse para teatro. O resultado valeu-lhe um prémio de nível nacional. A italiana tem andado, desde então, de cidade em cidade europeia, a convite, a escrever umas coisas. "Animais Domésticos", em cena no Teatro Nacional D. Maria II até dia 23, foi criada dentro desse espírito e propositadamente para os Artistas Unidos. Com bolsa da Gulbenkian, Letizia andou a passear pelo Martim Moniz e Intendente, à procura de material. O resultado é francamente bom. Na prática, "Animais Domésticos" procura os tiques e demências de um grupo de sem-abrigo, em busca de algo tremendamente perdido. Enquanto reflexão de um olhar estrangeiro sobre Lisboa e os seus "animais", o texto é de uma crueza e simplicidade assumidos, alicerçando o seu ritmo no surrealismo das personagens, nas suas obcessões e angústias. Entre meia dúzia de maluqueiras, lá sai uma verdade verdadinha "à tuga". A ideia de que "lá fora é melhor", por exemplo. Ou os encontros de velhas guerras e amores em funerais alheios. Russo capta um conjunto de manias e dá-lhes uma roupagem actual e ao mesmo tempo abstracta, inserindo breves reflexões sobre a natureza das coisas e da linguagem, como a ideia de cada coisa com seu nome, e que esses nomes se aprendem e ensinam, mais do que o seu significado. O humor surge naturalmente da construção do texto e das potencialidades que dele surgem para o trabalho da encenação. A noção de uma história por detrás de cada personagem é levada ao limite e utilizada como objecto de construção das paranóias individuais, sendo o pano de fundo a verdadeira análise exterior a "tuga city". O trabalho dos actores é primoroso (sendo que Sylvie Rocha está uns furos abaixo do resto do elenco). Mais do que não seja pela curiosidade de ver Lisboa pelos olhos de um estrangeiro, "Animais Domésticos" merece uma visita ao D. Maria II.

Última Chamada (***)

Takashi Miike é pouco conhecido do público em geral. A maior parte dos filmes nunca passaram no circuito comercial português, limitando-se a aparições anuais no Fantasporto. No entanto, quase toda a gente sabe que "The Ring", o pseudo-terror norte-americano, é um remake de um "Ringu" japonês, supostamente muito melhor. Ora, "Ringu" é de Miike. E terá sido sobretudo por isso que alguém decidiu estrear "Última Chamada" agora em sala, se bem que apenas numa (deve ser a título de experiência, ou coisa que o valha). Ora, meus amigos, se vão ver o filme à espera de ter medo, ter muito medo, desenganem-se. Porque, para que fique bem esclarecido, "Última Chamada" é Série B da boa. E isso é só para quem gosta. Ou seja, os pressupostos são idiotas (uma chamada perdida de telemóvel que anuncia a morte numa mensagem deixada), o desenvolvimento é tótó, a musiquinha que toca não mete medo nem a um pastor de cabras e as faces assustadas dos japonocas são uma caricatura. É "Última Chamada" um mau filme? Não, longe disso. Não se pode é esperar do vermelho que seja verde. Há que referir, ainda assim, que o pressuposto base do argumento é o mesmo de "Ringu", o que deixa um pouco a desejar. E que Miike já fez cinema mil vezes melhor (sobre isso escreverei em breve). Mas para quem gosta de série B, "Última Chamada" é um bom exercício cinematográfico. Não é caricatural nem exagerado como o de Carpenter, mas ainda assim saber que o monstro levanta a mão e agarra o braço alheio dentro de cinco segundos é um bom divertimento. Miike parece que não sabe filmar mal, e consegue ainda dar umas alfinetadas na sociedade contemporânea e nos seus media, com a tentativa de uma morte "em directo" na TV. No fim de contas, é um divertimento que nem todos se podem dar ao luxo. Ou melhor, muito poucos. Já estou a ver o remake norte-americano da coisa, com pretensões de terror. Aí sim, tenham medo, tenham muito medo!

Facto histórico indiscutível de sexta-feira à tarde

Um hipocondríaco não deve ver documentários sobre disfunção eréctil.

Morte

Calma, calma, não morreu ninguém (se exceptuarmos o Sr. Avelino Coecas e a D. Maria Tomásia que vinham no obituário do DN de ontem). Ora, aqui o vosso amigo vem de uns exames de otorrinolaringologia. No caso, aos ouvidos. Parece que sou um maluco que acha que está a ouvir pior do que seria desejável (apesar do médico dizer que está tudo bem). Ora, no exame em causa, depois dos bips e baps e da rapidez no gatilho, surge uma voz que vai dizendo palavras, as quais o suposto surdo, no caso eu, tem que repetir à simpática senhora de bata branca que vai escrevendo uns rabiscos. A voz pareceu-me de um tipo qualquer da rádio. As palavras são foneticamente pensadas para gerar dúvidas, claro, e ouve-se muito baixo. Ora, começámos: "louça", "murro", "roupa", "tudo", "prato". E eu fui repetindo, "louça", "murro", "roupa", "tudo", "prato", com a voz colocada que o senhor tinha, firme, muito longe, como aquelas chamadas da PT para a Austrália há 20 anos (que inda hoje fazem com que muito boa gente berre em vez de falar quando liga para o estrangeiro, por lapso freudiano, como a minha progenitora). E estávamos nisto, "seio" (sim, é verdade), "monte", "faca", quando


morte


e eu


morte


e a voz, baixinha, seguiu, "cume", "rua", "sala". Depois no ouvido esquerdo, "fita", "mão", "pêra" e


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e eu


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e, caraças, ouvir "morte" assim, muito baixo mas firme, colocado, como se alguém tivesse dito "morte" nas caraíbas e só eu ouvisse, como se fosse um anúncio escondido na gravação, como se a palavra devesse ser "batata" ou "cavalo" e eu ouvisse "morte", caraças, aquilo deixou-me a ouvir melhor!

Vidas difíceis V

21 anos depois, tudo na mesma

"José António Saraiva vai abandonar a direcção do semanário "Expresso" para assumir um cargo na coordenação editorial do grupo Impresa, avança a edição online do "Jornal de Negócios". De acordo com a agência Lusa, o novo director do semanário deverá ser Henrique Monteiro, actual subdirector.

Segundo a Lusa, o nome do actual subdirector já foi escolhido pela administração do grupo Impresa, mas só amanhã será proposto ao Conselho de Redacção.

José António Saraiva dirigia o "Expresso" desde 1984."

Público Última Hora

Vince, o deprimido

Ora, estava eu muito bem a ver uma palhaçada, só com palhaços ricos, e uma moça loira surge a falar numa "tempestade tropical" a dirigir-se para Portugal. Como as moças loiras muitas vezes não são de confiar levantei o sobrolho, mas a imagem de satélite não deixava grandes dúvidas: era uma bola branca enorme, com um buraquinho ao meio. Primeiro pensamento: "m..., eu sabia que devia ter mudado o seguro do carro para abranger tempestades tropicais". Segundo pensamento: "m..., eu sabia que devia ter comprado três vezes mais gelados da Haagen Dazs". Terceiro pensamento: "m..., eu sabia que devia ter ido de férias antes do país ser varrido do mapa". E depois o Instituto de Metereologia e Geofísica português vem dizer que não razões para preocupação. O pânico. O desespero. Lembro-me de ter uns 3, 4 anos e o honorável instituto avisar que ia haver uma tempestade muito forte na zona de Lisboa. O resultado foi uma tarde encaixotado na creche camarária, com portas e janelas diligentemente fechadas, enquanto os pardais saltavam de ramo para ramo aproveitando o sol quentinho nas penas e o silêncio nas ruas. Há minutos, o Público dizia que "em comunicado, o Instituto de Meteorologia informa que a tempestade tropical "Vince" diminuiu de intensidade, "sendo considerada uma depressão tropical" a partir das 09h00". É fantástico como até um projecto de furacão, com os seus objectivos e sonhos, com a sua puberdade a rebentar, se deixa deprimir com a aproximação a terras lusas. Deve-nos ter topado à légua... E já agora, porque é que uma tempestade tropical se chama "Vince", um nome claramente masculino? Mudou de sexo? Estava já a pensar em ser furacão que antecipou-se? Se as coisas estivessem no seu devido sítio, até ser furacão Vince devia ser Felisberta ou Leontina, ou Bertolina como a minha vizinha do rés-do-chão. Depois sim, se chegasse à adolescência, podia mudar para Vince, se quisesse. Se calhar foi por isso que se deprimiu, era uma tempestade num corpo de furacão...

Nelken (Cravos)

Primeiro que tudo, breves considerações preparatórias. Não sou um "homem da dança". Isto é, o meu conhecimento do meio, dos coreógrafos, dos artistas, dos métodos, da história, é diminuto. Mais: não era particularmente sensível à questão. Sobretudo porque sempre me fez muita confusão enquanto forma de expressão, quer plástica, quer artística, quer comunicacional. Confusão como? Confusão no sentido da total subjectividade (e estou aqui a falar de dança contemporânea, nao de ballet clássico). Ou seja, porque é que mexer o corpo como um epiléptico significa qualquer coisa? Porque escrever, ou representar, nós compreendemos, o tipo tá ali parado, ok, faz cara de triste, o tipo escreveu que a mãe morreu, ok, percebe-se. Agora o tipo mexeu o braço e depois caiu. E? Pois. Pois é. Pois era. Em termos globais, parece-me que é tudo um problema de media. Palavras, nós percebemos, foram feitas para comunicar ideias. Imagens, ok, é para comunicar, mesmo que seja para comunicarem-se a si próprias. Corpo? Pois, corpo, parece que é para andar, para existirmos. E portanto há uma resistência enorme ao corpo como media. Caramba, se há uma resistência aos livros e lemos pouco, ao corpo então... Pois era. Ora, comecei a interessar-me pela área e a tentar quebrar resistências quando se atravessou no meu caminho (imagem fatídica romântica esta) aquela que hoje é a jovem que me atura as manias, vai para uns anos. A jovem, de sorriso lindissimo, tinha feito dança e tinha uma curiosidade atroz pela mesma. Ainda hoje, felizmente. Vai daí, o meu cérebro ligou umas quantas sinapses e chegou a uma conclusão: ou a jovem é maluca e aquilo são uma cambada de malucos a esfregarem-se no chão, ou eu não percebo nada disto. E como a probabilidade da segunda hipótese era muitissimo superior, fui tentando quebrar barreiras a pouco e pouco. Pois. Hoje, não sendo um "homem da dança", já consigo compreender o corpo como media. Considero mesmo, aliás, que é o media mais complexo e interessante com que se pode trabalhar hoje na área de produção artística. Posto isto, o essencial. Vi "Masurca Fogo" no CCB, nas galerias de pé, sozinho, enquanto estudante universitário, em 1998. O nome Pina Bausch não era mais do que uma referência vaga, um fantasma, uma associação. E "Masurca Fogo" era a tradução de muita coisa: da visão de alguém estrangeiro sobre nós, da dança e das suas possibilidades actuais, da interacção da mesma com o teatro, da visão de Pina sobre o mundo. Lembro-me de me doerem terrivelmente os joelhos e de ter um sorriso idiota na cara, de quem compreende que está perante um objecto artístico e cultural único. Lembro-me da figura giacometiana de Pina no fim. Por tudo isto, cada vez que se fala de Pina Bausch em Portugal, a minha glandula salivar que ainda funciona (a outra ficou irreparavelmente entupida no ano da graça de 1980) lembra-se de um senhor chamado Pavlov e vai disto. Desta feita, Pina não facilitou e trouxe dois espectáculos a Lisboa. Nelken (Cravos) data de 1982. O palco foi invadido por flores cuidadosamente espetadas e uma figura de pernas maiores que tudo surge semi despida com um acordeão que nunca tocará. Um homem de fato e gravata centra-se no palco e traduz "The man I love", de Gershwin, em linguagem gestual. Depois há bailarinos com vestidinhos de menina a fugir pelo palco. Há alguém que insistentemente pára a acção para pedir um passaporte e humilha quem o tem antes de o devolver. Há um homem que mostra posições de ballet clássico e pergunta: "é isto que querem? eu dou-vos, é isto?". Há cães que ladram quando surge um determinado som, rodeando corpos que ora são corpos, ora são actores a jogar como crianças. Nelken (Cravos) é pura Pina Bausch: os problemas de comunicação estão lá, a conjugação de teatro com dança está lá, a reflexão sobre os caminhos da própria dança e as suas possibilidades está lá, a tragicomédia do absurdo está lá, a utilização de outros media está lá, a crítica política e social está lá. Nelken (Cravos está ligeiramente datado, sim, em 1982 ainda havia muro de Berlim, controlo de passaportes, contestação às novas formas de dança emergentes, dúvidas sobre os caminhos a seguir. Nelken (Cravos) é o embrião do que viria a ser Masurca Fogo 16 anos depois. Não vi Ten Chi, não se pode ganhar tudo. Mas parece que quase todas as revoluções se fazem com cravos.

Autárquicas em Cartaz

Um bom amigo meu, que me atura em muitos almoços, enviou-me aquele que poderá ser o blog mais determinante da campanha portuguesa. Sintomaticamente intitulado "Autárquicas em Cartaz", faz um inventário das pérolas do marketing de outdoor que por estes dias povoam o território nacional. Desde a pistola de Porto de Mós que já deu origem a uma reportagem da SIC à Carolina Amélia de Vilaverde, com um cartaz muito "afectuoso", há de tudo. Este último, juntamente com os da Trafaria e de Canelas, são os meus favoritos. Mas, no fim de contas, há para todos os gostos. Não admira que as empresas de comunicação e os profissionais da área estejam na falência/desemprego. Qual Edson Ataíde, qual quê, a senhora joaquina lá da junta é que percebe disto! Mai nada! O blog está em http://blogautarquicas.blogs.sapo.pt

Ora cá está!



Na minha primeira incursão na (mini) feira ecológica e natural do Príncipe Real (todos os Sábados), na parte de coisas não naturais (leia-se velharias, artesanato new age e antiguidades), deparei-me com esta pérola. Chamava-se "Animatógrafo", sendo assim o objecto primordial deste blog. Comprei três exemplares diferentes, de entre os muitos que a senhora com ar de otária tinha por lá. Este, com a Jean Arthur na capa, foi editado, precisamente meus amigos, foi editado a 6 DE OUTUBRO DE 1941. Cá está. 64 anos palmilhou a revista à data dirigida por António Lopes Ribeiro, o personagem mais determinante do cinema português do salazarismo, Pátio das Cantigas, O Pai Tirano, A Canção de Lisboa, etc, etc...Este é o n.º 48, 2.ª série. Ficamos a saber pelo rodapé da capa que "Publica-se às segundas-feiras" e que o preço era de um escudo e cinquenta centavos. Diz ainda a capa que Jean Arthur era "favorita dos cinéfilos portugueses" e que "este número contém um retrato-brinde de Mischa Auer", retrato este que não sobreviveu junto com a revista. Abre-se e lê-se que "Maria Paula trabalha em «O Pátio das Cantigas», filme ainda em produção, e que se trata de uma "reaparição que se impunha!". Na página 4 há "ecos da IX exposição cinematográfica de Venesa" (assim mesmo, com "s") e na página 5 diz-se que "é verdadeiramente consolador verificar o êxito sem igual alcançado pelo filme português «O Pai Tirano». O Éden bate todos os seus «récords» de afluência e de receita. (...) As gargalhadas constantes que provoca não vêm só de cima ou só de baixo, dali ou dacolá: irrompem de tôda a sala, num unísono consolador". Na página 9 fala-se "do que foi a primeira volta de manivela de «O Pátio das Cantigas»", enquanto na página 12 um assinado "Homem Sombra" diz que "Já estão definitivamente fixadas as datas em que vão exibir-se os filmes «The wolson of the mountain» e «Al'Arrihba». Falta apenas marcar os dias certos". Como precursor, o Animatógrafo tinha na página 14 "O Correio de Bel Tenebroso", uma versão inicial das hoje correntes "cartas ao director". Na mesma página um anúncio avisa que "Os melhores filmes portugueses, aqueles que se distinguiram pela decoração, foram mobilados pelos Grandes Armazéns Alcobia. A casa que sabe associar o «gôsto» e o «confôrto»". Ora cá está, há 64 anos.

Vidas Difíceis IV