Eu detesto o Natal

porque quem gosta é toné. Mai nada.

Mário Cesariny de Vasconcelos


Para o mal e para o bem, tive uma infância e adolescência estáveis. Um núcleo familiar constituído de forma sólida (que havia de se desintegrar mais tarde), uma educação em escolas públicas (com todas as vantagens e desvantagens integradas), um acompanhamento regular na vida quotidiana. Na adolescência recrudesceram os factores comuns: isolamento, dificuldade de adaptação a uma realidade que se auto-modificava à velocidade da luz. Bom aluno, sempre me refugiei numa personalidade introvertida, mergulhando numa intelectualidade crescente. Rapidamente surge-me a mim mesmo uma definição existencialista dos objectos constitutivos do real. Infelizmente talhado para uma excessiva racionalização do mundo, de tendência teórica, rapidamente encontrei três mestres de conduta, que acabaram por formatar em larga medida uma forma de ver o mundo.
Aproximei-me de Vergílio Ferreira no dia da sua morte. Em corrida acelerada para uma juventude perdida no meio de palavras, sem álcool para além de provas demasiado amadurecidas, rapidamente assimilei a obra do beirão como guia espiritual. Discuti as dimensões da existência vezes sem conta com base nos seus pressupostos, evoluindo ainda mais rapidamente para Sartre e Camus. Com demasiado peso sobre os ombros, não raras vezes procurei a solidão pública para reler "Para Sempre" ou "Manhã Submersa". Pesquisei (e encontrei) primeiras edições de "Rápida, a sombra" ou "Aparição". Conheço hoje ainda alfarrabistas de Évora, ou da R. do Século, a quem exigi edições de vida breve no mercado. Tornei-me lúgubre, certo da inutilidade de tudo.
Escolho livros, conscientemente, por instinto. "Alexandra Alpha", de capa cor-de-rosa e espessura contra-natura, veio parar-me às mãos sem grande explicação. Viria a conhecer José Cardoso Pires mais tarde, já depois de "De Profundis". Durante meses investiguei a vida do autor, para pouco antes de um contacto o mesmo ser internado em virtude daquele que viria a ser o AVC mais conhecido no Portugal contemporâneo. Guardo uma primeira cópia de "Histórias de Amor", obra extinta cujo título foi a forma de Pires fazer passar "a coisa" pela censura. Procuro, sempre que a rotina me permite, "Os caminheiros e outros contos", estreia ainda próxima dos neo-realistas de quem, a bom tempo, se viria a afastar. Dotado de uma destreza ímpar, cortante, José Cardoso Pires mitigou-me as olheiras e recuperou um sentido de marialvismo genuíno, que se arrastou muitas noites pelas esquinas da Calçada da Bica à procura de água gaseificada para matar a azia da idade. Profundamente ignorado nos seus pressupostos literários, sobretudo pelo país, o homem que comprou um andar na Costa da Caparica, frente ao mar, para estar só acabou por marcar uma adolescência terminal.
Por interpretação de uma fotografia, interessei-me por André Breton em meados da década de 90. O francês tinha muito pó nos bolsos, herança de uma militância desnecessária, mas acabou por emitir respiração a Mário Cesariny de Vasconcelos. Contemporâneo de O'neill, Vespeira, Ventura, Oom, António Maria Lisboa ou Cruzeiro Seixas, Cesariny esteve na origem do Grupo Surrealista de Lisboa e do movimento artístico de maior interesse e valor do século XX português. Qual vampiro habitante do Café Gelo, o poeta, ensaísta, dramaturgo, pintor, fotógrafo definiu de forma pessoal a tentativa de vanguarda cujo maior objectivo era uma intervenção social através da criação artística. Durante semanas requisitei "Pena Capital" ou "Manual de Prestidigitação" na sala principal da Biblioteca Nacional de Lisboa, assimilando as noções de liberdade criativa emanadas das folhas. Viria a conhecer Cesariny em 2001, numa exposição na Câmara Municipal de Lisboa e, como antes, o temor de contacto afastou-me rapidamente. Viria ainda a encontrá-lo nas mais diversas apresentações do seu trabalho, na exposição no Museu da cidade, num encontro no Martinho da Arcada. A última, no teatro nacional D. Maria II, na apresentação de uma peça escrita por si anos antes. Entrou de luzes apagadas, blusão cinzento, cheiro a tabaco, e sentou-se, sozinho, na primeira fila. Frente a si mesmo. O Animatógrafo curva-se triste perante a sua memória.

Eu detesto o Natal

e hei-de repeti-lo sempre que me lembrar. Preparem-se.

De novo

O cansaço. Como se de uma inevitabilidade se tratasse. Já não sei o que é dormir convenientemente, sem amanhã. Que cante. Ou não.

Querida Maria


Aos 27 anos, sou um ser humano inconsistente. Tenho formação em jornalismo e sou responsável de loja, e não kero ser jornalista. As crianças exasperam-me na maior parte dos dias. Continuo, doentiamente, a passear pela FNAC aos fins-de-semana, num misto de satisfação e desespero. Conheço nomes de fotógafos. A minha família desagregou-se, mentalmente, há muito. Em breve construirei uma casa, com pontas de solidão às sextas-feiras à noite. Sou mal pago na vida. Continuo, alegremente, a sonhar a semana de paz que há-de vir, do lado de Sacavém, ou do Norte, algures. Não gosto de transpirar, por existir, em dias quentes. A mulher que me ama, diz ela, detesta iscas. Não a censuro, não concordo porém. Quando acordo lembro-me, em consciência, do adiantamento de quatro minutos no despertador e engano-me propositadamente ao levantar-me. Ganhei recentemente um interesse idiota em gravatas. A escravidão sexual é um assunto que não me preocupa, mas que me interessa, na exacta medida da proporção das coisas e dos nomes no quotidiano que se forma todos os dias quando calço as meias, antes de me erguer. Nunca estive em Cork, e porém dias há que sinto falta da sua humidade. Sou viciado em objectos culturais, mas não tenho um comportamento consentâneo com a patologia, apenas uma leve destreza. Não sou pai de ninguém, e mesmo filho já fui mais. Reconheço-me no limbo destinado às crianças não baptizadas, à luz do dogma. Porém, molharam-me a cabeça e nunca mais cresceu cabelo ali. Crianças correm na casa do primeiro andar, e apenas me ocorre que "Canja Voodoo" é uma expressão genial. Gosto de imaginar que dois prédios acima há uma dona de casa alcoólica, na casa da porteira, que daria um excelente filme se não soubesse que estava a ser filmada. Querida Maria, estarei grávido?

Alice, em Saigão


Eu, confrontado comigo mesmo e com o mundo, em movimento cego, confiante no destino e no lá chegar.

Eu juro

... que hei-de tirar um curso de cinema e realizar alguma coisa. Porque isto da felicidade dá trabalho e não se acerta à primeira.

Salazar, finalmente

Não, o cabrão do velho não voltou. Mas estreia-se em banda desenhada. Reza a lenda que João Paulo Cotrim foi convidado a escrever "Salazar, agora na hora da sua morte" e que impôs apenas uma condição: total liberdade criativa. Dada a luz verde, o resultado é a minha auto-prenda deste natal, um livro que chega sempre tarde como cedo. O trabalho ilustrado por Miguel Rocha é extraordinário e constitui-se como um objecto cultural essencial para compreender a história recente aqui do rectângulo. Foi premiado no festival de BD da Amadora com o prémio máximo e, pasme-se, com o da juventude. Putos deste país, acordem para o que vos precedeu nas ruas. Comprem, vale mais do que qualquer Larousse de trazer por casa ou Atlas do Industão. Estou convencido que se algum agarrado o gamar numa livraria terá enorme dificuldade em vendê-lo: não só Salazar ninguém o quer, como abre os olhos até a um heroinómano. Salazar era dose, o livro dá uma trip fulgurante no século XX português. A auto-oferecer, egoísmo ao vento.

Numero-Projecta'06

Há alturas na vida de um homem ocupado em que a frustração e a consciência de perda dominam largamente. Como as últimas semanas foram manifestamente exaustivas na sua duração real, não me dei conta do Numero-Projecta'06. O projecto, que arrancou ontem no cinema S. Jorge, é um festival internacional de artes multimédia, cinema e música. Transdisciplinar por natureza, o evento estende-se até dia 12 com filmes raros, concertos, instalações e demais iniciativas. Ontem, por exemplo, perdeu-se "The Fall of the House of Usher", um clássico de Jean Epstein e Luis Buñuel (1928), musicado ao vivo pelos Hipnótica. Há demos de produtos, há conversas com criadores, e há curiosidades como a primeira incursão de Olga Roriz no cinema ("Felicitações Madame", dia 12) ou uma mostra de trabalhos de videastas portugueses transmitidos através de 13 plasmas com auscultadores (durante todo o evento). Aliás, foi precisamente um dos artistas representados que teve a felicidade de me enviar um e-mail a dar conta de tudo isto. Nada mais nada menos que José Maçãs de Carvalho, presença marcante do último BesPhoto. Mais info sobre tudo isto aqui. Ide, ide, que a cultura não morde (só assusta, felizmente).

Pina de volta (ou a exultação de um súbdito)

Ora, uma fonte bem (in)formada disse ao Animatógrafo que Pina Bausch estará de volta a palcos portugueses em Abril, mais concretamente no Teatro Camões, em Lisboa. No site da coreógrafa, e do Tanztheater Wuppertal, a data ainda não aparece, mas estamos com fé que seja a apresentação do novo trabalho da alemã. O Animatógrafo, em toda a sua esquizofrenia, exulta com a possibilidade de voltar a ver a companhia de Pina em Lisboa. Só por isto, eu que detesto passagens de ano já estou ansiosamente à espera de 2007. Venha, venha, venha, venha....

Ora cá estamos (balanço do docLisboa)

Ora, por insolvência mental, a semana do docLisboa foi uma enorme frustração, na medida em que "yours trully" não viu metade dos filmes para os quais tinha bilhete. Não vi "Impending Doom" de Edgar Pêra, nem a curta de Vertov, nem "Pintura Habitada" sobre Helena Almeida, nem "Arcana", nem... Enfim. E agora a pachorra para escrever sobre o que vi foi-se. Vi "The Emperor's Naked Army Marches On", de Kazuo Hara, documentário japonês com tanto de importante e interessante como de secante e datado (sim, é possível a simultaneidade). Vi "The Seeds", curta-metragem de Wojciech Kasperski, drama sobre uma família rural da Polónia profunda assombrada pelo suicídio de uma filha, com imagens brilhantes e humanidade dentro. Vi "Elogio ao 1/2", de Pedro Sena Nunes, sobre o bairro de pescadores da Meia Praia, no Algarve, que se perde na primeira metade à procura da ideia dos "índios da meia praia" para se reencontrar na segunda metade com a faina, uma ideia de mar e de comunidade, num filme à beira do desperdício que é resgatado a tempo e horas. Vi "Things", de Martha Hrubá, sobre a mania de tudo colecionar ou tudo deitar fora, pela voz de duas simpáticas velhotas checas, nos antípodas uma da outra, filme com tanto de delicioso como de construtivo. Vi "As the Sun begins to set", de Julie Moggan, documento leve sobre os passageiros do paquete Queen Elizabeth II, casais de idade vetusta que se ocupam a si mesmos à sombra da brisa marítima e que recorrem a memórias frente à camera para combater a solidão dos dias em casa. Vi "British Sounds" de Jean-Luc Godard, e "Humain, trop Humain", de Louis Malle, objectos experimentalistas de finais dos anos sessenta sobre o mundo do trabalho em fábrica. Vi "Un Pont sur La Drina", de Xavier Lukomski, curta que acabou premiada e que se baseia em imagens fixas de uma paisagem edílica com sons de um tribunal marcial sobre a Bósnia como pano de fundo, num contraste com tanto de fabuloso como de arrepiante. Vi "Là-Bas", da repetente Chantal Akerman, documento pessoal e transmissível sobre a possibilidade/impossibilidade de viver/estar em Israel, onde a realizadora vai espreitando pelas janelas fechadas de um apartamento em Tel-Aviv e reaviva as memórias de um judaísmo tímido e de uma depressão crescente, consciente e viva em cada respiração. No fim de contas, ainda se viu alguma coisa, mas muito ficou por ver, por excesso de trabalho, por dias mentalmente ocupados, por cansaço, por tudo menos disponibilidade. Melhores dias virão.