Provérbios bizarros (III)

No dia da cozedura, até as aranhas ficam fartas.

Eastern Promises

David Cronenberg é dos realizadores mais interessantes a filmar nos últimos vinte e cinco anos. Ou seja, desde Videodrome. Porque depois houve A mosca em 1986, Dead Ringers em 1988 ou eXistenZ, em 1999. E A History of Violence, bem mais recente. Pronto, ou perto disso, já parece estar Eastern Promises, thriller centrado na máfia russa. E, ó espanto, parece que Viggo Mortensen ganhou-lhe o gosto e aparece de novo, desta feita de cabelo rockabilly e corpo tatuado. Naomi Watts dá o corpo ao manifesto e lá para Janeiro de 2008 teremos mais uma razão para apagar a luz e olhar pro boneco. Para já a novidade é o trailer oficial, que já deixa umas pistas da qualidade da coisa. E se for como o último, que não era nada comparado com o filme, estamos bem.

Das Leben der Anderen (****)

De regresso às salas de cinema, depois de longa ausência, o Animatógrafo tem a felicidade de deparar com Das Leben der Anderen, que em português deu "As vidas dos outros". É a estreia na realização de Florian Henckel von Donnersmarck, e foi candidato ao óscar para melhor filme estrangeiro. Na prática, é mais um passo no processo de racionalização do século XX alemão, que teve em "Goodbye Lenine" um excelente motor inicial e que agora calcorreia outros percursos. Desta feita, von Donnersmarck centrou-se na Stasi e no seu laborioso trabalho antes da queda do muro: tudo saber, tudo controlar. O capitão Gerd Wiesler é um oficial altamente credenciado da referida polícia cuja missão é espiar um celebrado escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a actriz Christa-Maria Sieland. Wiesler é impiedoso, Dreyman é dúbio, Christa-Maria é refém de um ministro da cultura de ar nojento e práticas a acompanhar. Enquanto Dreyman se apercebe que tem que fazer algo para informar o ocidente da situação a leste, Wiesler deixa-se arrastar para um processo de consciencialização do absurdo, caindo em si numa RDA a desfazer-se. Num belíssimo filme que olha de frente a história recente germânica, von Donnersmarck faz um trabalho impecável, contido, seguro, com planos cortados ao milímetro e um dramatismo no fio da navalha que em momento algum foge das rédeas. O trabalho dos actores, sobretudo de Ulrich Mühe, é fantástico e a imersão numa década de 80 ainda com sintomas de guerra fria, onde a opressão social e cultural imperavam, é conseguida por inteiro. Ainda que a dimensão seja diferente, faltam ao cinema português, por exemplo, documentos que tratem a história recente com a frieza que lhe merece, como este.

Mega, Berardo, Negrão: terça-feira gorda

A SIC fez um alinhamento a aproveitar em toda a linha o dia em cheio: a demissão de Mega Ferreira, a palhaçada de Berardo, a confusão mental de Negrão. Mega Ferreira simplesmente não esteve para aturar o sucessor de Mário Lino como bobo da corte nacional e abandonou o cargo. Perde-se visão, perde-se empenho, perde-se capacidade de gestão. Berardo pede hoje uma demissão já ocorrida ontem, diz que Mega tem problemas mentais, recebe a ministra da Cultura como a maior amiga de sempre e pavoneia-se em frente às cameras. O pano de fundo é uma colecção conseguida por tuta e meia, traficada, contrabandeada, ultra-sobrevalorizada na negociação com o estado. Fernando Negrão tem a proeza de baralhar a EPUL, a EPAL e o IPPAR, sem saber o que quer extinguir, nuns 15 minutos que fariam de John Cleese um homem muito invejoso. Desconhecimento total, confusão suprema. O puzzle encaixava na perfeição de Berardo falasse dos problemas mentais de Negrão, Negrão apresentasse a demissão e Mega quisesse extinguir Berardo. Ainda há dias que valem a pena.

Top 100

O American Film Institute todos os anos faz a mesma coisa. A ideia é peregrina e o resultado é uma lista dos 100 filmes supostamente mais importantes da história do cinema. Citizen Kane mantém-se à cabeça e depois há xonezadas como Saving Private Ryan ter direito a figurar ou Sunrise estar bem longe do topo. Não se vislumbram filmes soviéticos. A primeira parte da tabela é dominada por relíquias norte-americanas. Escolhas particularmente óbvias, como Nosferatu, de Murnau, primam pela ausência. Não lembra ao diabo.


1. “Citizen Kane” (1941)
2. “The Godfather” (1972)
3. “Casablanca” (1942)
4. “Raging Bull” (1980)
5. “Singin’ in the Rain” (1952)
6. “Gone With the Wind” (1939)
7. “Lawrence of Arabia” (1962)
8. “Schindler’s List” (1993)
9. “Vertigo” (1958)
10. “The Wizard of Oz” (1939)
11. “City Lights” (1931)
12. “The Searchers” (1956)
13. “Star Wars” (1977)
14. “Psycho” (1960)
15. “2001: A Space Odyssey” (1968)
16. “Sunset Boulevard” (1950)
17. “The Graduate” (1967)
18. “The General” (1927)
19. “On the Waterfront” (1954)
20. “It’s a Wonderful Life” (1946)
21. “Chinatown” (1974)
22. “Some Like It Hot” (1959)
23. “The Grapes of Wrath” (1940)
24. “E.T. — The Extra-Terrestrial” (1982)
25. “To Kill a Mockingbird” (1962)
26. “Mr. Smith Goes to Washington” (1939)
27. “High Noon” (1952)
28. “All About Eve” (1950)
29. “Double Indemnity” (1944)
30. “Apocalypse Now” (1979)
31. “The Maltese Falcon” (1941)
32. “The Godfather, Part II” (1974)
33. “One Flew Over the Cuckoo’s Nest” (1975)
34. “Snow White and the Seven Dwarfs” (1937)
35. “Annie Hall” (1977)
36. “The Bridge on the River Kwai” (1957)
37. “The Best Years of Our Lives” (1946)
38. “The Treasure of the Sierra Madre” (1948)
39. “Dr. Strangelove” (1964)
40. “The Sound of Music” (1965)
41. “King Kong” (1933)
42. “Bonnie and Clyde” (1967)
43. “Midnight Cowboy” (1969)
44. “The Philadelphia Story” (1940)
45. “Shane” (1953)
46. “It Happened One Night” (1934)
47. “A Streetcar Named Desire” (1951)
48. “Rear Window” (1954)
49. “Intolerance” (1916)
50. “Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring” (2001)
51. “West Side Story” (1961)
52. “Taxi Driver” (1976)
53. “The Deer Hunter” (1978)
54. “M*A*S*H” (1970)
55. “North by Northwest” (1959)
56. “Jaws” (1975)
57. “Rocky” (1976)
58. “The Gold Rush” (1925)
59. “Nashville” (1975)
60. “Duck Soup” (1933)
61. “Sullivan’s Travels” (1941)
62. “American Graffiti” (1973)
63. “Cabaret” (1972)
64. “Network” (1976)
65. “The African Queen” (1951)
66. “Raiders of the Lost Ark” (1981)
67. “Who’s Afraid of Virginia Woolf?” (1966)
68. “Unforgiven” (1992)
69. “Tootsie” (1982)
70. “A Clockwork Orange” (1971)
71. “Saving Private Ryan” (1998)
72. “The Shawshank Redemption” (1994)
73. “Butch Cassidy and the Sundance Kid” (1969)
74. “The Silence of the Lambs” (1991)
75. “In the Heat of the Night” (1967)
76. “Forrest Gump” (1994)
77. “All the President’s Men” (1976)
78. “Modern Times” (1936)
79. “The Wild Bunch” (1969)
80. “The Apartment” (1960)
81. “Spartacus” (1960)
82. “Sunrise” (1927)
83. “Titanic” (1997)
84. “Easy Rider” (1969)
85. “A Night at the Opera” (1935)
86. “Platoon” (1986)
87. “12 Angry Men” (1957)
88. “Bringing Up Baby” (1938)
89. “The Sixth Sense” (1999)
90. “Swing Time” (1936)
91. “Sophie’s Choice” (1982)
92. “Goodfellas” (1990)
93. “The French Connection” (1971)
94. “Pulp Fiction” (1994)
95. “The Last Picture Show” (1971)
96. “Do the Right Thing” (1989)
97. “Blade Runner” (1982)
98. “Yankee Doodle Dandy” (1942)
99. “Toy Story” (1995)
100. “Ben-Hur” (1959)

Ócio comum

Descobri aos 15, 16 anos que o tempo é uma merda. Consome-se. Por arrasto, o corpo é um depósito. Descobri, então, que o problema era mesmo a acumulação de memórias, e que uma Alzheimer na adolescência seria profundamente bem-vinda. A realidade é que a puta da doença já só vem quando existem décadas de imagens para rever, e o depósito está cheio de merdas que a cabeça vorazmente consome. Aí já existem filhos e netos para esquecer, férias para baralhar nas sinapses mais desatentas, fotografias que regressam à sua origem de imagens objectivamente sem conteúdo para além do atribuído.
Aos domingos, comummente, deprimo-me voluntariamente. A recentralidade do corpo e do tempo depende do enquadramento de um cancro possível, ou de um acidente do qual não se acorda. Os dias passam, lentos, agarrados a um álcool breve, como se em cada domingo renascesse o desempregado possível, desagregado da actividade em volta. Deixei de ler o jornal no café. Não encontro ninguém no supermercado, e o acordar é um processo faseado de adivinhação das horas. A casa tem apenas a luz que foge por entre as janelas altas. O gato dorme aos cantos, conferindo um aspecto ligeiramente homossexual ao espaço, apenas reconhecível a espaços. Há jornais antigos espalhados, agarrados à esperança de serem lidos num acesso de promessa cumprida ou antes da inspecção. Numa pasta menor um livro por publicar. Alguém liga a saber como se está. Não há missa, nem almoços de família. Raramente há deslocações superiores à distância das ruas contíguas, excepto em caso de chuva severa, que obriga a vaguear de carro. Não há consolas, nem jogos, nem visitas inesperadas. Um velho passa rapidamente na rua. Acima duas empregadas lavam loiça com som. A distensão das horas leva a almoços tardios e jantares inexistentes. Há isto.

Valencia







Perdidos e Achados

Há poucas coisas, em termos de televisão generalista portuguesa, que tenham sido bem feitas na última década. Isto se compararmos com o total. Recentemente, a SIC apostou nos "Perdidos e Achados" e o resultado é, digo eu, brilhante. Uma das sempre-eternas críticas feitas ao ao Jornalismo, enquanto actividade, é a falta de distanciamento. Tudo é sobre a hora, e todas as visões são a quente. Impera o relógio e notícias de ontem são velhas. No movimento contrário, a SIC recupera peças com anos e vai à procura dos protagonistas, trazendo de novo as imagens e cruzando-as com novas faces. Daqui resulta muita coisa. Primeiro, a distância permite a reflexão sobre os factos, e mesmo sobre a forma de fazer televisão. Segundo, os próprios agentes da informação, entrevistados e entrevistadores, olham para trás. A pergunta não é "o que sente neste momento" (idiotice nunca contrariada), mas "como vê o que se passou então". O esforço de flashback é recompensado com uma versão, dir-se-á, mais objectiva da realidade. Terceiro, o interesse das peças reside no follow-up que é feito. É uma estratégia comum no campo da História: analisar o percurso dos agentes da mesma, e reflectir sobre factos com a ponderação que os factos que vieram a seguir concedem. "Perdidos e Achados" tem ainda a felicidade de não ceder à veia voyeurista, tentadora, mas criar um equilíbrio entre as imagens de então, as vozes e os campos contraditórios. O resultado é uma visão ampla sobre a história recente. Adicionalmente, o projecto permite combater a Alzheimer que se instala na sociedade portuguesa como um parasita. Hoje mostrou-se a violência absurda da PSP na Marinha Grande, quando da queda da Manuel Pereira Roldão e da industria vidreira tradicional. Sim, foi em 1994, e era Cavaco Silva primeiro-ministro de Portugal. Para recordar.

Cientologia

A SIC acaba agora mesmo de emitir uma peça, ainda longa, sobre Cientologia. Na mesma surgiam os seguidores portugueses, bem como alguma informação sobre as estrelas de Hollywood dedicadas à, dita, religião. Exemplo: Tom Cruise. Ora vejamos:

1) - A Cientologia indica que, em caso de casamento, o homem deve dar à mulher "uma panela, um pente e um gato". A panela eu trouxe de casa da minha mãe, o pente comprei o mês passado, o gato veio há dois meses;

2) - A Cientologia indica que, em caso de casamento, a mulher deve ouvir que "os homens jovens são livres e podem esquecer as suas promessas". Lembro-me de prometer que ia sempre passar a ferro, mas estão ali cinco camisas que não têm bem a minha cara;

Assim sendo, acabo de descobrir que sou cientologista. Logo eu, que nem acredito no casamento. Parece que não existe a noção de pecado na seita, mas ter as condições todas de casamento e viver em pecado não deve ser muito bom. Mas pelo menos, para já, o gato não se queixa.

Provérbios bizarros II

A cadela, com pressa, pariu os cachorros cegos.

Imagens de filmes III

Rear Window, dir. Alfred Hitchock, 1954, EUA