Há um ano

Há um ano escrevi eu, aqui mesmo

Em Beijing ainda é 2004. Os rituais que marcam a passagem do tempo são fenómenos culturais enraizados no mais íntimo pessoal das sociedades, antropologicamente e socialmente estudados, assumidos como manifestação necessária à organização mental, motivando a gestão de expectativas que conduz a conduta da maior parte dos seres humanos. Mais do que isso, a definição de períodos de tempo de natureza organizativa (semanas, meses, anos), ainda que baseados em noções científicas da interacção da Terra com o Sol, assumem contornos de necessidade em termos económicos, burocráticos e organizacionais para um funcionamento social mínimo com o própósito de evitar a violência (no sentido abstracto e lato do termo).

Um ano podia ter 364 ou 366 dias. Seria igual. Na China ainda é 2004. A morte não sabe contar.


A morte não aprende.

Anti-listas 2

O post anterior não era para ser nada daquilo, mas enfim. Voltando à vaca fria, ou seja, à história das listas, há anos em que se olha para uma lista de discos ou de filmes ou de livros, e tirando os primeiros dois ou três o resto é refugo. É o melhor porque não havia mais nada, ou porque o resto era tão mau que teve que se meter aquilo. São os "anos-zero" em que o que é que se passou de jeito na cultura? Zero. 2005, para o bem e para o mal, não vai entrar nas calendas (como se alguém se vá lembrar daqui por algum tempo disto) como um "ano-zero". Em termos de música, por exemplo, o padrão de qualidade das edições de 2005 é francamente bom, no panorama internacional pelo menos. Há Arcade Fire, debutantes. Há Animal Colective. Há Sufjan Stevens. Há Paul McCartney com o melhor album da carreira a solo. Há Rolling Stones com o melhor das últimas duas décadas. Há Depeche Mode com um dos melhores da carreira. Há Fiona Apple melhor que nunca. Há Kate Bush de regresso em grande. Há Kanye West a baralhar o mainstream. Há Nine Horses. Há Vetiver, Eels, Sofa Surfers. Há Bernardo Sassetti em várias frentes. Há Clã ao vivo. Há Antony. Há Rufus Wainwright. Há Efterklang, Gorillaz, Andrew Bird, White Stripes, Sigur Rós, Patrick Wolf, Brian Eno, LCD Soundsystem, Jamie Lidell, Khonnor. Caraças, há uma dificuldade em fazer uma lista de primeiro para último. Deixem lá as listas.

Anti-listas

Pelo post do Natal se percebeu que esta ideia de Fim-de-Ano também não é bem a minha noção de "divertimento-equiparado-a-sexo". Não, não é. Uma das coisas que ajuda é a mania das listas. Os melhores, os piores, os mais isto, os mais aquilo, os mais cócó, os mais titi, os menos pupu. Estas coisas dão azo, aliás, a enormes equívocos, como um livro qualquer do Salman Rushdie, imaginemos, ser editado na versão original no Reino Unido em finais de Novembro de um ano e em português em Fevereiro seguinte. Se chegar a qualquer lista, cai em listas de anos diferentes, quando, de facto, deve ser analisado à data da sua publicitação primeira. Mas ninguém pensa nisto. Toda a gente gosta dos mais de, dos menos de. É uma espécie de ajuste de contas. Antigamente (agora não sei) havia a mania de publicar "O livro do ano x", todos os anos. Por oferta de um falecido, tenho o de 1975. É aquela noção de história vertical, com o tempo cortado aos bocadinhos, em fatias de 365 dias. E vai-se ver quantas nozes, passas e cabelos tem cada fatia, para ver se a outra ao lado foi melhor. Curiosamente, a ideia de História (enquanto ciência) que me foi passada no ensino secundário preferia a noção de época e, depois mais específicamente nalguns casos, de século. Pode argumentar-se que o tipo de organização é similar e é tudo uma questão de escala. Mas não me parece. A mim interessa-me pouco o livro de 1984 ou o de 2014, mas é muito mais interessante o século XX ou XXI, ou metades destes. É a diferença entre cortar fatias do bolo e analisar uma a uma sem ver as outras ou cortar o bolo ao meio, na horizontal, e ver como as nozes, passas e cabelos se distribuem ao longo da massa. É a tal coisa, o segredo tá na massa.

Daltonic Brothers, Dead Combo, Edgar Pêra

Para os que não sabem, eu confesso: tenho um problema de sensibilidade cromática. Ou seja, não sou completamente daltónico mas tenho umas arrelias com cores, nomeadamente com meios tons, cores cruzadas, e aquelas que não existem a não ser na cabeça das mulheres (mas com estas qualquer homem tem problemas). Descobri isto, imagine-se, na inspecção para o serviço militar. Nuns cartões redondos onde supostamente estavam uns números numa cor em fundo (o cartão é dominado por uma em primeiro plano), eu não vi números nenhuns. Nada. Apenas uma mancha verde e a cara do tipo que já ia a escrever "apto", também ela verde a pensar que eu tava armado em parvo. Como a minha cara de parvo a dizer "quais números???" era verdadeira, o homem lá rabiscou "problema de sensibilidade cromática". E pronto, foi o que se aproveitou do dia. Desde então que tenho tentado aprender a lidar com isto. Não é fácil. Ter dúvidas se uma camisola é preta ou castanha, e não querer fazer a figura "ó menina, esta camisola é de que cor?", não é pera doce. Bem como perguntar a duas mulheres diferentes qual a cor da p... da camisola e obter respostas diferentes também não ajuda. Ainda assim, isto tudo para dar conta de mais um blog que merece atenção: o dos Daltonic Brothers. Assumidamente daltónicos, os Brothers são tipos que trabalham na área de imagem e criaram um conjunto de personagens de BD que estão presentes no blog. O resultado é um humor inteligente e muito material multimédia de quem, num futuro próximo, pode vir a atingir o estrelato. Veja-se o exemplo de "Cacto", o primeiro vídeo-clip dos Dead Combo. Foi realizado pelos Daltonic Brothers (e está disponível no blog para quem quiser ver, nos arquivos de Novembro). Aproveitando a deixa, fica também o blog dos Dead Combo. Para quem não conhece, estamos a falar de Tó Trips e Pedro Gonçalves, o duo maravilha que apareceu de forma espontânea em 2003 num álbum de homenagem a Carlos Paredes. Seguiu-se Vol. 1, o primeiro trabalho a sério, e deve seguir-se já o segundo em Fevereiro de 2006. A dupla é quase banda desenhada em forma humana (o chapéu do Trips é impagável) e a música, como eles a definem, é uma fusão entre "o fado e o western" (o que é uma boa definição, de facto, oiçam). Neste caso, o blog foi criado porque os tipos tinham o site oficial desactualizado e aquilo devia dar muito trabalho, pelo que vai de criar um blog, que a malta nao tem pachorra para coisas muito complicadas. Sendo um dos projectos mais originais e interessantes dos últimos anos no panorama musical português (já aplaudido na BBC One, por exemplo), é de seguir as peripécias dos senhores, que até têm dois dedos de testa. E como isto de blogs é como as cerejas (ou seja, come-se cinco quilos e fica-se perto de uma casa de banho, não vá o diabo tecê-las), fica um terceiro que, tal como os outros dois, vai passar a figurar aqui na barra da direita: o de Edgar Pêra. Isto porque os Dead Combo, em posta de ontem, avisam que participaram no novo projecto do Pêra, Rio Turvo. O que põe a salivar um adepto confesso da religião pêriana (que, como toda a gente sabe, promove filmes malucos com inteligência superior e forma muito à frente). O senhor Pêra já rodou Rio Turvo por completo no Verão passado e, pelo blog, dá para perceber que tem Teresa Salgueiro e Nuno Melo nas imagens. O resto é praticamente uma incógnita, porque o blog é como a cabeça do senhor Pêra: fragmentário, assombrado, queimadinho. Li num site estrangeiro (e não consegui confirmar por cá) que o Pêra é o mentor dos Dead Combo. O que explica muita coisa. Ficam os sites:

Daltonic Brothers: http://daltonicbrothers.blogspot.com/

Dead Combo: http://deadcombo.blogspot.com/

Edgar Pêra: http://elementarista.blogs.sapo.pt/

Candidatos-caricatura

Tem sido curiosa nesta pré-campanha, entre outras questões, a ausência de folclore em redor das candidaturas "caricatura". Normalmente é matéria por demais apetecível para os media, nomeadamente a televisão (se calhar estão-se a guardar para a campanha oficial, para ver quem aparece mesmo). Dentro deste saco aparecem os tradicionais Garcia Pereira e Manuel João, mas o novato José Maria Martins. Caramba, escapou-me ou não houve mesmo nenhuma reportagem-choque da TVI sobre o advogado de Bibi? Andam a dormir? Então, só interessam o Soares, Cavaco, Alegre, Louçã e Jerónimo? Os portugueses não querem ouvir as propostas de José Maria Martins? No entretanto, parece que o senhor não entregou as 7500 assinaturas até dia 23 e não vai ter a fronha nos boletins. Se calhar por isso é que o blog oficial do candidato morreu a 22 de Novembro e o site da candidatura exibe "brevemente em linha" em quase todas as páginas. Mas ainda assim, é natural. Repare-se: na página de links, dois são para outras candidaturas, nomeadamente de Manuela Magno e Luís Botelho Ribeiro. A primeira já viu o Tribunal Constitucional dizer que os documentos não estavam conforme a lei, o segundo fez greve de fome até dia 20 de Dezembro (que não dava para resistir às rabanadas). E quem não resiste a rabanadas não dá um bom Presidente da República. Mais vale, pelos vistos, comer bolo-rei de boca aberta. Sim, porque de resto moita-carrasco. Mas voltando aos candidatos-caricatura, eu dava o meu voto, se a eleição fosse só entre eles, ao Garcia Pereira. Num dos debates na RTP, vários dos seus apoiantes foram para a porta do estúdio do Lumiar protestar pela falta de "democraticidade", "contra a censura". Diziam eles, se bem me lembro, que a RTP tinha medo de integrar Garcia Pereira nos frente-a-frente porque ele é "o único que pode fazer frente a Cavaco Silva". E aqui, vamos ver se nos entendemos, a RTP (e os outros canais) deu um enorme tiro no pé, do ponto de vista de audiências. Haveria debate mais apetecido do que entre Cavaco e Pereira? Alguém conseguia desgrudar do ecrã? Não seria bem melhor que uma temporada inteira dos Malucos do Riso? E mesmo entre Louçã e Pereira, ou entre Pereira e Jerónimo, não era impagável? É sempre a mesma coisa: os canais de televisão portugueses têm sempre imensos problemas de consciência em promover o humor de qualidade. Eu suspeito que a SIC Comédia não foi tida nem achada no processo, senão teríamos teasers com a voz do Markl a promover "o choque de titãs entre Garcia Pereira e Cavaco Silva". Dorme descansado, Jerry Seinfeld, it's not going to happen.

Vidas Difíceis IX

"Dois reclusos fugiram esta noite do Estabelecimento Prisional de Alcoentre, depois de terem serrado as grades da cela em que estavam detidos.

De acordo com uma fonte da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, os reclusos serraram as grades da cela com uma lima. A fuga foi detectada pelos guardas prisionais por volta das 06h00 de hoje.

Os dois fugitivos, de 24 e 34 anos de idade, eram reclusos primários (primeira pena de prisão que cumpriam), acrescentou a mesma fonte, escusando-se a especificar quais os crimes e as penas que estavam a cumprir.

As autoridades foram avisadas e está a ser elaborado um inquérito dentro da prisão de Alcoentre para apurar responsabilidades.

O Estabelecimento Prisional de Alcoentre tem uma lotação de 663 reclusos, na sua maioria condenados a penas de prisão superiores a três anos."

Público, 26/12/2005

Errr.... Natal

Ora vamos lá a isto: se há época do ano que abomino (do verbo abominar) é o Natal. Vêm-me à cabeça os adjectivos "execrável", "ímpio", "sacrílego" e outros de igual calibre linguístico. A única outra época, se podemos apelidar assim, de calibre aproximado na minha escala de ódio, é a passagem de ano. Porque vejamos: o Carnaval é completamente idiota mas é a única festa de origem pagã que resta. A Páscoa resume-se a um domingo em que a RTP e a TVI se lembram de passar uma missa e umas centenas de portugueses vão almoçar à Ericeira. As férias de Verão são o apelo nacional à histeria da bejeca com caracóis, em que cada um acha que a vida é linda, e a praia é do camano, e os amigos são do caraças, e vai disto! Agora Natal, caramba, Natal bate tudo. Tem a idiotice do Carnaval, acrescida pelo facto de ser de natureza familiar, tem a missa da Páscoa acrescida de quem não mete lá o cu o resto do ano, tem a histeria das férias de Verão mas sem bikinis ou caracóis, e muito mais, tem o trânsito num pandemónio, tem um país parado porque decisões "só depois das festas", tem hipocrisia às compras nas lojas dos chineses, tem jantares de grupo onde se apanha a bebedeira da época de Inverno, tem piadas sobre a vida sexual das renas, tem jantares de gente intimamente odiada ou desencontros de gente desencontrada, tem menos gatos nos beirais. Não tem nada para mim.

Broken Flowers (****)

Jim Jarmush não é um desconhecido, mas ainda assim o nome não diz nada a muito boa gente. Nascido em 1953 em Akron, Ohio, tem em Dead Man, de 1995, o filme mais emblemático. Depois disso fez Coffee and Cigarettes (aliás, já tinha feito antes muita coisa com este título), que praticamente não conta por se ficar pelo exercício de estilo e ensaio à volta de um tema. E agora, Broken Flowers. Caraças, Broken Flowers! É verdade que aquela onda do "filme norte-americano independente que versa sobre as relações e afectos de forma desconcertante estilo Magnolia" já não é propriamente algo inovador. Há vários e bons exemplos. E também é preciso compreender que, nos dias que correm (expressão que faz pouco sentido para mim nesta data, os dias custam tanto a passar), Bill Murray também já não precisa de provar que é um dos grandes actores que Hollywood desprezou durante anos e que realizadores com dois dedos de testa reabilitaram. Ora, tudo isto faz de Broken Flowers um filme supérfluo? Não. Caramba, não! Jarmush encena a viagem de Don Johnston (Murray), um bem sucedido ex-Don Juan que não precisa de trabalhar e vê a sua vida invadida pela hipótese de ter um filho, desconhecido até então. Em época sabática, Don é quase obrigado pelo vizinho Winston a listar as mulheres que podem ter sido a mãe e ir atrás das suas vidas. Em regime muito literário, Jarmush escreveu Broken Flowers com objectivos muitos precisos. Primeiro, a personagem de Don foi assumidamente escrita para Murray, e isso transparece em todas as imagens, retirando a Murray todo o seu potencial de actor dramático, dir-se-ia, não reagente. Segundo, Jarmush sabe o que quer expor, até onde quer expor, e os meios para que a exposição resulte. Não é por acaso que Don tem Johnston por apelido, o que motiva a confusão fonética idiota por parte de todas as personagens (Don Johnson era o protagonista de Miami Vice, lembram-se?) e, assim, mais uma acha para a fogueira de absurdos. Não é por acaso que cada mulher assenta num estilo definido e perfeitamente enquadrado na realidade social norte-americana, desde a Laura (Sharon Stone) sexualmente pronunciada e ex-mulher de um piloto de Nascar, a Dora (Frances Conroy) agente imobiliária em cuja casa nada está fora do sítio, passando por Penny (Tilda Swinton) símbolo de "white trash" versão metaleira. Jarmush encena a viagem de Don a um passado que não foi o dele para além de uma de muitas relações enquanto jovem. Mais do que revisitar o seu passado, Don precorre o presente das mulheres que fizeram parte fugaz da sua juventude, criando o confronto original base de todo o filme: o presente alheio de quem passou pelo nosso passado. Nada liga Don aquelas mulheres hoje, a não ser a possibilidade imensamente remota de uma delas ter sido mãe e só agora lhe ter revelado, anonimamente. Na cabeça de Don gera-se o absurdo para além do absurdo, porque não sabe se há filho sequer. Tudo é uma hipótese. E tudo atravessado por um tom desencantado com a vida, refém de nada, com um presente oco que se permite em perseguir um fantasma. Claramente, um filme de Natal.

Oiçam (mesmo)

Ora, a pedido de 348 famílias do leste do Burundi, o Animatógrafo arranjou forma de disponibilizar pequenos samples das sugestões musicais que têm passado por aqui em forma de capa de CD. Como ainda não ganhei coragem para escrever sobre essas mesmas sugestões, cada capa poderá ser acompanhada, a partir de agora, com uma das músicas que compõem o trabalho do/da artista. Como a última foi Stina Nordenstam, essa paladina sueca, aqui fica The Morning belongs to the Night, sétima faixa do The World is Saved cuja capa está ali mais abaixo. Portanto, vai de carregar aqui!

Imagens do demo IV

Roth por Molina

Há textos assim. São raros. Aparecem em dias estranhos, sem aviso, como se dispostos a acordar mentes dispostas a acordar. O Mil Folhas, suplemento literário e não só do Público, publicou ontem uma reportagem/entrevista de António Muñoz Molina a Philip Roth. Molina é espanhol e escreveu "O Inverno em Lisboa", livro praticamente ignorado deste lado da fronteira e que lança uma visão original sobre a cidade e os seus personagens. Roth é norte-americano e uma das vozes mais originais da literatura "across the ocean". O que o Mil Folhas ontem publicou, cortesia do El País, é um documento extraordinário entre dois escritores que se conhecem e aceitaram os papéis de entrevistador e entrevistado. Longe da "pergunta/resposta" comum, o resultado é um misto de reportagem e entrevista, com os pormenores e o olhar que assistem à primeira e a voz que assiste à segunda. Para ler, reler e guardar.

Oiçam



Stina Nordenstam, The World is Saved

Para bibliófilos

O espírito do post anterior se aplica a isto (<- clickar aqui).

"In the spring of 1998, Bluma Lennon, a Cambridge academic who has just acquired a copy of Emily Dickinson's "Poems" from a second-hand bookshop in Soho, is knocked down and killed at a crossroad. Following Bluma's death, a colleague finds in her house a copy of Conrad's "The Shadow Line" inscribed with a mysterious dedication and crusted around the edges with what appears to be cement. Intrigued, the colleague begins an investigation which will take him on a journey from Cambridge to Buenos Aires and across the River Plate to Montevideo as he hunts for clues to the identity and fate of an obscure and dedicated bibliophile. He learns the story of Carlos Brauer, a man whose obsession for books is all consuming. Vast bookcases fill his rooms from end to end, floor to ceiling, forcing his car out of the garage and even himself out of his bedroom and in to the attic. Books are arranged according to a strict system: Shakespeare cannot be placed next to Marlowe, because of accusations of plagiarism between the two, and Martin Amis cannot sit alongside Julian Barnes. All becomes dependent upon a complex indexing system, which will ultimately prove to be the undoing of this man of books."

Porque há obsessões que são como as opiniões (e outras coisas). Cada um tem a sua.

The Plot

Se houver por aí alguém (que eu sei que não há e por isso digo isto com a consciência a ressonar alto) que me queira oferecer algo no Natal e não saiba o quê, aqui fica uma ideia: ofereça-me isto (existe na FNAC por cá). E não me vou alargar sobre a questão, deixo aqui apenas a sinopse, em inglês:

"In a work more disturbing than fiction, "the father of graphic novels" (The New York Times) Will Eisner examines the outrageous fabrication of The Protocols of the Elders of Zion, which purports to be the actual blueprint by Jewish leaders to take over the world. Hatched as an anti-Semitic plot by the tsar's secret police to deflect widespread criticism of the government, the Protocols, first published in 1905, succeeded beyond the propagandistic ambitions of its originators; the lie became an internationally accepted truth. Presenting a pageant of historical figures including Tsar Nicholas II, Henry Ford and Adolf Hitler, Eisner exposes the twisted history of the Protocols from nineteenth-century Russia to modern-day Ku Klux Klan members to Islamic fundamentalists. With an introduction by Umberto Eco, The Plot unravels one of the most devastating hoaxes of the twentieth century and its 2005 publication marks the centenary of the first publication of the Protocols."

Ah, para quem não percebeu, é banda desenhada...

Vidas Difíceis VIII (coisas de putas)

"Na Alemanha, onde a prostituição foi legalizada em 2002, Clare Chapman, 25 anos, formada em tecnologias de informação, pode ficar sem subsídio de desemprego depois de ter recusado um emprego, que requeria prestação de "serviços sexuais" num bordel de Berlim. O caso tornou-se público através da edição online do jornal Daily Telegraph, que explicou que com a legalização da prostituição, os donos dos bordeis - que são obrigados a pagar os descontos e o seguro de saúde dos seus empregados - têm acessos às bases de dados oficiais das pessoas que andam à procura de trabalho. Segundo a publicação britânica, Clare Chapman recebeu uma carta do centro de emprego a informar que havia um empregador com interesse no seu currículo, onde referenciava que já tinha trabalhado num café e disponibilidade para trabalhar à noite. A jovem alemã vem a descobrir que é para trabalhar num bordel. «Não há nada, agora, na lei que evite que as mulheres sejam enviadas para a indústria do sexo», afirmou Merchtchild Garweg, um advogado de Hamburgo. O especialista explica ao Daily Telegraph que «os novos regulamentos afirmam que trabalhar na indústria do sexo já não é imoral, e, portanto, esses empregos não podem ser recusados sem que se perca o subsídio de desemprego».

Destak, pag. 4, 12/12/2005

É este o livro do ano...



... para o New York Times Book Review. Alguém já o viu por aí?

Imagens do demo III

Imagens do demo II

Imagens do demo I

Hey! Vocês aí...

... fãs de White Stripes
... fãs de Michel Gondry
... fãs de Conan O'Brien
... fãs do bom gosto, da criatividade e coisas que tais

vão a http://www.whitestripes.com/ e vejam o vídeo de "The Denial Twist". E já agora aproveitem para ver os outros vídeos realizados por Gondry para os Stripes. Mai nada.

Vidas Difíceis VII

"O caos instalou-se ontem na Praça Duque de Saldanha, em Lisboa, quando um homem que aparentava 25 anos esteve cinco horas pendurado numa varanda do 11.º andar do Edifício Monumental. A situação obrigou a interromper o trânsito na zona e à mobilização de meios do INEM. A confusão começou às 17.00 e prolongou-se até às 22.00, quando os negociadores da PSP conseguiram demover o homem da tentativa de suicídio, cujos motivos não foram esclarecidos. No local dizia-se que "ele gritava querer ir para os Estados Unidos para ser jogador de basquetebol".

Diário de Notícias, pag. 25, 10/12/2005

Frases demasiado boas para existirem III

"Numa das minhas encarnações de mulher estava sentada com um livro no colo mas não lia. O meu peito seria um fole. Um saco de pele animal com pregas que terminaria num tubo de cobre e nesse caso. Teria saído uma pequena quantidade de sangue, porque a tua mão me acariciava."


Mafalda Ivo Cruz, Vermelho, D. Quixote, pag. 129

Oiçam



Elysian Fields, "Burn Raps and Love Taps"

Cunhal por Pacheco Pereira

Infelizmente não existe em Portugal grande tradição biográfica. Aliás, nem pequena. Ainda assim, ninguém ousa afirmar que os portugueses não sabem lidar com a sua história mais recente, nomeadamente do último século. A Alemanha ainda hoje tem problemas (e graves) em digerir o seu século XX. Lembro-me, por exemplo, que numa conferência em Hanover há uns cinco anos senti que todos os intervenientes alemães do meu grupo fugiam de qualquer discussão como o diabo da cruz. Cheguei a confrontar um deles com essa questão e limitou-se a encolher os ombros e abanar a cabeça, como se a dificuldade de confronto, ainda que meramente retórico, fosse algo inconsciente. Nós por cá, ao que parece, não. Todos lidamos bem com os quase cinquenta anos de ditadura. Sabemos o que foi e não temos problemas em falar disso. Aliás, lidamos tão bem, parece, que até integrámos ex-ministros de Salazar, como José Hermano Saraiva ou Adriano Moreira, como figuras distintas da cultura e política portuguesas. É uma das minhas irritações de estimação: a falta de memória dos portugueses. A maior parte não se lembra ao lanche o que almoçou. E portanto, esperar que se lembre que aquele tipo careca e baixinho armado em doutor foi Ministro da Educação Nacional de 19 de Agosto de 1968 a 15 de Janeiro de 1970 é mais utópico que pensar no Benfica a ganhar Liga dos Campeões. E parece que também não há grande interesse em promover a memória colectiva recente. Lembro-me que, nos meus anos de liceu (expressão bonita esta), o século XX português ocupava umas duas, talvez três aulas, enquanto a idade média durava meses (esta também é gira). A onda editorial, hoje, navega a espuma dos Dan Browns que apareceram nos escaparates, encontrando policiais nas páginas da Biblia ou em épocas em que a dita ainda era dita em Latim (e "O Nome da Rosa" do Eco que já tem tantos anos...). Contra tudo isto, aparecem nas livrarias dois esforços que se aplaudem. Primeiro, a "Autobiografia" de Maria Filomena Mónica, eminente catedrática da praça que foi possivelmente a única pessoa a quem ouvi a coragem de afirmar que faltam elites a Portugal (e isto dará para outro post). Ainda não li mas já comprei, e só o esforço biográfico desencantado da própria já vale os euros. Depois, o terceiro volume da biografia de Cunhal, do Pacheco Pereira. Um acto de contrição: já tenho os três volumes e ainda não comecei a ler o primeiro (como dezenas de livros, aguardam nas estantes um dia luminoso que os faça respirar). E portanto não vou aqui fazer considerações sobre os mesmos. Mas é, diria, fantástico o esforço do homem. Não sou, nem de perto nem de longe, da área política de Pacheco. Aliás, tenho pela personagem uma relação de amor-ódio: todo o crédito para o Pacheco analista e literato, bílis verde para o Pacheco político candidato (como nas Europeias). Mas é extraordinário o esforço de trabalho de investigação, análise e tratamento da vida de Cunhal feito por Pacheco. Pacheco defende, e bem, que Cunhal foi uma personalidade chave no século XX português e que tudo o que se consiga iluminar sobre o seu percurso é saudável para a recuperação e manutenção da memória colectiva portuguesa. Ou melhor, para a sua construção. Posto isto, o homem leva a coisa tão a peito que, já com o livro nas prateleiras, decidiu criar um blog dedicado aos livros. E para quê? Para "errata, correcções, adendas, notas suplementares, críticas, referências". Pacheco Pereira não se limita a editar os livros, prossegue depois todo um trabalho de polimento da obra, corrigindo à medida dos dias, reunindo impressões, desenvolvendo um trabalho de feedback que não se esgota no livro objecto impresso mas que se encaixa no seu projecto real: o da investigação sobre Cunhal. Pacheco aproveita notas de leitores, correcções quer de estrutura (como errata) quer factuais (muitas por indicação de leitores), recolhe críticas de qualquer índole. É obra. Curiosidade maior, está já disponível o comunicado do PCP sobre este terceiro volume agora publicado. É história em directo. O blog chama-se "BLOGUE DO LIVRO ÁLVARO CUNHAL - BIOGRAFIA POLÍTICA" e está aqui.

Frase do dia

"Diria que é um bocado como o Melhoral, não fez bem, nem fez mal"

Jerónimo de Sousa, quando perguntado se a eleição de Durão Barroso para a Comissão Europeia foi benéfica para Portugal, Público, pag. 4, 08/12/2005

Nippon Koma: balanço

A semana passada estive calado que nem Cavaco porque passei seis dias a caminhar para a Culturgest, estilo devoto. O Nippon Koma, festival de cinema japonês que fez a sua terceira aparição na caixa forte lisboeta, teve 12 sessões, e o Animatógrafo esteve presente em 8. De entre muita coisa que meia dúzia de gatos pingados viram fica aqui um mui breve balanço.

Nota positiva para:

Agente Paranóia: Animação criada como série de televisão com quatro volumes (cada um com 4 episódios, aproximadamente), dos quais foram projectados os dois primeiros volumes (os sete primeiros episódios), é um fantástico trabalho em termos de argumento e exploração de técnicas tradicionais de cinema adaptadas a televisão. Partindo da agressão de uma jovem na rua por um puto desconhecido, que é baptizado como Lil'Slugger, toda a série se aproxima do thriller psicológico, introduzindo sempre que possível questões e temas eminentemente nipónicos, como os problemas de identidade por exemplo. O resultado não se recomenda a criancinhas e é óptima animação a todos os níveis. Ou seja, se David Lynch fizesse anime, possivelmente seria algo muito parecido com Agente Paranóia. Toda a série passou na televisão japonesa (por cá seria impossível, digo eu) e está editada em DVD. Encontram mais informações aqui.

Acidman: Um senhor de nome Nishigori Isao decidiu realizar 16 minutos e 14 segundos visualmente delirantes, que deixam qualquer fã de animação extasiado. Acidman não tem história específica e limita-se a construir ambientes visuais a partir de elementos que vão surgindo, rasgando quaisquer noções de figuratividade que podiam subsistir ainda. Utilizando um conjunto de técnicas 2D e 3D, o resultado é cromaticamente vibrante e sonoramente perfeito, sem pretensões a mais do que mostra na realidade. Na génese do projecto estão duas faixas do próprio Acidman (músico japonês) que não só servem de banda sonora como promovem o desenvolvimento visual do princípio ao fim.

YKK AP Evolution: Curta metragem de minuto e meio com função de anúncio para uma empresa de arquitectura, é a prova de que é possível trabalhar em publicidade para televisão sem recorrer sempre a esterótipos ou inventar grandes reviravoltas para abismar o espectador. Durante 90 segundos um conjunto de formas, como um cubo que se expande e cresce, são colocados em cima de imagens quotidianas, como um comboio em andamento ou uma praia deserta. O resultado é visualmente soberbo e de uma simplicidade desarmante. Se um anúncio vende um produto, eu compro só com aquilo. Neste caso, está disponível aqui, com RealPlayer.

Peep "TV" Show: Talvez o mais emblemático filme que passou. É um documentário em regime livre, sem grandes preocupações de estrutura, que se debruça sobre os problemas do Japão contemporâneo: identidade, relacionamento social, auto-estima, expectativas, orgulho. Peep "TV" Show mostra o Japão das lolitas góticas, dos jovens fechados no quarto durante anos, dos profissionais psicologicamente afectados que falam sozinhos a caminho do emprego, dos sem ocupação que se dedicam a espiar os outros para ver "a realidade". O filme segue Hasegawa e Moe entre 15 de Agosto e 11 de Setembro de 2002. Hasegawa é um voyeur que achou as imagens do 11 de Setembro estranhamente belas e que filma vidas alheias para manter contacto com o real. Moe é uma lolita gótica típica, sem identidade definida e à procura de uma noção de realidade que a prenda à vida. É daqueles filmes duros que nos fazem pensar que, apesar de tudo, a Europa ainda goza de uma sanidade mental invejável... Mais informações aqui.

Nota negativa para:

Naomi Kawase: a realizadora japonesa até foi premiada em 1997 em Cannes. E confesso que não vi o filme que lhe valeu a distinção. Mas os dois que passaram em Lisboa, Kya Ka Ra Ba A e Shadow, são piores que o Jackie Chan vestido de Carmen Miranda em dia de Halloween (que até podia ter a sua piada). O primeiro tem quinze minutos iniciais até simpáticos, em que a autora fala com a avó que a criou depois dos pais a terem abandonado e chega a falar com a mãe sobre o assunto. Mas aí uma doença súbita ataca: a idiotice. E os efeitos são devastadores, acabando com tudo o que de cinema minimamente aceitável poderia surgir. O resto são minutos autobiográficos de uma adolescente de 14 anos (que não é) sem nexo, totalmente gratuitos, com muita vontade de agressão por parte do espectador. Dêem uma máquina digital a qualquer adolescente português e vale mais o dinheiro. O segundo filme centra-se numa situação insólita: um homem filma uma mulher e diz-lhe que é o seu verdadeiro pai. O estado de choque que daí decorre e o facto do homem continuar a filmar, faz com que toda a relação obtusa daqueles dois se passe através da camera. Sem nunca explicitar se a situação é real, a realizadora dá o flanco e acaba também por dar a ideia que encena algo chocante só porque lhe apetece. Uma coisa é um realizador utilizar o seu cinema para abordar temas pessoais como forma de lidar com eles, outra é estupidificar e ter a ideia que as suas misérias interessam a quem se senta na sala.

Yusuke Sasaki: Eu já apanhei muita estucha na vida. A sério, a começar na última consulta do oftalmologista em que estive 4 horas à espera e a acabar no Yi-YI, em que estive 4 horas à espera que acontecesse alguma coisa, já apanhei estopadas de primeira água. E Letter, de Yusuke Sasaki, entrou a semana passada para essa fantástica galeria. Ora a ideia do senhor devia ser fazer um documentário sobre a obcessão das mensagens SMS e, simultaneamente, sobre as dificuldades de relacionamento que atinge o Japão actual. Premissas válidas, portanto. E o que é que o senhor Sasaki decide fazer para falar sobre isto? Ora, qualquer um se lembraria do mesmo: filmar um adolescente num quarto sem luz a mandar e receber sms durante hora e meia, em que só se vê a mão a teclar e a luzinha do telemóvel, intercalados com imagens do visor do mesmo dispositivo. Para ajudar à festa, a criatura alvo tinha a mania de chatear os amigos com mensagens como "O que contas?", "pois", "E mais?", "Não dizes mais nada?", "Yeah! Yahoo!" e outras que tais. Aos 10 minutos, eu já sabia que aquilo ia durar até ao fim. Aos 20 bocejei longamente e olhei para o relógio. Aos 36 martelei a minha consciência por ter a mania de não sair a meio dos filmes. Aos 42 bocejei o relógio e verifiquei se a pilha tinha mesmo energia. Aos 58 procurei por moedas antigas nos bolsos do casaco, só encontrando lenços ranhosos e uma caneca sempre-em-pé. Aos 69 comecei a olhar para as pessoas, à procura de uma gaja boa que assim se sentisse incomodada com o meu olhar e deixasse também de olhar para a tela. Isto demorou 5 minutos, sem resultados, altura em que uma mão por certo divina acendeu as luzes e libertou a minha consciência para ir apanhar arzinho frio na rua. Tão bom.

Quem quiser que escolha

"Anteontem na RTP, Cavaco fez de repente um comentário que revela o homem. A propósito do perigo de conflito com o primeiro-ministro, se fosse e quando fosse Presidente da República, Cavaco disse: "Duas pessoas sérias com a mesma informação (no caso ele próprio e Sócrates) têm (inevitavelmente) de concordar". Cavaco disse isto com toda a naturalidade e convicção, como quem declara uma evidência, sem uma reserva ou a mais leve sombra de ironia. Acha mesmo que sim: que duas pessoas só podem discordar por ignorância ou falta de carácter. Para ele, a verdade é unívoca e, pior ainda, não custa nada estabelecer. O fanatismo nunca falou por outras palavras e quem conserva um reflexo de independência e liberdade com certeza que as reconheceu pelo que elas são: a raíz da mais cega e absoluta intolerância. Estranhamente, ninguém pareceu dar pela coisa: nenhum jornal, nenhum candidato, nenhum partido, nenhum político - nem sequer uma "consciência" qualquer das que por aí sobrevivem, se de facto sobrevivem, à inanidade dos tempos. Não, ao contrário do que o dr. Cavaco julga, a democracia portuguesa não está "consolidada". Se estivesse, ele não era eleito.
Claro que as circunstâncias não permitem que o dr. Cavaco se torne num pequeno ditador. Mas talvez convenha perceber o indíviduo que dentro de semanas vai chegar a Belém. O velho desprezo pela política (de novo flagrante nesta campanha), sempre rejeitada como pura intriga ou jogo de interesses sem legitimidade ou desculpa, não passa de uma condenação sumária da gente pouca séria (ou incapaz), que desvia ou "bloqueia" Portugal. Para o dr. Cavaco, há um "bem da nação" indiscutível e uma única maneira de governar: a maneira honesta e sabedora que ele aconselha e representa. A divergência é, em última análise, anti-nacional. Se os portugueses tivessem no seu conjunto a sua informação e seriedade, viveriam numa perfeita harmonia, em vez de se deixarem levar para aventuras sem futuro, de se perderem em querelas de facção ou ganância e de servirem inconscientemente fins perversos. De Belém, Cavaco tenciona velar para que isso não volte a suceder. Afinal, se o primeiro-ministro não fizer o que ele manda, confirma automaticamente que é mal-intencionado ou que não estudou o que devia. E nós também, cautela. Se não o aprovarmos, quem somos? Malandros de nascença? Uma cambada de patetas? Quem quiser que escolha."

Vasco Pulido Valente, Público, 04/12/2005

Parabéns à prima

"A onda dos blogues vai já alta, já lá vai, como o governo do Santana, entenda-se. Porquê agora? Porque um gajo à sexta-feira à noite ainda no escritório lê um mail de outro gajo algures a tremer de frio no meio da Bélgica, com sintomas ténues de depressão pós-parto, e dá-lhe uma travadinha de partilhar as amarguras com o resto da comunidade que a esta hora está a jantar em frente à Quinta dos Flamengos. A solidão é fácil de definir: é quando milhões de pessoas estão a fazer o mesmo, mas ninguém nos lê..."

Foi com este texto que o Animatógrafo surgiu, fez ontem exactamente um ano. E um ano depois, o que é que temos?...

... a vida está uma merda (já estava, "apenas" piorou)
... o blog tem mais visitas (partindo do zero não é difícil)
... ninguém comenta nada
... alguns papuços querem ser Presidente da República
... alguns papuços querem melhorar as coisas
... alguns papuços estão mais pobres
... alguns papuços estão mais ricos
... muitos papuços estão desempregados (e eu para lá caminho com data certa)
... a vida está uma merda ("apenas" piorou desde há bocadinho)

Posto isto, e a pedido de 348 famílias monoparentais do sul do Malaui, vamos continuar. Eu e o meu alter-ego. Parabéns à prima.

Aurora (*****)

Nosferatu é um filme soberbo. De 1922, é considerado como a primeira adaptação cinematográfica do Drácula de Bram Stoker e, assim, o filme determinante para todo o cinema de terror e, mais especificamente, todo o cinema centrado no conde terrífico. Ainda que por mera sorte, Nosferatu chegou aos dias de hoje. Mera sorte porque as pouquíssimas cópias que existiam nos anos 20 estiveram em efectivo risco de serem destruídas, em virtude de uma quezília entre a viúva de Stoker e Murnau sobre os direitos sobre a história. A viúva felizmente perdeu, senão a História do Cinema era hoje narrada com outras histórias. Tive a felicidade de ver Nosferatu em tela, por generosidade da Cinemateca Portuguesa, nos tempos não longínquos em que esteve no Palácio Foz. Mais: vi Nosferatu com acompanhamento de piano ao vivo (e a preto e branco), acompanhamento esse determinado pelo que se ia passando na tela, experiência que recomendo a qualquer interessado por cinema. Nosferatu, além de um filme seminal, marca ainda uma visibilidade maior de F.W. Murnau, realizador alemão que viria a tornar-se mítico. Muito longe do cinema mudo refém dos personagens e das suas acções, constrangido por ter que suprimir a falta de som, o cinema de Murnau aproveita essa falha técnica para a expressão máxima da imagem. Muito longe da preponderância da expressão facial ou do argumento de Chaplin ou Buster Keaton, o cinema de Murnau pauta-se pela criação de ambientes, sensações ou emoções através da manipulação imagética no seu expoente máximo. O Nosferatu de Murnau é, assim, o mais perigoso e aterrorizador de todos, ainda que sem toda a carga dramática que lhe foi conferida no cinema moderno e contemporâneo. Em 1927, já com alguns filmes em carteira, o alemão F.W. Murnau é convidado pela Fox para fazer o seu primeiro filme norte-americano. O germânico colocou um enorme conjunto de imposições, entre elas a parceria com Carl Mayer, que viria a escrever o argumento. Sunrise (Aurora) estreou nos Estados Unidos em Novembro de 1927, apenas alguns dias antes da Warner Brothers estrear The Jazz Singer, o primeiro filme falado. Sunrise ganhou três óscares da Academia mas foi um enorme desastre nas bilheteiras. Mas muito mais que isso, ficou para a história como, possivelmente, o maior filme mudo de sempre e um dos maiores filmes da História do Cinema. A história é muito simples e não tem nenhuma originalidade por maior: um homem do campo casado é aliciado por uma mulher da cidade que se encontra na aldeia de férias. Tentado a matar a esposa e ceder, não consegue e reencontra o amor com essa mesma esposa, que o destino acaba por tentar matar da mesma forma que ele o havia pensado. Mas muito mais do uma trama irónica sobre pessoas, Sunrise é um objecto formal e substantivamente perfeito. Formalmente, Murnau fez muito mais do que um filme mudo. Quando se fala em afogar a esposa, são as legendas que também se "afogam". Quando o homem pensa na mulher da cidade, é ela que aparece em imagem sobreposta a afagar-lhe o cabelo, como um fantasma. Quando o homem se agita, a música marca compasso, numa antítese que sublinha a acção e cria um ambiente muito acima da imagem concreta. Os planos acompanham as personagens sem as cortar, num movimento que não depende do seu próprio movimento. Muito do trabalho de montagem, aliás, sobretudo na sequência de abertura, lembra O homem da camera de filmar, de Vertov, que apenas surgiria em 1929. Substantivamente, Sunrise filma um enorme conjunto de paradoxos. A aldeia versus a cidade, a cidade versus ela mesma, sendo que pode ser lugar de perdição ou de reencontro, a esposa versus a amante, a morte versus a vida, o destino versus a escolha. Não há, em qualquer acção ou imagem de Murnau, qualquer milagre. Todos os olhares contribuem para um Cinema que se eleva do filme, todos os movimentos geram algo que os transcende, todos os sorrisos partem de uma angústia que se supera. Num lirismo absoluto, a história daquele homem e daquela mulher estão continuamente a gerar uma história superior, que se forma na cabeça do espectador como algo sem âncoras e de carácter divinatório. Como se não fosse possível. Como se não existisse.

Nota: Sunrise (Aurora) está em cartaz no cinema Nimas, em Lisboa.

Frases demasiado boas para existirem II

"E até há uma ingenuidade que não é desagradável na ideia de querer absolutamente desviar os outros de balas perdidas."

Mafalda Ivo Cruz, Vermelho, D. Quixote, pag. 103

Cox & Forkum



John Cox e Allen Forkum são dois caricaturistas norte-americanos que se dedicam há anos ao cartoon editorial, sobretudo político. Forkum escreve e Cox ilustra. Ao contrário das práticas tugas neste aspecto, Cox e Forkum assumem que existe uma carga ideológica no seu trabalho. Mas não, não são democratas nem conservadores. São objectivistas, isto é, seguem o trabalho de Ayn Rand (de que falarei em breve). Os autores publicaram Black and White World e Black and White World II, e além disso mantêm um blog desde 2003. O Cox & Forkum Editorial Cartoons apresenta os ditos cartoons mas também a notícia ou informação, e respectiva fonte, que os inspirou. Ou por vezes aproveita cartoons antigos para novas notícias, fazendo, assim, uma interpretação da realidade a partir de material gráfico já existente. Conjugam assim a actualidade com o seu trabalho, quer actual quer anterior. O blog acaba por ser um óptimo site de informação e análise política, trazendo à liça (que termo tão bonito) textos que não nos chegam de outra forma. Sugere-se fortemente a consulta compulsiva, mais que não seja para ver os "bonecos". Ah, e é tudo a preto e branco, claro.

The Librarian

Keep you head down
Keep you head down
While they're firing low
You're too young child
To know the difference

Oh my pretty
Oh my sweet girl
It's a marvelous place
They put weights down
In your coat tails to burn you out

Lest you fly
Lest you take off
And show whomever what's what.
It's one outrageous lie after another

Turn their lights out
Change the channel
Before we lose the heart
To fight against belief in what they're saying

There's a hotel
With a dark room
At the end of a corridor
I will meet you
To the strains of Allah

We will lie back
On a pillow of the whitest snow
And the silence we were promised
Will engulf us

Lay your head down
Keep your head down
While they're firing low
You're too young child
You're too young child

We will wake up
From the dreams that bury us
We will tunnel our way out
By moonlight

From the dark room
To the white streets and the snow banks
We'll invest in one another's future

Oh my pretty
Oh my sweet girl
It's a marvelous place
She designed it
With escape routes
For you and me

So to the library
With your new card
Grab your favorite books
Look for blueprints
To the strains of Allah
Here we go.

Benevolence is in back
Of everyplace you look
It's not a monstrous face she is hiding

If I see her
I will tell you
You'll come quickly
If you see her
Don't hesitate just go

But til then

Keep your head down
Keep your head down
While they're firing low
You're too young child
You're too young child

You're too young child
Here we go.

The Librarian, Nine Horses, in Snow Borne Sorrow

Há 30 anos

Oiçam



Nine Horses, Snow Borne Sorrow

Emigrar

Recentemente almocei com uma familiar que não conhecia. Sabia da sua existência mas por golpes de sorte e azar nunca tinha ido à sua procura. Em fase que me obriga a maior proactividade, para não me armar em caracol no Inverno, marquei almoço via SMS. E ao longo de duas horas em que conversei com alguém que não conhecia como se conhecesse ficou uma ideia chave. "Queres um conselho? Emigra. Vai-te embora. Se queres fazer alguma coisa de ti mesmo, vai. Isto não merece. Vai-te embora. Mesmo que voltes, mesmo que seja só durante um tempo, mesmo que não vás fazer algo perfeito. Vai-te embora. Não penses mais nisso. Mandas beijinhos por telefone, vens cá no Natal, aguentas-te, mas vai." Claro que já tinha pensado nisso. E claro que já me tinham dito algo semelhante. Mas não igual. Tinham-me dito "não quer pensar em fazer alguma coisa lá fora?" e não "vai-te embora". Não tinham acendido o cigarro com um ar triste, reflectido no vidro, com um fundo de copos a encontrarem lugar no armário, com o empregado a olhar em volta para a ausência de início de tarde, com um ar de ameaça, de raiva chuvosa, que se apega à película brilhante que se forma nos olhos, em certos dias, com ar de claustrofobia a céu aberto, com ar de quem vê gaivotas e pensa no para-lá da tempestade, naquele espaço que não tem este reflexo aqui, que não tem este cigarro aceso automático, que não tem os ângulos rectos que habitam esta cidade e lhe promovem as arestas, que não tem esta vontade de ir mas de já ter ido, e já tudo tão tarde.

Gaiman, McKean



Esta é Helena. Tem 15 anos e trabalha para a família, no circo. Um dia pira-se e entra nas Dark Lands, zona de gigantes, pássaros-macaco e esfinges animadas. Este é o ponto de partida de Mirrormask, filme já estreado nos EUA e que aguarda por melhores dias para Portugal. Mais do que isso, filme que reúne dois dos mais interessantes nomes da literatura e banda desenhada actuais: Dave McKean e Neil Gaiman. McKean é ilustrador e criador de imagens extraordinárias, com tanto de bizarria como de ternura. Gaiman é escritor, autor de American Gods ou o novo Anansi Boys. Mas são os dois sobretudo conhecidos pelos projectos que desenvolveram em conjunto, sobretudo a premiada banda desenhada Sandman, que no original tem uns dez volumes e em português saiu agora o segundo, pela mão da editora Devir. E além disso, McKean e Gaiman editaram O dia em que troquei o meu pai por dois peixinhos vermelhos, livro infantil do melhor que se edita mundialmente. Se está a pensar no que é que há-de oferecer àquele sobrinho ou quer impressionar o filho da vizinha que está a tentar engatar (e assim impressionar a vizinha mesmo), não pense mais. É isto. O texto de Gaiman é soberbo, a começar pelo título, e o trabalho gráfico de McKean deixa qualquer puto parvo de boca aberta. Sintomático no trabalho dos dois é a grande tendência (digo eu, que não percebo nada disto) da BD actual: nada de quadradinhos, viva a liberdade dos rabiscos. Pelo que dá pra ver no trailer de Mirrormask, disponível aqui, o filme segue uma linha aproximada, ainda que menos arrojada (senão também dava em expressionismo abstracto). Mas já dá para ir salivando... E curiosamente, por cá já saiu um livro com todos os storylines e trabalho de concepção de McKean e Gaiman para o filme. Para quem quer saber como se faz um filme, e, no caso, um filme sui generis, é de comprar e ver com atenção. Ou oferecer a alguém lá de casa. Auto-prenda, portanto. E Anansi Boys, já disponível na FNAC por exemplo, parte do mote "God's dead. Meet the kids". Óptimo para mentes inquietas, adeptos do fantástico e especialistas em heranças difíceis.

O Animatógrafo pergunta X

Ficar desanimado depois de um dia que corre bem é paranóico?

Cinanima 2005



Mais uma vez a Culturgest, em Lisboa, teve a amabilidade de projectar os vencedores do Cinanima, festival de cinema de animação que decorreu em Espinho no início do mês. Para quem, como eu, era impossível ir passar uma semana a Espinho ver bonecos (ah, era bom...), ontem foi uma oportunidade de ouro. Mais a mais os bilhetes eram gratuitos e as duas sessões tiveram lugar no Grande Auditório, pelo que não havia desculpas. Ainda assim, na sessão das 17 horas estavam umas 50, 60 pessoas talvez. Número de crianças na sala: 4. É impressionante como os pais, pelo menos os pais da zona de Lisboa, perdem oportunidades destas. Muitos, de certeza absoluta, devem preferir que os meninos e as meninas fiquem em casa a ver a TVI ou então vão ao Colombo fazer tempo, porque está a chover. E depois fala-se à boca cheia da massificação dos media, da invasão da cultura anglo-saxónica, da violência dos desenhos-animados na televisão, da falta de eventos ou oportunidades para estimular os jovens cérebros com algo diferente. Vou repetir: estavam 4 crianças. Eram 17 horas, os bilhetes eram de borla, a sala tem óptimas condições e excelentes acessibilidades, nem chovia àquela hora. E aquela desculpa dos filmes não serem dobrados também não pega: a esmagadora maioria nem tinha falas, apenas som e música. Mas não, as crianças portuguesas não devem precisar disto. Pelo que apenas 4 crianças viram, por exemplo, um pequeno filme feito por outras crianças, de 12 escolas do concelho de Viseu, numa iniciativa de cariz privado mas com o apoio do Ministério da Cultura e da autarquia. O Animatógrafo aplaude todos os paizinhos que ontem levaram os seus petizes para o Colombo a tarde inteira, ou ficaram a dormir em casa enquanto os pequenos viam aquele DVD do Nemo pela décima quarta vez. Parabéns! Assim é que isto anda para a frente! Mas adiante: dos filmes premiados em Espinho que ontem passaram na Culturgest, em duas sessões, sublinho cinco. Primeiro Vent (Melhor Banda Sonora), não tanto pela dita banda sonora mas pelo que faz: brinca com os planos de profundidade e largura, mudando a percepção do espectador do espaço animado. Tem pouco menos de 5 minutos e duas personagens apenas desenhadas a preto, que combatem o vento forte que se faz sentir. Mas primeiro é uma porta que não quer abrir (largura) e depois uma janela que não quer fechar, por onde o espectador está a espreitar sem saber (profundidade). Depois As misteriosas explorações geográficas de Jasper Morello (Menção honrosa na categoria C), 27 minutos de ar gótico e origem australiana. O mundo é de dirigíveis de ferro e computadores que funcionam a vapor e Jasper Morello é um navegador que inicia uma viagem para tentar encontrar a cura para a peste que assola a comunidade. Marcado pelos cenários dantescos e as figuras apenas como mancha preta delineada, o filme cria uma atmosfera pesada mas não violenta, muito em virtude da estilização da imagem. Para fazer brilhar olhos, claramente. Mais curto mas ainda assim não menos substantivo, Overtime (do qual se retirou a imagem acima, prémio Melhor Primeiro Filme) apresenta dezenas de marionetas de ar sapudo que não compreendem a morte do criador e tentam mantê-lo no limite do possível, criando uma imagem triste mas afectuosa simultaneamente. Também com cinco minutos, Maestro (Prémio do Público) aposta na animação 3D pura e dura com um único cenário e uma câmera que roda sobre o mesmo de forma constante e cortada. No centro está um pássaro que é preparado para o grande momento por um braço mecânico que faz tudo, veste, limpa, penteia. Só que o grande momento não é nada do esperado e a surpresa gerou a maior salva de palmas da sala. Por fim, Milch (Grande Prémio Cinanima 2005) mantém uma bizarria constante durante 15 minutos, com personagens no limite da desfiguração e relações no limite da sexualidade. Brilhante trabalho sobre a luz (utilizando imensos planos contra-luz ou de grande contraste interior/exterior), o filme norte-americano pode merecer a distinção maior, mas é no mínimo perturbador e a prova de que o cinema de animação não tem as crianças como público-alvo preferencial. Para o ano, esperemos, há mais.

Oiçam



Gilles Peterson presents The BBC Sessions - Vol. 1

Howl's Moving Castle (****)

Há vários tipos de pessoas no mundo (é uma frase brilhante para começar um texto). Há as que gostam de Cinema e as que não gostam. E atenção, a maiúscula é propositada. Ou seja, não vamos falar das pessoas que gostam de filmes. Essas são a esmagadora maioria. Agora as que gostam de Cinema já são bem menos (das que não gostam nem de uma coisa nem de outra não vale a pena falar). De entre as que gostam de Cinema, há as que gostam de Cinema de Animação e as que não gostam. Uma boa amiga minha, por exemplo, não compreende o conceito de Cinema de Animação. Para ela, vai tudo no saco de "Desenhos Animados". Mas estes estão para o primeiro como os telefilmes para o Cinema. Estas distinções, aliás, dão casos curiosos na história do cinema, como X-Files, o filme, que era um excelente episódio para televisão mas de cinema não tinha absolutamente nada (partiu de um equívoco, portanto). Mas voltando atrás, este texto fará muuuuuuito mais sentido para quem gosta de Cinema de Animação, e não de Desenhos Animados. É assim como ter óculos: quem tem progressivos não tem simples, quem tem simples não tem progressivos. E portanto falar de progressivos a quem usa simples não serve de muito. A não ser que o pitosga tenha interesse em ter progressivos, e aí podemos explicar as vantagens (este exemplo era óptimo se não estivessemos a falar de um produto necessário, cuja escolha de uso ou não uso não é grande). Ora, para os que usam progressivos vamos falar de umas lentes do caraças, para os que usam simples vamos falar de progressivos, se um dia quiserem pensar nisso... Ora, os que usam progressivas das boas (isto é, gostam de Cinema e de Cinema de Animação) sabem porque é que gostam. Não, não é pelos bonecos. Não, não é pelas cores. E não, também não é por ser uma boa forma de ter os putos entretidos a olhar pro boneco durante duas horas. É porque o cinema de animação (globalmente, agora com minúsculas) cumpre um dos objectivos do Cinema: o da criação de Imagem (mais uma vez, diferente da crianção de imagens). Ou seja, a manipulação imagética que está na base da constituição do filme, seja desenho 2D, programação 3D ou plasticina, cria, efectivamente, um campo estético que não existia. É tal como a diferença entre Cinema e Filmes. No Cinema falamos do cinema de Godard, Eastwood ou Cronenberg, nos Filmes nem sabemos quem é o realizador, só sabemos o nome do filme, dos actores, etc. Como é óbvio, há correntes, nomes, estéticas. E a corrente, chamemos-lhe assim, mais conhecida e forte do Cinema de Animação é a japonesa, verdade de La Palisse. Não falamos, amigos das não-progressivas, do Dragon Ball Z, mas de Akira, não de Heidi, mas de Blood: The Last Vampire, não de Pokemon, mas de Spirited Away. Falamos de Howl's Moving Castle, que em tuga deu um literal mas não ofensivo "O Castelo Andante" (Spirited Away tinha dado um idiota "A Viagem de Chihiro"). Falamos, no caso concreto, de Hayao Miyazaki. O senhor Miyazaki nasceu a 5 de Janeiro de 1941. Em 1963 começou a sua carreira de animador no estúdio Toei Douga. Depois de muito trabalhinho, fundou o estúdio Ghibli, referência hoje mitológica no Cinema de Animação. O senhor Miyazaki criou Princesa Mononoke em 1997. O senhor Miyazaki criou Spirited Away em 2001, para depois criar Howl's Moving Castle em 2004. Spirited Away é possivelmente o que, dos três, mais incorpora todas as premissas da corrente do cinema japonês que o senhor Miyazaki criou ao longo de décadas: desenvolvimento gráfico arrebatador, com uma definição de personagens principais de aparência frágil mas substantivos na acção, cenas aéreas a torto e a direito, aproveitamento da mitologia nipónica panteísta, uma obsessão privada por porcos, visão optimista sobre a vida, espelhada no desenlace dos argumentos e na tentativa de um fundo pedagógico (e não pedagogo). O senhor Miyazaki, distinguido este ano no Festival de Veneza, repete a dose em Howl's Moving Castle, se bem que de forma não tão perfeita (o que poderá ser explicado pelo facto do projecto não ser originalmente seu e só o ter assumido quando o realizador inicial o abandonou?). Howl é um feiticeiro jovem, com uma enorme importância no reino. Para fugir a inimigos criou um castelo que se move, qual locomotiva sem necessidade de carris e com pernas de galinha, alimentado por um pequeno demónio do fogo que sobrevive na lareira acesa. Quem está dentro do castelo roda uma maçaneta, abre a porta e está ora na cidade real, ora no meio do nada, ora numa ruazinha da zona histórica. Em cada localização Howl tem um nome diferente, em cada localização vende feitiços para diferentes situações, como uma mercearia. Na multiplicação de egos, Howl perde-se do seu e é apanhado por uma guerra entre nações. No meio de tudo há Sophie, alvo de feitiço alheio que a deixou como velha de nariz pontiagudo e costas dobradas. Nos filmes de Miyazaki nada é o que parece: novos parecem velhos, alter egos pululam por todo o lado, rios parecem ruas, demónios parecem fogo de lareira. A estrutura dos argumentos baseia-se sempre na ilusão como factor primordial, em como essa mesma ilusão gera angústias, e essas angústias são superadas pela consciencialização da ilusão e pela recuperação de um estado "puro", inicial, "correcto". Sobre as antagonias dentro do seu trabalho, dizia o senhor Miyazaki em Maio deste ano que "this film is intended for a sixty years old little girl". E, portanto, é uma óptima oportunidade para as meninas de 60 anos que andam por aí deixarem as lentes fundo de garrafa e comprarem umas novinhas progressivas, para abrirem bem os olhos e fazerem aquele conhecido movimento de pescoço: "sim, sim, é isto".

Facto histórico indiscutível de quinta-feira à tarde

Está dia de terramoto.

Oiçam

Constança e o bicho

Acabou há segundos a entrevista de Constança Cunha e Sá a Cavaco Silva (à hora que escrevo este texto) e estou perfeitamente extasiado. Há dias assim: um tipo senta-se à mesa do jantar com uma sopa à frente e olha para a Constança, aquele ar levemente agreste, a puxar a um centro direita levemente idiota, e pensa "pronto, lá vai ela fazer um favorzinho ao cabrão". Ainda a colher não chegou à boca e o feijão não atingiu o palato e ela dispara. PUM! E engasgo-me antes de começar a comer só com o som que sai do televisor a precisar de um condensador novo. Segundos depois PÁS! e começo a sentir um formigueiro nos dedos dos pés, o sangue a correr livre sem varizes, um leve sorriso forma-se na sinapse que me comanda os músculos da face e evolui para um brilho vagamente demente nas meninas dos olhos, que dormiam. A coisa arranca e Constança não perdoa: PIM!, PRUMF!, TAU!, SPLASH! Ouve-se o bicho estrebuchar, primeiro engasga-se com o provincianismo acumulado nas gengivas a querer evitar uma ida ao dentista, depois ira-se e puxa de uns galões que não queria usar, depois perde reacção e vai dizendo que "passaram anos" ou um arrasado "não creio que tenha dito isso". Constança flui como uma ligação a 16Mbps reais, recorda frases de 1985, 1996, 1979, conversas antes dos governos de Soares e depois, textos desconhecidos, imagens criadas, tudo lhe sai como se tivesse estado décadas à espera do momento, como se fosse uma sombra que o tivesse seguido e agora gritasse todas as veias que se entrecruzaram, todas as incongruências, desmontando o tabu matemático que de tão abstracto escorre para o catatónico. Constança sente-se maior, é ali que tem que derrubar o monstro, é ali que sai da carcaça e o obriga a irritar-se, a lembrar o passado, a ir a jogo, não a dizer algo de substantivo mas a repetir o nada que lhe sai e que assim surge visível, como uma novem de fumo que se liberta de um pulmão condenado. E agora, aqui sentado, depois de meia hora ou mais em que o tempo se suspendeu e cada pergunta era mais perfeita que a anterior, em que bastava pensar no próximo ataque que ele já havia sido lançado, ao extremo de ter saído o que ainda não pensámos nem viríamos a pensar, agora, que gostávamos de ser uma grama do cérebro económico que habita aquele algarvio que pensa em si como Dom. Sebastião para assistir à ira irrevogável que o vai assolar durante largos minutos, agora dá vontade de transcrever tudo, todas as palavras, todos os olhares de indiferença de Constança, todos os esgares do bicho, todos os finais de frase sorridentes quando se lembrava o que o assessor lhe disse, "não se irrite, sorria, fale no bem dos portugueses, não se envolva emocionalmente, não lhe responda directamente", todas as memórias que acorriam para atacar, todas as memórias que não acorriam para defender, tudo, e imprimir milhares, milhões de cópias para ensinar as crianças portuguesas sobre: "como fazer uma entrevista a um filho da puta".

Sample



Ao trabalhar no Paint Shop Pro 9, quando queria clickar no botão Open enganei-me e clickei no botão ao lado, Browse, o qual nunca tinha utilizado. Abriu-se uma janela e surgiram miniaturas de umas dez imagens, o conteúdo da pasta "Sample" do próprio Paint Shop Pro. No meio de um cacho de uvas e de um balão de ar, estava esta imagem, identificada como "photo3". O que faz esta imagem numa pasta de samples? Quem são estas crianças? São sample de quê? E porque é que a imagem não tem identificação objectiva, estilo "oldpicture" ou "children"? Onde foi tirada a fotografia? Quando foi tirada a fotografia? Como surge agregada a um dos mais conhecidos softwares de imagem a nível mundial? Porque é que as crianças têm fato de cerimónia, com laço, e estão num descampado com arame? Onde estão hoje? São coisas destas que perturbam o dia de uma pessoa. Ao ver a imagem no TFT de 19 polegadas que tenho à frente, o rato dirigiu-se quase automaticamente ao Media Player e fez play em "Concerning the UFO Sighting Near Highland, Illinois", tema de abertura de Illinoise, obra perfeita de Sufjans Stevens. Aquelas crianças haviam de gostar.

Nippon Koma



Aos interessados se anuncia que entre 28 de Novembro e 3 de Dezembro a Culturgest apresenta Nippon Koma, festival de cinema japonês nas suas vertentes de animação e documentário. As sessões são às 18:30h e 21:30h, os bilhetes a 2 euros, o espaço é o do Pequeno Auditório e os filmes são legendados em inglês. A curiosidade é vossa.

Alice (****)



Há algo de assustador no consenso. Ou seja, quando milhares de portugueses vão ver um filme português e toda a gente diz bem, eu desconfio. Porquê? Porque estou habituado à ditadura da cultura de massas, até estudei a coisa, Adorno, Benjamin e alter. E também já me habituei (não me conformei, atenção) aos baixíssimos padrões de exigência dos portugueses face aos objectos culturais. Dizem-me: "não são só os portugueses, o resto da Europa é assim". Ok, ok, até pode ser, mas no resto da Europa os padrões serão TÃO baixos? Se calhar é a nossa (minha) mania de achar que lá fora é que é bom... Tudo isto para quê? Para dizer que fui ver Alice, de Marco Martins, com um misto de desconfiança e curiosidade. Estilo sobrolho franzido mas olho bem aberto. Primeira observação: a média de idades dos espectadores, que ocupavam meia sala, devia ser superior a 50 anos. O que é curioso, na medida em que deve ter relação directa com o tema: a perda de um filho deve chamar muito poucos jovens ao cinema, o que diz bem da visão redutora que os espectadores têm do cinema, em termos globais. Segunda observação: a primeira imagem de Alice é soberba. O que é mau. É mau porque das duas uma: ou a partir daí é sempre a descer, e "queimou-se" o olhar de quem vê logo de início, ou a partir daí se mantém o padrão, o que é improvável. E a felicidade dos dias é o improvável dar em possível. Alice é um olhar estilizado sobre a perda de um filho, não no sentido de desaparecimento efectivo e completo, de morte, mas antes como um fade out demasiado rápido para ser controlado ou desejado. Alice, a criança ausente/presente em todo o filme, já não está quando Marco Martins nos introduz aos dias cinzentos da segunda circular. Alice, a ideia de criança que ocupa a rotina de Mário (Nuno Lopes), é um fantasma que ocupa um espaço crescente no filme, da mera ausência à presença sentida pelo pai na baixa de Lisboa. Muito para além de um filme sobre uma criança desparecida, a primeira obra de Martins lança um olhar praticamente inédito sobre Lisboa, uma cidade cosmopolita contemporânea, com uma indiferença real, com multidões que enchem e esvaziam gares, sem romantismos de colinas ou de luz. Muito para além de Alice, a criança, Alice coloca a cidade debaixo de mira, filmada pelas cameras de Mário, num fluxo de imagens que se compõem e decompõem pelos olhos de quem vigia. Se a carga dramática estava assegurada pelos princípios básicos do argumento, a sua efectivação é conseguida pelos elementos que a devem carregar: pelos actores (Beatriz Batarda ao seu nível, Nuno Lopes a um nível surpreendente para uma estreia), pela banda sonora (Bernardo Sassetti sublinha todo o filme de forma crua e simples) e pela fotografia, retirando à cidade o que lá está mas raramente se vê, colocando na tela a indiferença que usualmente apenas tem olhos individuais. O facto de Marco Martins filmar algumas cenas sem figuração organizada, por exemplo, é sintomático: a indiferença perante um folheto com a imagem de uma criança desaparecida é real, é de portugueses reais, é uma multidão espontânea que vira a cara. É o outro lado do espelho.

Vidas Difíceis VI

"Um norte-americano que teve um ataque de pânico quando descobriu que estava colado à sanita da casa de banho de uma loja de materiais de construção vai processar a empresa em causa por negligência. O homem, oriundo do Colorado, afirma que o pessoal da loja ignorou os seus pedidos de socorro. O engenheiro eléctrico de 57 anos, Bob Dougherty, contou na quinta-feira passada que, dois anos depois do incidente, estava a sofrer de stress pós-traumático, que produziu complicações tão graves como a diabetes e problemas cardíacos, refere a Reuters. Desde os 20 minutos que passou colado à sanita que Dougherty reporta "pesadelos todas as noites, em que me vejo fechado num quarto escuro, sem janelas, portas, ar livre ou forma de escapar. Acordo coberto de suor". A empresa Home Depot Inc. não comentou o processo que foi interposto na semana passada em Boulder, Colorado. Dougherty disse que pensou estar a ter um ataque cardíaco quando se apercebeu que as suas nádegas e pernas estavam coladas ao tampo da sanita na casa de banho da loja Home Depot em Louisville, no Colorado".

in Público, pag. 62, 06/11/2005

Para ouvidos atentos a Antony recomenda-se...

que abram os olhos e vejam também Mysteries of Love e The Lake.

Depois do silêncio...

cá estamos. Eu e a minha esquizofrenia aguda.

Repetição

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai insistir na sua declaração inicial enquanto projecto profundamente anti-Cavaco sempre que isso se justificar.

Consciencialização

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai promover um trabalho de consciencialização dos portugueses sobre Cavaco Silva, sublinhando questões de especialidade do professor como:

1) - Provincianismo;

2) - Limitação e desinteresse intelectual;

3) - Ignorância sobre política internacional;

4) - Falta de capacidade de representação nacional;

5) - Inabilidade social genérica;

6) - Ausência de passado ideológico relevante;

7) - Outros.

Acção

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, vai enviar um generoso bolo-rei para casa de Cavaco Silva, acompanhado de repórteres de imagem e do Alberto João Jardim.

Sugestão

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, sugere que alguém informe Cavaco Silva que as eleições são presidenciais, e não legislativas.

Declaração

O Animatógrafo, enquanto blog preocupado e responsável, declara que é profundamente anti-Cavaco.

docLisboa 2005: El Cielo Gira (*****)

Premiado internacionalmente, El Cielo Gira é o primeiro trabalho de Mercedes Álvarez e parte de si mesma: a espanhola foi a última pessoa a nascer em Aldeaseñor, uma aldeia em Soria, no norte de Espanha. Outrora populosa, a aldeia que alberga inúmeros vestígios de dinossauros está hoje à beira da extinção, tendo apenas 12 habitantes, 14 à data de realização, segundo sublinhou a própria realizadora antes do visionamento em Lisboa. A particularidade de ter sido a última "filha da terra" serve a Mercedes, que abandonou o local muito pequena, como mote para revisitar os espaços e os sobreviventes, criando uma imagem forte da zona mais desertificada da Europa. A espanhola, envolvendo-se no trabalho de criação do documentário como objecto muito para além do mero registo de uma realidade, convoca elementos que a ele são estranhos, como o pintor Pello Azketa à beira da cegueira. É Mercedes que lhe pede para visitar a aldeia, é por sua sugestão que a percorre com as mãos e o velho Antonino como legenda sonora dos edifícios. El Cielo Gira converte-se assim, facilmente, de um registo de uma realidade palpável para uma sua interpretação e descodificação, à sombra da uma ideia de ruralidade perdida. Desde cedo, desde as primeiras palavras de Mercedes, que surge como narradora de estados de espírito e acontecimentos que não vemos, como a morte de um familiar, que se compreende que o trabalho de revisitação da aldeia é, em primeira instância, seu. E, no caso, pessoal. É a sua revisitação que fica registada enquanto documentário. O risco é, assim, grande. E só é suplantado porque esse olhar, que se reflecte em cada plano ou pausa, consegue transcender o seu carácter pessoal e ilustrar um sentimento de perda que varre vastas regiões da Europa mediterrânica. Quando o inverno chega à tela, já o olhar de El Cielo Gira é também o nosso, e não o de Mercedes apenas. Inteligente, a espanhola tenta fugir dos pormenores pessoais que não tenham significância global. E muito do trabalho para estabelecimento de uma relação com o espectador é feito pela imagem, pela definição estética dos planos, pela organização. Mais uma vez, como em Samagon, há uma dose de sorte com os personagens que habitam Aldeaseñor, idosos dotados de personalidades vincadas e de humor afiado, potenciado pela presença da lente. Mas é preciso saber filmar o acordar a meio da tarde, começando pelos gatos, passando aos cães, e acabando no levantar de sobrolho de Antonino, que logo regressa ao sono interrompido. O trabalho de Álvarez é respirado, dando espaço ao objecto documentado para se revelar, sem pressas mas sem excesso nas pausas, ponderado mas não mole. O resultado é um filme belíssimo e de uma simplicidade desarmante, quase natural nas suas formas. E, curioso, muito longe da imagem de auto-comiseração que graça na ruralidade portuguesa. É o definhar lento de formas de vida, sem dramas, mas sem alegrias.

docLisboa 2005: Samagon (*****)

São 12 minutos puramente fantásticos. Samagon, curta-metragem de Eugen Schlegel e Sebastian Heinzel, segue nas palavras, gestos e sorriso de Vera, uma velha no interior profundo da Bielorrússia. Vera vive numa casa de madeira de postal ilustrado, numa aldeia onde não há homens. Uns atrás dos outros, todos morreram deixando a sobrevivência às mulheres que restam. O tempo corre respirado. Ao amanhecer, Vera acorda para abrir a porta aos gansos que saem a posar para a camera. Ao anoitecer as janelas emanam uma luz de caramelo e Vera agita-se para lá da janela. A velha conta-nos como durante a II Guerra Mundial salvou a aldeia com uns copos de vodka. Apenas com 10, 12 anos, a criança Vera deu de beber aos soldados alemães que se preparavam para incendiar as casas, com a sua vodka caseira, conseguindo, na inocência rural da sua juventude, evitar a ira alheia. Vodka que nos ensina a fazer desde a primeira imagem: fruta cozida com aguardente e compotas, mistura coada que se acalma durante um mês junto a uma janela vendo nevar. Morre depois à luz da fogueira, destilada para uma garrafas que fazem a dona sorrir gota a gota. Se é verdade que é preciso ser-se feliz com as personagens que surgem num documentário, e disso os dois estudantes alemães não se podem queixar, também é verdade que tem que se procurar essa sorte e tirar dela o maior partido. Os dois jovens alemães (um deles presente no visionamento em Lisboa) fazem de cada plano uma imagem quase inigualável, quer cromaticamente, quer na sua simplicidade. Os 12 minutos de Samagon, que estão justamente incluídos na Competição Internacional do festival, convocam sentimentos e afectos, para além de cumprirem aquilo a que se cumprem: documentar um espaço, um tempo, os seus habitantes. Além disso, é a assumpção da ruralidade como algo não necessariamente castrador e depressivo, mas antes como um modo de vida com tempos diferentes, cuja respiração se vai perdendo nas sociedades contemporâneas. Ainda que viúvas, nem Vera nem as vizinhas são chorosas ou fechadas no seu casulo de idade. Têm consciência que é aquela a sua vida, e não enjeitam a hipótese de sorrir ou de beber mais um copo.

docLisboa 2005: Avenge but one of my two eyes (****)

É possivelmente um dos candidatos à vitória final no docLisboa deste ano. Avenge but one of my two eyes, que vai buscar o título às palavras de Sansão antes de matar 3000 romanos de uma só vez, é um filme mergulhado no conflito israelo-árabe, à procura das suas razões culturais mais íntimas. Avi Mograbi foge de Jerusalém e prefere filmar as montanhas de Masada, onde guias turísticos incorporam o papel de pregadores e tentam inspirar os curiosos com a lenda do suicídio colectivo naquele palco. Muito longe da abordagem comum sobre a questão, Mograbi tenta passar para imagem toda a crueza que existe no contacto com a realidade quotidiana, tanto do lado israelita como do lado palestiniano. Junto a uma estrada controlada por militares israelitas, um grupo de crianças aguarda a abertura de um portão para poder regressar a casa, enquanto os soldados limitam-se a estar no local sem qualquer acção. Antes, um grupo de palestinianos começa a lavrar a terra quando é interrompido por militares que afirmam que a zona está interdita. Numa escola, crianças palestinianas de 6, 7 anos descodificam a lenda de Sansão, que depois de torturado e sem forças, pede ajuda a Deus para uma última vingança, afirmando que preferem morrer e matar simultaneamente muitos inimigos a serem capturados. Mograbi filma faces, rostos, humilhações, em descampados longe de tudo, acentuando o surrealismo das acções. Interventivo, interpelando os militares, gritando, Mograbi sente o trabalho de imagem por dentro. Os pontos de fuga estão na longa conversa telefónica com um amigo palestiniano, tensa mas desencantada, equilibrando os momentos mais rudes com uma dose de racionalidade. O pano de fundo, no entanto, é sempre a raíz histórica da questão, da luta judaica pela liberdade em Massala à resistência palestiniana inculcada em casa criança pelos cabelos de Sansão. Mais do que um conflito bélico, político ou religioso, Mograbi mostra um conflito histórico e cultural, degladiado nas palavras de uma professora primária e nas explicações de um guia turístico, quase que cirurgicamente implantado no estomago de quem quer ouvir.

docLisboa 2005: Nous/Nihna (***)

Mais do que um documentário, os 13 minutos de Nous/Nihna (Nós) tentam criar uma imagem de afecto. A libanesa Danielle Arbid filma o pai na consciência da sua morte e tendo presente a arma que sempre os dividiu. De natureza pessoal e quase intransmissível, Nous só chega a documentário pela forma como coloca a questão dos afectos humanos, em momentos respirados de imagens que ficarão como memórias. A arma que dormiu anos a fio debaixo da almofada do pai de Danielle ganha um espaço de personagem central, apesar de apenas surgir no início, de rompante. É a arma que nos diz que estamos no Líbano, é a arma que nos diz que entre aquele pai e aquela filha há separações insondáveis. Ainda assim, Nous é mais um documento do existir do que do propor, uma reflexão muito breve sobre o que está.

docLisboa 2005: Before the flood (***)

Depois de um dia de descanso forçado (por falta de bilhetes), voltei ao docLisboa para ver Before the flood, trabalho de Yan Yu e Li Yifan sobre o desalojamento de milhares de pessoas na cidade histórica de Fengiie. O pano de fundo é o maior projecto hidroeléctrico do mundo, a barragem das Três Gargantas no rio Yangtsé, que deverá estar concluído em 2009. No entanto as águas já sobem desde 2002 e foi antes disso que os dois chineses andaram atrás de compatriotas a registar todo o processo de destruição de uma cidade, mais do que o de construção de outra. Pode dizer-se que Fengiie é China profunda. Construída na margem do rio, ao longo de uma enorme serra com acentuado grau de inclinação, constitui-se como um aglomerado de habitações sub-humanas que cresceram a partir da porta com arco que marca a presença fundadora. O filme, sem narração ou qualquer tentativa explicativa, limita-se a registar e seguir os habitantes durante todo o processo de abandono dos espaços. A maior parte dos edifícios são deitados abaixo à marreta, estando a implosão reservada para uns quantos de dimensão considerável. Mais um documentário cru e sem preocupação para além da de mostrar a realidade, Before the flood acaba por criar a imagem de uma China sem neons nem bicicletas a circular, um país onde os produtos chegam de barco e são carregados aos quilos escadaria acima, nos ombros dos homens. Panelas fumegam à entrada das casas. Entalada pelo crescimento caótico, uma igreja cristã protestante, erguida em 1905 por um missionário anglicano, tenta apaziguar as almas que desistiram das igrejas clandestinas mas não vêm Buda como a orientação suprema. Fengiie, à beira da destruição total, é um espaço de conflito unipessoal iminente, pela falta de oportunidade de uma vida nova noutro lado, pelo sentimento de abandono por parte do "partido", onde cada discussão começa com "camarada" e acaba com insultos e agressões descoordenadas. Fengiie transforma-se, ao longo de todo o filme, num cenário de guerra sem balas, à espera da grande inundação, condenada, como um fantasma que se concretizará no silêncio absoluto e perpétuo. Mesmos os mais resistentes, mesmo os que empilham os tijolos inteiros que sobram das implosões o sabem. Yan Yu e Li Yifan acabam por aproveitar algo que se documenta a si mesmo, limitando-se a seguir o ritmo dos acontecimentos e concretizar planos que poderiam escapar ao olhar de quem lá estava. Os 143 minutos são exagerados, e o trabalho dos dois chineses pode pecar sobretudo por aí, por querer uma exaustão que não era necessária. A montagem é competente e a escolha dos "personagens" a seguir é feliz. Não sendo um objecto esteticamente arrebatador, nem sequer completo nas suas diversas vertentes, Before the flood mostra aquilo a que se propõe com rigor. E às vezes não se pode exigir muito mais.

docLisboa 2005: D'Est (***)

Era o filme de Chantal Ackerman que faltava passar em salas portuguesas. Datado de 1993, D'Est vai à procura do Este europeu, da Alemanha à Rússia, passando pela Polónia e destinos que tais. Sem nunca os identificar, e sem qualquer preocupação de situação geográfica ou narrativa, Ackerman filma paisagens rurais e urbanas na tentativa de criar a imagem do Este. O plano-sequência é o recurso primordial do trabalho formal da francesa, ao longo de 107 minutos de silêncios, rostos, neve, edifícios desancados pelo tempo. Não há frases, não há histórias para além das que as faces das mulheres deixam ver, numa paragem de autocarro enterrada num Inverno profundo e castrador. Muito longe do estilo de documentário como "grande-reportagem", e muito próximo do cinema enquanto espelho estilizado da realidade, D'Est cumpre-se como exercício de estilo de natureza estética vincada. Ou seja, é muito bonito mas com pouco sumo. As imagens são soberbas, e a realizadora goza da cumplicidade dos "actores reais", que assumem a consciência da camera com olhares esguios mas não se deixam perturbar na sua tranquilidade. Há poucos sorrisos, nenhumas facilidades. Os rostos são limpos. As cidades têm avenidas largas e largos descampados entre edifícios que contrastam do cinzento pela tinta descascada. Os corpos deixam-se estar nas gares à espera. As árvores agitam-se nos intervalos de um carro que passa de tempos a tempos. É um Este desencantado, fechado sobre si, com o peso da história a espreitar em cada esquina que não chega ao plano. Não há guerra. Há uma paz estática de entre-épocas. Há o reconhecimento de uma dimensão geográfica com significado a partir do termo que a designa. Ackerman, honra lhe seja feita, consegue retirar todo o potencial estético das imagens que no quotidiano nos escapam. Mas a ideia de querer mostrar a realidade como ela é, sem mais, de forma nua, sem roupagem, produz um filme também ele nu, baseado em longos planos que se reduzem, muitas vezes, à sua própria beleza. Documentar não é apenas mostrar, é também contar. D'Est mostra muito, mostra muito bem, mas conta pouco.

docLisboa 2005: Rize (****)

NOTA PRÉVIA: O Animatógrafo, como não podia deixar de ser, está presente no docLisboa 2005 como espectador. O festival vai na sua terceira edição, já se sente confortável na Culturgest e cresce a olhos vistos. O programa é vasto e variado, e o tempo curto. Como é mais do que óbvio, o Animatógrafo não vai ver tudo, nem perto. Vai tentar estar numa sessão diária, pelo menos. É uma amostra da totalidade dos documentários que estão a passar, e perfeitamente subjectiva, não foi seguido nenhum critério para além do mero interesse pessoal do autor destas linhas. Assim sendo, esta semana é inteiramente dedicada ao docLisboa 2005. Que já começou no sábado...
----------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Muito possivelmente, já viu fotografias de David LaChapelle numa revista qualquer. Conhecido como fotógrafo de Hollywood, LaChapelle é presença contínua nas mais conhecidas revistas de moda e cinema norte-americanas e britânicas. Ao que parece, está a acabar ou já acabou o video-clip do primeiro single do novo album de Madonna, a sair até ao fim do ano. E, portanto, o nome era mais do que razão suficiente para ver Rize, mais do que não fosse para ver como é que o homem faz um documentário que não tem nada das luzes e bling-bling de Hollywood. De camera digital na mão, LaChapelle desceu das colinas e seguiu direitinho aos bairros problemáticos de Los Angeles, nomeadamente South Central. E a realidade é que a onda do hip-hop gangsta de 50 Cent e companhia limitada não mora ali. As comunidades negras que dominam a zona por completo, em termos de ocupação urbana e social, dividem-se, no que às suas gerações mais jovens diz respeito, em duas actividades: o crime organizado, em regime de gang, e o clowning e krumping. Mais uma moda? Dragon, de lenço na cabeça e pinturas na cara, jura que não. Basicamente, a história conta-se com um palhaço ex-presidiário, Tommy, festas de aniversário para crianças e a vontade de fugir a uma vida de arma na mão. O resultado é um movimento de dança e expressão que parece querer dominar os holofotes nos próximos tempos. Com uma estrutura musical semelhante ao hip-hop, o krumping é uma forma de dança que se aproxima de forma perigosa dos rituais tribais de Chaka Zulu. A rugir. O nível de "fisicalidade" é extremo, a velocidade dos movimentos quase tecnológica. Nos primórdios do rap, que viria depois a dar origem ao hip-hop, a palavra de ordem era "revolta". A segunda geração das comunidades suburbanas, de natureza maioritariamente negra, sentia-se oprimida e criou um movimento, que viria a descambar no "mainstream" que hoje se regista, para alertar, contestar, protestar contra a natureza das coisas. Como era de esperar, o rap evoluiu para um hip-hop agressivo na rima e na bala, para tomar o que "era de direito" a qualquer preço. O pano de fundo na South Central de hoje é parcialmente semelhante. O krumping é também uma forma de protestar, contestar, alertar. Mas contra os gangs. Qual consciência interna dos bairros, que vai ruminando lentamente, o movimento tomou de assalto "os putos lá do bairro" que não querem acabar como o pai ou o irmão mais velho. Rize é um trabalho visual soberbo de LaChapelle. Ok, é fácil filmar um corpo num movimento quase antes nunca visto nas sociedades contemporâneas, os músculos entram pelos olhos, a face agride-nos. Mas LaChapelle monta todo o documentário respeitando os pressupostos de uma tragédia grega, com os seus altos e baixos, com os seus heróis e vilões. O resultado é ligeiramente tendencioso, mas com todos os ingredientes para deixar o espectador rendido, quer em termos formais, quer no que diz respeito à informação documentada e transmitida, quer relativamente à especificidade de cada "actor". O realizador vai dando voz a cada um dos marcos do bairro como se retratasse uma contenda, em que é necessário ouvir todas as partes. E parece que estão todas do mesmo lado. Mas estando o krumping em mutação diária, quase como que um caminho de ascese individual por via do corpo, cada um tem a sua teoria. Cada um o seu krumping. Rize é um documento poderoso sobre a relação de cada um com o seu corpo e a forma como esse mesmo corpo é um elemento determinante na forma de relacionamento com o meio urbano. Da mesma forma que os guerreiros de Chaka Zulu eram corpo em acção simbólica, os putos de South Central são corpos em acção contra a lei da bala. "É o guetto ballet".

PS: Rize estreia comercialmente em Novembro.

Animais Domésticos

Letizia Russo tem 22 anos, se a memória não me falha. Parece que entregou um trabalho escolar, o qual lhe pediram que adaptasse para teatro. O resultado valeu-lhe um prémio de nível nacional. A italiana tem andado, desde então, de cidade em cidade europeia, a convite, a escrever umas coisas. "Animais Domésticos", em cena no Teatro Nacional D. Maria II até dia 23, foi criada dentro desse espírito e propositadamente para os Artistas Unidos. Com bolsa da Gulbenkian, Letizia andou a passear pelo Martim Moniz e Intendente, à procura de material. O resultado é francamente bom. Na prática, "Animais Domésticos" procura os tiques e demências de um grupo de sem-abrigo, em busca de algo tremendamente perdido. Enquanto reflexão de um olhar estrangeiro sobre Lisboa e os seus "animais", o texto é de uma crueza e simplicidade assumidos, alicerçando o seu ritmo no surrealismo das personagens, nas suas obcessões e angústias. Entre meia dúzia de maluqueiras, lá sai uma verdade verdadinha "à tuga". A ideia de que "lá fora é melhor", por exemplo. Ou os encontros de velhas guerras e amores em funerais alheios. Russo capta um conjunto de manias e dá-lhes uma roupagem actual e ao mesmo tempo abstracta, inserindo breves reflexões sobre a natureza das coisas e da linguagem, como a ideia de cada coisa com seu nome, e que esses nomes se aprendem e ensinam, mais do que o seu significado. O humor surge naturalmente da construção do texto e das potencialidades que dele surgem para o trabalho da encenação. A noção de uma história por detrás de cada personagem é levada ao limite e utilizada como objecto de construção das paranóias individuais, sendo o pano de fundo a verdadeira análise exterior a "tuga city". O trabalho dos actores é primoroso (sendo que Sylvie Rocha está uns furos abaixo do resto do elenco). Mais do que não seja pela curiosidade de ver Lisboa pelos olhos de um estrangeiro, "Animais Domésticos" merece uma visita ao D. Maria II.

Última Chamada (***)

Takashi Miike é pouco conhecido do público em geral. A maior parte dos filmes nunca passaram no circuito comercial português, limitando-se a aparições anuais no Fantasporto. No entanto, quase toda a gente sabe que "The Ring", o pseudo-terror norte-americano, é um remake de um "Ringu" japonês, supostamente muito melhor. Ora, "Ringu" é de Miike. E terá sido sobretudo por isso que alguém decidiu estrear "Última Chamada" agora em sala, se bem que apenas numa (deve ser a título de experiência, ou coisa que o valha). Ora, meus amigos, se vão ver o filme à espera de ter medo, ter muito medo, desenganem-se. Porque, para que fique bem esclarecido, "Última Chamada" é Série B da boa. E isso é só para quem gosta. Ou seja, os pressupostos são idiotas (uma chamada perdida de telemóvel que anuncia a morte numa mensagem deixada), o desenvolvimento é tótó, a musiquinha que toca não mete medo nem a um pastor de cabras e as faces assustadas dos japonocas são uma caricatura. É "Última Chamada" um mau filme? Não, longe disso. Não se pode é esperar do vermelho que seja verde. Há que referir, ainda assim, que o pressuposto base do argumento é o mesmo de "Ringu", o que deixa um pouco a desejar. E que Miike já fez cinema mil vezes melhor (sobre isso escreverei em breve). Mas para quem gosta de série B, "Última Chamada" é um bom exercício cinematográfico. Não é caricatural nem exagerado como o de Carpenter, mas ainda assim saber que o monstro levanta a mão e agarra o braço alheio dentro de cinco segundos é um bom divertimento. Miike parece que não sabe filmar mal, e consegue ainda dar umas alfinetadas na sociedade contemporânea e nos seus media, com a tentativa de uma morte "em directo" na TV. No fim de contas, é um divertimento que nem todos se podem dar ao luxo. Ou melhor, muito poucos. Já estou a ver o remake norte-americano da coisa, com pretensões de terror. Aí sim, tenham medo, tenham muito medo!

Facto histórico indiscutível de sexta-feira à tarde

Um hipocondríaco não deve ver documentários sobre disfunção eréctil.

Morte

Calma, calma, não morreu ninguém (se exceptuarmos o Sr. Avelino Coecas e a D. Maria Tomásia que vinham no obituário do DN de ontem). Ora, aqui o vosso amigo vem de uns exames de otorrinolaringologia. No caso, aos ouvidos. Parece que sou um maluco que acha que está a ouvir pior do que seria desejável (apesar do médico dizer que está tudo bem). Ora, no exame em causa, depois dos bips e baps e da rapidez no gatilho, surge uma voz que vai dizendo palavras, as quais o suposto surdo, no caso eu, tem que repetir à simpática senhora de bata branca que vai escrevendo uns rabiscos. A voz pareceu-me de um tipo qualquer da rádio. As palavras são foneticamente pensadas para gerar dúvidas, claro, e ouve-se muito baixo. Ora, começámos: "louça", "murro", "roupa", "tudo", "prato". E eu fui repetindo, "louça", "murro", "roupa", "tudo", "prato", com a voz colocada que o senhor tinha, firme, muito longe, como aquelas chamadas da PT para a Austrália há 20 anos (que inda hoje fazem com que muito boa gente berre em vez de falar quando liga para o estrangeiro, por lapso freudiano, como a minha progenitora). E estávamos nisto, "seio" (sim, é verdade), "monte", "faca", quando


morte


e eu


morte


e a voz, baixinha, seguiu, "cume", "rua", "sala". Depois no ouvido esquerdo, "fita", "mão", "pêra" e


morte


e eu


morte


e, caraças, ouvir "morte" assim, muito baixo mas firme, colocado, como se alguém tivesse dito "morte" nas caraíbas e só eu ouvisse, como se fosse um anúncio escondido na gravação, como se a palavra devesse ser "batata" ou "cavalo" e eu ouvisse "morte", caraças, aquilo deixou-me a ouvir melhor!

Vidas difíceis V

21 anos depois, tudo na mesma

"José António Saraiva vai abandonar a direcção do semanário "Expresso" para assumir um cargo na coordenação editorial do grupo Impresa, avança a edição online do "Jornal de Negócios". De acordo com a agência Lusa, o novo director do semanário deverá ser Henrique Monteiro, actual subdirector.

Segundo a Lusa, o nome do actual subdirector já foi escolhido pela administração do grupo Impresa, mas só amanhã será proposto ao Conselho de Redacção.

José António Saraiva dirigia o "Expresso" desde 1984."

Público Última Hora

Vince, o deprimido

Ora, estava eu muito bem a ver uma palhaçada, só com palhaços ricos, e uma moça loira surge a falar numa "tempestade tropical" a dirigir-se para Portugal. Como as moças loiras muitas vezes não são de confiar levantei o sobrolho, mas a imagem de satélite não deixava grandes dúvidas: era uma bola branca enorme, com um buraquinho ao meio. Primeiro pensamento: "m..., eu sabia que devia ter mudado o seguro do carro para abranger tempestades tropicais". Segundo pensamento: "m..., eu sabia que devia ter comprado três vezes mais gelados da Haagen Dazs". Terceiro pensamento: "m..., eu sabia que devia ter ido de férias antes do país ser varrido do mapa". E depois o Instituto de Metereologia e Geofísica português vem dizer que não razões para preocupação. O pânico. O desespero. Lembro-me de ter uns 3, 4 anos e o honorável instituto avisar que ia haver uma tempestade muito forte na zona de Lisboa. O resultado foi uma tarde encaixotado na creche camarária, com portas e janelas diligentemente fechadas, enquanto os pardais saltavam de ramo para ramo aproveitando o sol quentinho nas penas e o silêncio nas ruas. Há minutos, o Público dizia que "em comunicado, o Instituto de Meteorologia informa que a tempestade tropical "Vince" diminuiu de intensidade, "sendo considerada uma depressão tropical" a partir das 09h00". É fantástico como até um projecto de furacão, com os seus objectivos e sonhos, com a sua puberdade a rebentar, se deixa deprimir com a aproximação a terras lusas. Deve-nos ter topado à légua... E já agora, porque é que uma tempestade tropical se chama "Vince", um nome claramente masculino? Mudou de sexo? Estava já a pensar em ser furacão que antecipou-se? Se as coisas estivessem no seu devido sítio, até ser furacão Vince devia ser Felisberta ou Leontina, ou Bertolina como a minha vizinha do rés-do-chão. Depois sim, se chegasse à adolescência, podia mudar para Vince, se quisesse. Se calhar foi por isso que se deprimiu, era uma tempestade num corpo de furacão...

Nelken (Cravos)

Primeiro que tudo, breves considerações preparatórias. Não sou um "homem da dança". Isto é, o meu conhecimento do meio, dos coreógrafos, dos artistas, dos métodos, da história, é diminuto. Mais: não era particularmente sensível à questão. Sobretudo porque sempre me fez muita confusão enquanto forma de expressão, quer plástica, quer artística, quer comunicacional. Confusão como? Confusão no sentido da total subjectividade (e estou aqui a falar de dança contemporânea, nao de ballet clássico). Ou seja, porque é que mexer o corpo como um epiléptico significa qualquer coisa? Porque escrever, ou representar, nós compreendemos, o tipo tá ali parado, ok, faz cara de triste, o tipo escreveu que a mãe morreu, ok, percebe-se. Agora o tipo mexeu o braço e depois caiu. E? Pois. Pois é. Pois era. Em termos globais, parece-me que é tudo um problema de media. Palavras, nós percebemos, foram feitas para comunicar ideias. Imagens, ok, é para comunicar, mesmo que seja para comunicarem-se a si próprias. Corpo? Pois, corpo, parece que é para andar, para existirmos. E portanto há uma resistência enorme ao corpo como media. Caramba, se há uma resistência aos livros e lemos pouco, ao corpo então... Pois era. Ora, comecei a interessar-me pela área e a tentar quebrar resistências quando se atravessou no meu caminho (imagem fatídica romântica esta) aquela que hoje é a jovem que me atura as manias, vai para uns anos. A jovem, de sorriso lindissimo, tinha feito dança e tinha uma curiosidade atroz pela mesma. Ainda hoje, felizmente. Vai daí, o meu cérebro ligou umas quantas sinapses e chegou a uma conclusão: ou a jovem é maluca e aquilo são uma cambada de malucos a esfregarem-se no chão, ou eu não percebo nada disto. E como a probabilidade da segunda hipótese era muitissimo superior, fui tentando quebrar barreiras a pouco e pouco. Pois. Hoje, não sendo um "homem da dança", já consigo compreender o corpo como media. Considero mesmo, aliás, que é o media mais complexo e interessante com que se pode trabalhar hoje na área de produção artística. Posto isto, o essencial. Vi "Masurca Fogo" no CCB, nas galerias de pé, sozinho, enquanto estudante universitário, em 1998. O nome Pina Bausch não era mais do que uma referência vaga, um fantasma, uma associação. E "Masurca Fogo" era a tradução de muita coisa: da visão de alguém estrangeiro sobre nós, da dança e das suas possibilidades actuais, da interacção da mesma com o teatro, da visão de Pina sobre o mundo. Lembro-me de me doerem terrivelmente os joelhos e de ter um sorriso idiota na cara, de quem compreende que está perante um objecto artístico e cultural único. Lembro-me da figura giacometiana de Pina no fim. Por tudo isto, cada vez que se fala de Pina Bausch em Portugal, a minha glandula salivar que ainda funciona (a outra ficou irreparavelmente entupida no ano da graça de 1980) lembra-se de um senhor chamado Pavlov e vai disto. Desta feita, Pina não facilitou e trouxe dois espectáculos a Lisboa. Nelken (Cravos) data de 1982. O palco foi invadido por flores cuidadosamente espetadas e uma figura de pernas maiores que tudo surge semi despida com um acordeão que nunca tocará. Um homem de fato e gravata centra-se no palco e traduz "The man I love", de Gershwin, em linguagem gestual. Depois há bailarinos com vestidinhos de menina a fugir pelo palco. Há alguém que insistentemente pára a acção para pedir um passaporte e humilha quem o tem antes de o devolver. Há um homem que mostra posições de ballet clássico e pergunta: "é isto que querem? eu dou-vos, é isto?". Há cães que ladram quando surge um determinado som, rodeando corpos que ora são corpos, ora são actores a jogar como crianças. Nelken (Cravos) é pura Pina Bausch: os problemas de comunicação estão lá, a conjugação de teatro com dança está lá, a reflexão sobre os caminhos da própria dança e as suas possibilidades está lá, a tragicomédia do absurdo está lá, a utilização de outros media está lá, a crítica política e social está lá. Nelken (Cravos está ligeiramente datado, sim, em 1982 ainda havia muro de Berlim, controlo de passaportes, contestação às novas formas de dança emergentes, dúvidas sobre os caminhos a seguir. Nelken (Cravos) é o embrião do que viria a ser Masurca Fogo 16 anos depois. Não vi Ten Chi, não se pode ganhar tudo. Mas parece que quase todas as revoluções se fazem com cravos.