Londres e Oxford: as fotografias





Das mulheres que dormem de boca aberta

Uma mulher que dorme de boca aberta é um fantasma moderno. Enquanto um homem que dorme de boca aberta parece apenas idiota, uma mulher transforma-se num ser abstracto, que tanto pode apelar à dimensão estética do oculto, como revelar-se uma borboleta esquecida da natureza nocturna, à espera de ser resgatada. Existem vários tipos de mulheres que dormem de boca aberta: as que mostram apenas os dentes nos combóios da CP, subtis, de tez lânguida e envergonhadas no sono, que não apelam a nada sensual; as mulheres-macho que imitam o Felisberto de S. Paio e se escancaram ao oxigénio, colocando as amígdalas a arejar, eliminando assim quaisquer pólipos mais resistentes à Aldeia Velha nas cordas vocais; as que intercalam o ângulo de 30 graus quando vão no lugar do morto com uma boca erradamente fechada, oscilando entre o desejo sexual pelo ar que entra na janela e a reminisência da chucha de borracha castanha da sua infância tardia. E depois as que apelam a lugares pouco comuns da literatura, movidas na noite por um leve arfejo do peito, como que espantadas mas convencidas, num limbo dir-se-ia psicosomático, a assomar a substâncias apenas ligeiramente narcotrópicas, como o alecrim. Estas, as mais raras e assim as mais sensuais, exalam um odor pela pele que difere do reflexo da luz na ria de Aveiro por meros quatro cromas, e levam qualquer homem à loucura, tomado em si por um nível de ternura insuportável mesmo para os mais maricas. Vários estudos comprovam que uma larga percentagem de homens com problemas de insónia documentados são precisamente testemunhas destas visitas fantasmáticas e, tolhidos no seu sono por tal imagem, desaparecem do campo do descanso para nunca regressarem verdadeiramente. O número destas mulheres está em queda, sobretudo em países com filmografias menores, como a Moldávia (onde predominam as Mulheres que cultivam o buço, o que cria um peso extra que obriga a boca fechada) ou as Ilhas Canárias (que, não sendo um país, convoca-se como microcosmos onde as mulheres, quando de boca aberta, não dormem nem deixam dormir). Um fantasma que dorme de boca aberta é uma mulher moderna.

A terceira perna

É oficial. Alguns homens, perante a puta da idade, perdem a compostura e compram um descapotável em segunda mão, ao mesmo tempo que furam uma orelha. É a auto-intitulada "crise de meia idade", uma substância narcotrópica que se entranha pelas virilhas e afecta uma percentagem substancial de seres humanos, cuja maioria arranja ainda uma amante em Santa Íria ou Massamá, com quem dá "umas voltinhas" às terças e sextas. Ora, parece que saltei uma fase, como quem se esquece de tomar a pílula na semana fértil, e subi imediatamente ao escalão da "terceira idade". Senão vejamos: não consigo dormir com problemas respiratórios, o que inibe o desejo sexual de qualquer um (tirando os que retiram orgasmos de tais fantasias como sufocação com sacos de papel gordurentos); passei a tarde numa sala de espera com papel de parede com jarras e uma televisão pequenina, na qual a Júlia Pinheiro surgia mais gorda mas anã, a ler a revista da Ordem dos Farmacêuticos ou a Notícias Magazine de 4 de Março, esperando ansiosamente que uma voz aguda que me viesse chamar através de um sistema de som amarelado pela tosse; perante as notícias de um senhor já senil com uns óculos pequeninos, que me reconhece com a expressão "não vem cá há uns anos valentes", saí à rua cabisbaixo, a pensar na farmácia mais próxima, onde viria a gastar o equivalente a meia reforma, escutando atentamente os conselhos de uma directora técnica divorciada que, entre outras perguntas, indaga pelos "diabretes"; à porta de casa, a excedente senhora da limpeza olha de lado enquanto mancho o mármore do patamar com os sapatos poídos, e o vizinho do terceiro andar passeia o bulldog inglês asmático entre sorrisos de controlo; o jantar resume-se a uma "sopinha", "que faz muito bem", e o gato, redondo, dormita numa cadeira entre uma primeira parte seca do Sporting e a máquina de lavar roupa que ronca intermitentemente.
Se tudo correr bem, amanhã levantar-me-ei cedo, "porque não consigo dormir mais com as dores nas costas", digo "bom dia" à miúda gorda da padaria que espreita o movimento da rua antes das nove à sombra de um Português Suave, cruzo-me com o carteiro que me ignora, e passo a manhã escondido atrás de "A Bola" na leitaria do mercado, para me surpreender perto do meio dia com as horas e regressar, calmo, a pensar que qualquer dia uma bengala não era assim uma ideia tão má.

Londres: as fotografias












És mesmo tu, PJ?

PJ Harvey, The Mountain, no novo White Chalk

P... que pariu!

Assim, prostrado à insignificância de uma rinite, gozado de dentro para fora sem uma mulher, apetece-me escrever sobre o Mourinho, sobre o docLisboa, sobre o Mendes e o Menezes, sobre o cadáver rarefeito da Maddie (prós amigos), sobre o novo dos Coldfinger e dos Blonde Redhead, sobre flores artificiais e sobre velhas ricas, e gajas inglesas. E só me vêm palavrões à cabeça.

Insónia, falta de ar

e este blog afoga-se em seco. É nestas alturas que eu gostava de ser garoupa.

Londres: as fotografias

Em breve.

Roma - as fotografias






Londres

A partir de amanhã, uma imagem cosmopolita com pouco sol.

Como diria Hiládio Clímaco

"Caraças!", que estou mesmo de férias!

Retrato de Maomé enquanto cão



É isto o motivo de tanta coisa.

Manderlay (****)

Lars Von Trier surgiu aos olhos do mundo com Europa, em 1991. Em 1994 surgia o perturbador The Kingdom, mini série de televisão que continha já os elementos que viriam a constituir a base do movimento Dogma95. Breaking the Waves, em 1996, revelou não só uma até então desconhecida Emily Watson, mas também a tendência de Von Trier para rupturas, experimentações e demais atitudes semi-vanguardistas. Em 2003, já depois do aclamado Dancer in the Dark com Bjork, o dinamarquês teve a coragem de mostrar Dogville, epifania com Nicole Kidman a dar o corpo ao manifesto. O filme, completamente alicerçado no texto, som e cenografia, abdicava da imagem enquanto ponto base da sua estrutura e propunha uma cenário seco e frio, semi-teatral, no qual as personagens se moviam quase no vazio. Recolheu aplausos da crítica e incompreensão do público, e continuou a mostrar Von Trier como realizador com gosto pelo risco. Com data de 2005, e estreia directa em DVD (não passou sequer pelas salas de cinema), Manderlay mantém o modelo formal do seu antecessor, mas aplica-o num argumento mais acessível e, ao mesmo tempo, mais ambicioso. Parte de uma triologia que será encerrada com o anunciado Wasington (2009), Manderlay segue Grace, depois da fuga de Dogville, mas numa posição de poder que não se lhe reconhecia. Se em Dogville, a personagem de Kidman era vítima de todas as opressões e sucumbia à cidade, já agora assume as rédeas de uma velha quinta de algodão que sobrevive na base da escravidão, ainda que 70 anos tenham passado desde a abolição da escravatura. Afastando-se da vida mafiosa do pai, Grace surge como pólo aglutinador de utopias e transformações de uma comunidade supostamente fraca e subordinada. Porém, Von Trier tem a mestria de conduzir um filme sublinhando a amoralidade de uma América à procura de si mesma, para por fim inverter utopias e subordinar Grace, agora vivida por uma competente Bryce Dallas Howard, à exigência de um sistema fixo de vivências contidas e violentas. Desta feita, o modelo está aperfeiçoado e nada mais parece forçado, ou o olho estará educado. Os vazios parecem cheios, e o som e cenografia abstractos parecem no local certo. A manipulação do dispositivo surge como perfeita, e Von Trier parece cumprir o objectivo de uma triologia sobre a América. Em Manderlay, agora sim, parece sentir-se o pulso, tanto passado como presente, de tensões nunca resolvidas. Agora sim, estabilizado um modelo pouco comum, Von Trier parece conseguir escrever precisamente aquilo que quer, para uma aplicação que flui, mercê da sua não novidade. O trabalho de argumento é brilhante por parte do dinamarquês, ainda que, communmente, maior acessibilidade não corresponda a maior qualidade. E não, não se poderá dizer que Manderlay é melhor que Dogville. É, quanto muito, diferente. Porque Kidman é bem diferente de Bryce Dallas, porque o equilíbrio dramático se sente como pensado, porque a temática é completamente diferente. Diferentes entre iguais. Para mais, Manderlay merecia descaradamente ter passado pelas salas, em vez de ser remetido subtilmente para DVD. Espere-se pela conclusão, e teremos uma triologia que acrescenta todo um novo capítulo à carreira de Von Trier e traz o cinema para um campo que se pensaria esquecido: o da experiência.

The Simpsons (**)

Quem nos lê sabe que andávamos a salivar por isso há muito. E também sabe que somos profundos conhecedores da série, dos seus mais profundos segredos, do perfil das personagens e da sua evolução, das diferentes versões do genérico, bla, bla, bla. E agora passa também a saber da nossa desilusão. The Simpsons, o filme, não fica atrás de The Simpsons, a série. Mas devia, isso sim, ficar bem à frente. Era possível? Sim. Porque uma coisa é manter o humor corrosivo, o equilíbrio dramático e a storyline identificável. Outra é levar tudo isso mais longe, e fazer algo histórico. Groening e companhia ficaram-se pelo mimetismo de um episódio, de maior duração, e nada foi levado ao extremo. Sim, o brilhantismo está todo lá, mas nós queríamos algo diferente. Algo extremo. Algo levado ao limite. Este, aliás, parece ser um problema de séries de TV que deixam a sua marca: já em X Files havia acontecido o mesmo, uma longa metragem que não passava de um episódio esticado, onde tudo estava, mas nada de novo surgia. Aqui, o mesmo. Nada de novo no Reino da Dinamarca.

Férias

Como se não fossem possíveis. Agora, sim, agora é a minha vez.

Roma - as fotos

Em breve.

Roma - dia 2

Sete da tarde, e a praça do Panteão precipita-se para a fachada. A enorme porta de ferro permanece aberta à entrada de dezenas de pessoas, num espaço elipse com óculo para o céu. O rumor das ruas é constante, enquanto a humidade não dá sinais de abrandamento. Uma praça menor alberga ruínas abaixo do nível do solo, ocupadas dengosamente por gatos, que dormitam no topo de colunas desfeitas pelo tempo. O trânsito flui no limite do contacto, libertino. No Campo de Fiori, a estátua de S. Bruno assusta os poucos que se aproximam, enquanto as esplanadas vendem-se como espaços de frescura inexistente.

Roma - dia 1

À saída de Fiumicino, polícias à paisana defendem a pátria à entrada. Metros à frente, o calor invade os poros sem pudor e instala-se como premissa, sem discussão prévia. As praças sucedem-se, intercaladas por ruas abandonadas ao seu Verão. A temperatura sopra-se a si mesma. Descendo a Via del Corso, os primeiros turistas habitam os espaços deixados vazios. Lojas de luxo miram-se desconfiadas, perante o ângulo comum para a escadaria da Piazza de Spagna. Numa pequena prerpendicular, uma mulher asiática conversa silenciosamente com um edifício, numa rara imagem sono. Horas depois já o fórum Romano se assume visível, com o Coliseu em skyline. Os templos respiram. Grupos de espanhóis riem alto, enquanto três japoneses se refrescam num ponto de água. Duas oliveiras controlam tudo. Percorrendo a margem do Tibre de carro, vespas cruzam as praças com mulheres de anúncio à velocidade da cor da própria pele. As pontes sucedem-se, e algo lembra Paris. Em Trastevere, vendedores costa-marfinenses entoam frases da Toscânia como crianças açucaradas, tentando vender falsas Louis Vuitton a norte-americanos de passagem. As ruas cruzam-se nas esquinas das trattorias. O dia morre húmido, na sombra nocturna de uma esplanada, convidada à embriaguez por alguém que canta à janela.