O Animatógrafo pergunta VI

Porque é que o corpo de uma mulher grávida só é bonito porque nos lembramos da criança lá dentro?

Défice às 15

Não li, como o comum dos mortais não leu, o relatório da Comissão Constâncio. Provavelmente também não compreenderia grande parte. Mas há coisas que convém pensar:

1) – É uma palhaçada (sim, palhaçada) os líderes dos partidos com assento parlamentar virem dizer que estão “chocados” e que “não estavam à espera”. Bagão Félix dizia ontem na RTP que as contas do déficit eram muitos fáceis de fazer, e não eram necessárias semanas de uma comissão especializada. Bastava pegar no déficit previsto pelo orçamento e retirar-lhe as operações falhadas que o governo de Santana Lopes tentou levar a cabo (GALP, etc…) e contar com o crescimento actual neste momento (que é claramente abaixo de todas as perspectivas de Outubro de 2004). O resultado é muito próximo do valor de Constâncio. E portanto sejamos sérios: toda a gente sabia que o déficit era deste tamanho. Nos últimos anos não se tomaram medidas de fundo para resolver a questão (apenas se subiu o IVA para 19%, o que deprimiu a economia de imediato e não resolveu nada) e portanto os déficits apresentados por Manuela Ferreira Leite eram o déficit estrutural menos as medidas extraordinárias. Como Constâncio não conta com quaisquer medidas extraordinárias, o resultado serve-se cru;

2) – É outra palhaçada pensar que isto hoje era tudo muito lindo se se tivessem feito restruturações de diversos sectores do Estado na década de 90. Porque isso era praticamente impossível. E porquê? Porque temos 30 anos de país real (antes do 25 de Abril era virtual, não havia prisões reais, nem denúncias reais, nem miséria real, era tudo “ordem”) e tivemos que começar tudo do zero. Tudo. E não somos noruegueses nem suecos. E, portanto, era praticamente inevitável que o que se passa hoje viesse a acontecer;

3) – Isto não quer dizer que tinha que ser tudo como foi. Cavaco podia não ter dado os benefícios sociais que deu, não teria ganho a maioria absoluta. Guterres podia ter compreendido que era altura de racionalizar a administração pública, não teria ganho o segundo mandato. Mas o problema é sempre a segunda parte da frase. Porque parece que não há ninguém que chegue e diga que “não me interessa o segundo mandato”. E isso é que era preciso, alguém com “espírito de missão”. Haverá?

Daqui por alguns minutos, vamos saber que há aumento de impostos mas que não há despedimentos na administração pública, que há alteração da idade para reforma mas que não há racionalização de procedimentos do Estado. Se daqui por minutos eu tiver razão, já volto.

Desperate Housewives

Ao que parece, a SIC vai estrear em Portugal a série que há meses anda a gerar a loucura nos EUA. Ok, também não é preciso muito para isso. Mas ainda assim, ficam umas notas prévias de quem já viu os 21 episódios que já passaram nos states e que começam a ser transmitidos em Portugal dia 22. Se pensarmos nisso, praticamente todas as séries que fizeram história na televisão norte-americana (e, logo, na nossa) eram sitcoms ou drama. São assim denominadas, aliás, as duas categorias a concurso nos Globos de Ouro, se a memória não me falha. As séries que a SIC Comédia agora anda a repetir são as sitcoms: “Cheers”, “Mad about You”, “Seinfled”, etc, etc, etc. As dramáticas oscilaram entre as iniciais da linha “Lassie” e “Casa na Pradaria” e depois a corrente Sci-Fi. Mais recentemente, nos últimos 10, 15 anos, a indústria compreendeu que eram formatos demasiado estanques e que tinha que arriscar em originalidade: ou no argumento (“Seven Feet Under”) ou em termos formais (“24”). A ABC arriscou num sentido curioso: o da análise da vida moderna e das suas implicações no modo de vida tradicional. Como era demasiado perigoso meter internet em casas amish, decidiu criar “Desperate Housewives”. Não avançando muito em termos objectivos, já que existe estreia marcada entre nós, fica a ideia de que se trata da história de uma pequena comunidade: um bairro. Daqueles tipicamente americanos, estilo Florida, mas sem velhos nem a humidade nem as camisas com abacates: casas iguais ou similares, relvados impecáveis, garagem, sebes pintadas de branco, crianças a brincar na rua, vizinhos que se conhecem. Mais longe: vizinhas que se conhecem, uma vez que são não-trabalhadoras. E aqui acaba a ideia de dona de casa tradicional. São mulheres altamente formadas, extraordinariamente atraentes, e com graves problemas mentais. O formato é um misto de comédia (e não sitcom) com drama. Basicamente, aquela gente não regula bem. Ou são obsessivo-compulsivos, ou sado-masoquistas, ou materialistas extremos, ou hiper-activos, ou infiltrados, ou homicidas.
Nos EUA, até a Primeira-Dama já referiu publicamente que vê. As actrizes, ilustres desconhecidas antes, são perseguidas na rua. E, curioso, os homens norte-americanos, segundo estatísticas levadas a cabo, dizem que não veem, enquanto as mulheres não perdem um episódio (não cheguei a nenhuma conclusão quanto a isto), o que é obviamente mentira. Especulando um pouco, acredito que o sucesso do formato está na forte identificação que o comum norte-americano deve sentir perante os personagens. Ou seja, aquilo podia acontecer no seu bairro. Ou pior, aquilo acontece no seu bairro! A análise do confronto entre o típico bairro norte-americano de relvados cortados e sebes pintadas e as pessoas que lá moram e as suas neuroses dá, para já, à ABC o pódio na temporada televisiva.

O Animatógrafo pergunta V

Se o Ricardo tivesse vindo para o Benfica, quem é que marcava o golo?

Mondovino Vs Sideways

Aos 16 anos, mais coisa menos coisa, defini para mim mesmo que, quando fosse suficientemente abastado e não precisasse de trabalhar, e chegado à crise de meia idade, rumava a Bragança e tirava o meu curso de enologia. A Universidade de Trás-os-Montes é a única com a referida licenciatura aqui no rectângulo e até ser rico e quarentão não tenho grande forma de me conceder tempo e espírito para me entregar à religião pagã. Tudo isto decorre de ter compreendido que há muito mais numa garrafa de vinho que fantasmas das sopas de cavalo cansado ou estatísticas do número de vítimas na estrada a flutuar. Para quem não aprecia vinho, não vale muito a pena tentar compreender. Palavras como terroir ou casta não passam, nesse caso, de sinónimos de Marte engarrafado. É como aquela desculpa feminina para o futebol como “22 homens atrás de uma bola”.
Para o comum dos portugueses (e lá estou eu outra vez a pressupor, mas contradigam-me se não estiverem de acordo), vinho, em sentido global, corresponde a duas realidades: umas quintas lá no Douro com uma paisagem catita e umas garrafas caras no hipermercado, e o tio Joaquim lá da terra que faz uma água-pé de matar castanhas à nascença. Possivelmente, ainda sabem que Bordéus tem “umas boas pingas”, mas a coisa morre por aí. Não sabem que os Estados Unidos da América são, actualmente, o maior player num mercado que se joga a nível mundial. Não sabem que o que nós damos como adquirido em qualquer casa, por menos de meia dúzia de euros, é vendido em Nova Iorque a 100 e 150 euros a garrafa em qualquer restaurante de toalha posta e velas na mesa. Não sabem que há uma indústria turística a promover uma multidão de terceira idade que percorre a costa da Califórnia para provar Pinot e Merlot a torto e a direito. Caramba, não sabem que há vinhas no vale de Napa, ou na África do Sul ou na Nova Zelândia, ou na Índia. Ora eis que surgem dois filmes para falar disto tudo: “Mondovino” e “Sideways”.
”Mondovino”, diz o autor, é sobre cães. Realmente eles estão lá, mas a realidade é que se veem mais uvas e velhos que canídeos. Filmado em digital, estilo Dogma 95 bem disposto, o documentário aposta em duas ideias. Primeiro, a de que existe a tentativa de manipular um mercado à escala global, não só através de marketing, mas sobretudo da manipulação química dos vinhos. Segundo, a de que existem dois lados da barricada, e que os americanos estão do lado do costume. Ora, quanto à primeira parte, parece que os nossos amigos do outro lado do atlântico estão apostados em fazer aquilo que uma das entrevistadas descreve como “vinhos-puta”: dão prazer imediato mas deixam-nos no segundo seguinte. Para os apreciadores, estamos a falar de baixo nível de acidez, muita baunilha, muito carvalho e pouca personalidade. Quanto à segunda parte, basta olhar para a cara dos Mondavi para perceber que aquela mania de controlar o mundo é genética e não olha a meios. Ou seja, não interessa o terroir, mas vender uns quantos milhões de garrafas de Opus One ao preço do ouro, e toda a gente acha o máximo. O documentário vale, como João Canijo dizia no fim da sessão a que assisti, pelas pessoas que lá estão. E como é feliz nas pessoas, nos olhares, no focinho dos cães, ça marche!
”Sideways” chegou a nomeado para óscar, mas ficou-se por aí. A receita é simples: pegue-se num frustrado de meia idade com sensibilidade acima da média, junte-se um actor idiota à beira do casamento, despache-se os dois para a terra das vinhas. Depois de marinar, deixe alourar uns dias de sexo desesperado do actor, junte uns copos de Pinot Noir em cenários turísticos e regue bem com imagens de vinhas. No fim, sirva-se com banda sonora minimalista e final de festa triste. O resultado não vai além do mediano. E porquê? Porque não se pode pegar na imagem romântica das vinhas e pensar que sai um filme do caraças. E, explicação derradeira, porque as vinhas da Califórnia não emanam nada de romântico. Para um europeu (e falo por mim) tudo parece forçado. Tudo denuncia a falta de História, a importação das castas, as salas de prova para turista. Todo “Sideways” perde aos pontos para meia dúzia de minutos em “The French Kiss”, comédia romãntica com Meg Ryan e Kevin Kline, por exemplo. Kline vestia a pele de um francês carteirista que consegue roubar um pé de vinha. Na sua terra, numa encosta por plantar e com a vinha na mão, Kline tem mais terroir na unha do dedo mindinho que todos os planos de copo na mão em “Sideways”. O “terroir” é como o fado: não é quem quer, mas quem pode.

Der Untergang

Posso estar redondamente enganado, mas creio que não há qualquer representação cinematográfica objectiva de Salazar. O cinema português já tentou abordar o período da ditadura algumas vezes, com “Até Amanhã, Camaradas” por exemplo, mas nunca ninguém teve coragem de filmar Salazar. Nunca ninguém pensou: vou filmar o homem que influiu de forma mais decisiva no século XX português (e infelizmente neste XXI, por consequência). Nunca ninguém teve coragem de representar Salazar para uns quantos milhares de espectadores. Claro que de Hitler a Salazar vai uma distância como do Sporting ao título, e é óbvio que Hitler será sempre mais representado que qualquer ditadorzeco que a Europa não conhece, mas mesmo que assim não fosse estou em crer que os alemães não compreenderiam qualquer ausência de representatividade como os portugueses parecem aceitar.

Trudl Jurgen tinha 22 anos quando esperou dias dentro de um comboio, atravessou um bosque e entrou num bunker, de paredes cor de cimento, para conhecer um tipo baixinho e velho. Trudl e outras 4 ou 5 raparigas igualmente sonâmbulas politicamente alinham-se lado a lado, com os nervos na lingua e as pequenas malas apertadas à exaustão. O tipo baixinho e velho sai de uma sala e examina as jovens. E, pasme-se, sorri! Meu deus, que sacrilégio, o tipo sorri! Sorri da mesma forma que um avôzinho sorri quando vê os netos, com um ar simpático, calmo, pacífico. Trata as jovens por “filha” e pergunta-lhes de onde vêm. Trudl tem a sorte de ser a primeira a prestar provas de dactilografia. Quando sai da sala, é secretária de Adolf Hitler.
O primeiro pensamento, intoxicado pela imprensa alemã e pelos detractores do filme, foi: “caraças, este gajo está mesmo a tentar limpar a imagem do Hitler! Sacana! É mesmo verdade, tentam apresentar o gajo como um tipo simpático!”. Depois a coisa segue. Mais à frente, Hitler, o “tio Hitler” dos filhos de Goebels, senta uma das crianças ao colo e faz-lhe festas no cabelo, sorrindo, enquanto todos cantam uma canção. Primeiro pensamento: “lá está outra vez! Como é que isto é possível? Sacanas, a tentar limpar o filho da mãe!”. A coisa segue. Mais à frente, Hitler dá um par de berros e uns murros na mesa, numa sala com pouco mais de 5 metros quadrados e muitos mais oficiais nazis de suor no rosto. E o pensamento de limpeza do Fuhrer desvanece-se.
A História, em termos globais, por um conjunto de razões essencialmente baseadas na linha ideológica seguida, classificou Adolf Hitler na categoria de “monstros”. Muito longe daqueles ditadores da América Latina que toda a gente imagina rodeados de mulheres, droga, com um sorriso malicioso na cara. Para a História, e para a esmagadora maioria das pessoas, Hitler era um “monstro”, frio, sem dimensão humana, sem dimensão emocional. Lembro-me dos muitos filmes sobre o III Reich que vi e uma imagem surge sempre: a de um soldado que mata um civil por nada, por não gostar da cara dele, porque simplesmente o pode fazer. Como imagem de marca do regime (o não-valor da vida), esta ideia estende-se a Hitler. Adolf, o “tio Hitler” dos muito loiros filhos de Goebels, seria também daqueles soldados que mata porque pode. Não ama ninguém, não sente nada. Podem cortar-lhe uma perna que não se queixa. Nada mais errado.
Muito antes do filme estrear em Portugal, já eu tinha procurado a expressão de Bruno Ganz para a camera em fotografias. “Der Untergang”, assim se chama no original, dá a Ganz a oportunidade de um Hitler sorridente, desesperado, maníaco, eugénico. E dá a oportunidade de recentrar a discussão sobre o regime nazi e o seu criador. Por várias razões:

1) – Como é óbvio, muito se escreveu sobre “Der Untergang” na Alemanha. E muito se escreveu tentanto atacar aquilo que seria uma tentativa de branqueamento do regime nazi e de Hitler, humanizando-o. O realizador respondeu publicamente dizendo “é isso mesmo”. E acrescentou que a ideia era fazer com que as pessoas compreendessem que Hitler era um homem, e que, assim, o Mal Supremo (as maiúsculas são minhas, e discutíveis) pode chegar a qualquer homem. Ora, nada mais correcto. E aqui chegamos a discussão sobre o conceito de humanidade que, creio, foi mal feita (ou não foi feita) no pós-guerra;

2) – Faça-se um inquérito de rua, daqueles que depois aparecem no SIC 10 Horas, e rapidamente se vai chegar à conclusão que o conceito de humanidade é comummente associado com valores da moral cristã: respeito pelo próximo, compaixão, perdão, sacrifício, etc. Ou seja, para o Zé Pinto “humanidade” transcende “existência”. Ser humano não é existir, mas antes ter compaixão, ter respeito pelos outros, e por aí fora. Como herança da moral cristã, e da semi-teocracia que reinou durante séculos no Mundo Velho (eram monarquias, mas não convém esquecer o papel da Igreja), o “humano” foi constantemente percebido como um “existente” valorizado, seja positiva ou negativamente. E daqui decorre a monstruosidade de Hitler: não tinha compaixão, respeito pelos outros (e, logo, pela sua existência), etc, etc.

3) – Mais além, podemos ainda partir da ideia que o homem assume determinados valores positivos para conceber “humanidade” porque tem uma necessidade de se afirmar diferente entre os seres. E como parece que a capacidade de linguagem organizada não chega para fazer a diferença, vai de se afirmar de outras formas: acha-se “humano” (ou então anda por aí a picar touros em cima de um cavalo e foge).

4) - Ora, na acepção judaico-cristã, que se tornou dominante no mundo ocidentalizado, Hitler nunca podia ser humano, seria sempre um monstro. Por todas estas razões, e porque a Humanidade (aqui entendida como representação simbólica da totalidade de seres humanos) não podia aceitar que um dos seus tivesse feito o que fez. Aliás, não pode ainda. É demasiado traumático conceber que se tratava, de facto, de um homem. Porque isso mina as ilusões quanto ao nível de “humanidade” básica em cada um. E portanto é muito mais fácil definir como “monstro”, mais saudável psicologicamente. Um pouco, aliás, naquela noção do “quem não está connosco está contra nós”. Voltando a “Der Untergang”, esta noção é extensível aos alemães. Se a um homem é difícil compreender que um dos seus tivesse feito o que Hitler fez, a um alemão essa dificuldade de compreensão cresce exponencialmente. E aqui mais uma vez a distância entre um ditador comum e Hitler: não me é difícil compreender o que Salazar fez, porque o nível de Mal é comum. Quanto a Hitler…

”Der Untergang” mostra um Hitler real, e não mitológico. O filme está longe de ser brilhante, muito longe, mas Ganz assume a tarefa de dizer que a “humanidade” é apenas existência com determinadas premissas biológicas, e não um conjunto de valores de ordem moral que baseiam as sociedades actualmente não-teocráticas. É duro, mas é verdade.

Eusébio revisited



O guarda-redes vai agarrar a bola. Os defesas já descansam o olhar, com o corpo já virado para a frente, dando o acto como consumado. O guarda-redes faz-se à bola com tranquilidade, certo que chegará primeiro. Os pés de apoio dos defesas já pensam na rotação para o outro lado. Só ele está virado para a frente. Só ele olha a bola de frente. O pé de apoio não pensa noutra coisa. O guarda-redes prepara as mãos para segurar a bola com firmeza, mas certeza antecipada. Só ele acredita. Só o pé dele acredita, como se tivesse vida própria. O pé dele acredita que pode chegar primeiro. É só uma bola. A distância entre o pé e a bola, e a velocidade que ela leva, não interessam. Interessa lá chegar. Interessa lá chegar primeiro. Interessa esticar a perna e tocar-lhe, para que a física da bola se aperceba da certeza antecipada. Para que o guarda-redes possa franzir o sobrolho de espanto e pensar que tinha pensado demais. Para que os defesas travem sem conseguir reagir. Basta tocar-lhe. Basta tocar-lhe como o vento nos fios onde a roupa finge que seca e está a lagartar ao sol. Basta tocar-lhe, amanhã.

O Animatógrafo pergunta IV

Se o Estado português gastou milhares de euros para libertar um tuga que fumou um charro no Dubai, porque é que os museus portugueses correm o risco de fechar por falta de produto?

Oiçam



Patrick Wolf, "Wind in the Wires"

Last Days



Como sou um tipo assim meio esquisito, a minha adolescência teve Shostakovitch em vez de Pearl Jam, Mozart em vez de Nirvana. Ou seja, enquanto os meus colegas vestiam de preto e punham umas olheiras a armar ao grunge, aqui o vosso amigo dava-se à música clássica (mas curiosamente ouvia Guns N'Roses, mas isso fica para outra altura). Daqui decorre que não tinha o espírito urbano-depressivo que percorreu o final de 80's e início de 90's. Decorre ainda que só dei conta de Kurt Cobain, realmente, quando o Telejornal da RTP abre com o suicídio. Não, não fui a correr comprar os CDs, nem passei a venerar o senhor, mas sei hoje que os Nirvana e todo o movimento grunge têm e tiveram uma importância dentro da música "popular" (no sentido científico do termo, isto é, a que chega a mais ouvidos) muito significativa. E mais do que isso (e isto vai parecer tétrico) tenho um fascínio por suicidas. Porquê? Não sei bem. Bem, mas isto tudo para falar de "Last Days", o novo de Gus Van Sant. Não é Cobain na foto, é Michael Pitt. "Last Days", rezam as boas línguas, é daqueles filmes que se gosta antes de se ver. É possível gostar de um filme antes de o ver? É, da mesma forma que é possível não gostar depois de ver. Ao que parece, "Last Days" é e não é sobre Cobain. É porque surge um Michael Pitt loiro com a barba por fazer e um olhar alucinado, e porque Van Sant assume que se inspirou em Cobain. Não é porque não há Nirvana, nem Courtney Love, nem grunge, nem trips, nem multidões, nem agonia ruidosa, nem Cobain. Ao que parece, há um bosque, um rio, e um tipo loiro por lá, com cara de tudo e de nada, solipsista, refugiado de si mesmo. Blake. E ao que parece, mata-se da mesma forma que morrem pessoas em "Elephant": de forma simples, árida, sem gritos, como se a morte fosse apenas uma brisa que surge na tarde errada. À revista "Inrocks" disse Van Sant que "Kurt parecia sofrer por todos nós. Para mim, o seu suicídio teve menos a ver com uma tomada de acção mais ou menos heróica, com o resultado de uma patologia, do que com uma simples retirada. Kurt quis retirar-se da realidade, escondeu-se, apagou-se. 'Last Days' não é, em todo o caso, um 'biopic', mas a crónica modesta de um desaparecimento, a história de um rapaz que, à força de se sentir exterior em relação ao que vivia, se evaporou no fim." "Last Days" está na corrida à Palma de Ouro de Cannes, daqui a dias.

Mourinho

Ainda me lembro de entrar na porta 10, subir dois lanços de escadas, instalar-me na primeira fila da segunda bancada atrás da baliza sul e ver o tipo, de gabardina preta comprida, com um ar concentrado e seguro, a chegar ao banco. Levantava a cabeça, acenava levemente para as bancadas a agradecer e sentava-se, calmamente. Ainda me lembro de achar que ao fim de 4 ou 5 jogos a equipa já jogava de forma ligeiramente diferente, de forma ligeiramente mais organizada, de forma ligeiramente notória em como cada um sabia ligeiramente o que tinha a fazer. Lembro-me de, depois de sair, depois de ter sido corrido por um bêbado para lá meter outro bêbado, dizer aos microfones da TSF que tinha que fazer o que fez. Para saber se confiavam nele. Para saber se contavam mesmo com ele. É por isso que vê-lo perder com um golo que não existe, num jogo à italiana, com marcações cerradas, sem remates, sem oportunidades de golo, sem lances de provocar enfartes, sem espaço, claustrofóbico, fechado, numa de "eu não jogo mas tu também não", não é fácil. Sobretudo porque nós sabemos que o homem é, sem margem para dúvidas, o melhor. E os melhores raramente merecem perder com golos fantasma. Ainda me lembro de pensar que um convencido é sempre preferível a um bêbado. Hoje a porta 10 não existe, as escadas não existem, a primeira fila da segunda bancada não existe, a baliza sul não existe, o banco de suplentes não existe, já ninguém aplaude o homem soturno de gabardina que acabou de subir as escadas e se senta, calmo, concentrado, a olhar para a relva.

Rei Tony por quanto tempo o trono?

"Isabel e Filipe, Carlos e Diana, Posh Spice e David Beckham, Hugh Grant e Jemima Goldsmith mas decididamente não Carlos e Camilla os britânicos parecem necessitar de obsessões de longa duração com a realeza, e, quando os Windsor perdem o brilho, as estrelas do rock, do desporto, do cinema e as bilionárias preenchem a falha na psique nacional.

Estranhamente, no último meio século este fascínio pelos reinados prolongados alargou-se à esfera política. Os britânicos desenvolveram um gosto pelos políticos duráveis igual ao que mantêm pelos monarcas constitucionais, ou seja, pelos longos períodos de Gover- no de um só partido. 13 anos de conservadorismo com Churchill, Eden, Macmillan e Douglas-Home foram seguidos por uma década e meia dos governos trabalhistas de Wilson e de Callaghan, interrompida apenas pelo breve interregno de Heath. Depois vieram 18 anos de Thatcher e Major. Agora parece que o Novo Trabalhismo de Tony Blair vai ganhar um terceiro mandato, e tal é a desorganização dos seus inimigos que talvez venha a ganhar um quarto.

A supremacia do Rei Tony é ainda mais notável quando verificamos como ele desagrada a tanta gente. Quando subiu ao poder pela primeira vez, em 1997, o veterano trabalhista Denis Healey chamou-lhe "a princesa Diana da política", uma referência não à delicada fragilidade da princesa mas sim à sua inextinguível popularidade. Agora ele já é mais o príncipe Carlos do que a princesa Diana - resmungão, doutrinário, inatingível.

Quem é Tony Blair? Conhecemos as suas máscaras - o sorriso juvenil do período inicial, o olhar diabolicamente furtivo da época pré- -guerra, as expressões mais fechadas e mais preocupadas dos últimos tempos -, mas é espantoso que, depois de oito anos no n.º 10 de Downing Street, ele continue a ser uma espécie de enigma, com atitudes sempre inesperadas, como o mensageiro anglo-saxónico de Lewis Carroll, "a saltitar para cima e para baixo e serpenteante como uma enguia", sendo a sua verdadeira natureza escorregadia e difícil de definir.

Sabíamos, desde início, que ele tinha algo de maníaco do controlo com um toque de oportunista. Sabíamos, também, que ele era contraditório o líder de um partido socialista democrático que nunca usou a palavra "socialismo". Em Fevereiro de 1998 eu era um convidado num jantar em Chequers, a propriedade de campo de Blair, e, quando o ouvi elevar a voz para começar a falar de liberdade, pensei, "Estou interessado nisto" e prestei atenção. Alguns momentos depois percebi que ele estava a falar de liberdade de mercado, nos termos que qualquer primeiro-ministro conservador poderia ter falado, mas que nenhum líder trabalhista anterior teria usado. Mas estávamos ainda em período de estado de graça do Novo Trabalhismo e a memória da vitória de 1997 estava ainda quente.

"Deixa estar", disse para mim mesmo, "este é um homem decente e capaz e ninguém é perfeito".

Eram esses os trunfos de Blair decência, integridade, competência. A sua pontuação nos dois primeiros itens sofreu alguns danos sérios. Mas se ele não é decente, o Tony confiem-em-mim, então quem é?

Aos olhos de muitos antigos apoiantes, ele é o sujeito que se safou com uma acusação de assassínio, lançando uma guerra baseada numa mentira inconsistente e sustentando-a descaradamente depois quando o caso contra a sua decisão se tornava cada vez mais forte, agarrando-se ao poder quando muitos, talvez todos, os seus predecessores teriam resignado.

É quase doloroso recordar agora os dias inebriantes da cool Britannia, quando existia um glamour de tablóide, de terceiro milénio, à volta do n.º 10. A aura de estrela pop funcionou também no estrangeiro quando Blair visitou Moscovo em 1997 e deu uma volta de metro, as meninas de escola russas gritaram como os maníacos dos Beatles nos anos 60.

Na cobertura que The Economist fez da primeira reunião do partido após as eleições, citou um observador anónimo que disse "Ele podia anunciar a matança dos filhos primogénitos e mesmo assim seria ovacionado de pé."

Bom, Blair ordenou uma matança, mas ninguém se levantou para aplaudir. E o mistério mantém-se porque é que Blair comprou a guerra de Bush? Porque é que ele não insistiu que fosse permitido aos inspectores de armamento das Nações Unidas cumprirem o seu trabalho e que se formasse uma genuína coligação anti-Saddam - como, com o devido tempo, se teria certamente formado? Qual era a pressa? Porque é que ele adoptou o unilateralismo de Bush e a agenda ideologicamente dirigida de Wolfowitz?

Terá sido porque ele e Bush têm em comum uma profunda fé religiosa e concordaram em embarcar numa nova cruzada? Não, demasiado simples. Terá sido porque ele acreditou nos relatórios cheios de falhas dos serviços secretos? Não, também isto não é credível porque o seu pessoal mastigou tanto quanto possível essas informações para justificar a guerra.

Um antigo adjunto de Clinton colocou-me a coisa da seguinte forma "Ele vendeu a alma ao Diabo sem se incomodar sequer em receber algo em troca."

Esta é uma visão quase trágica de Blair, a de alguém que fez a coisa errada porque acreditava ser a certa e sacrificou o seu bom nome para nada, um Fausto puritano condenado ao Inferno sem experimentar primeiro qualquer delícia terrena. Quase sentimos simpatia por uma tal figura, mas seria uma visão mais fácil se Blair mostrasse alguns remorsos.

Na ausência destes, devemos pesquisar no manifesto trabalhista a última gota que faz transbordar o copo. A política britânica, assim como a norte-americana, do pós-11 de Setembro e pós-guerra do Iraque, tem sido caracterizada pelos atentados governamentais às liberdades civis e, se o manifesto der a mais leve indicação de continuidade desses atentados, então mesmo os votantes de toda a vida nos trabalhistas devem afastar-se de Blair e votar tacticamente para o derrotar.

Se, por exemplo, o manifesto voltar a introduzir a muito criticada proposta de criação de uma ofensa por "incitamento ao ódio religioso" que a Casa dos Lordes bloqueou com sucesso no mês passado e que iria sacrificar a liberdade de expressão com a finalidade de aplacar os votantes muçulmanos zangados com a guerra do Iraque, isso será uma última gota suficiente para mim. Eu posso ser persuadido a votar num maníaco do controlo, competente, mesmo que embaciado, mas não votarei num maníaco do controlo comprometido com inquisidores religiosos.

O Novo Trabalhismo pode vir ainda a descobrir que o lobby da livre expressão comanda uma base de eleitores maior que os islamistas e que brincar à política populista e estar preparado para derrubar liberdades fundamentais em prol de uma estreita vantagem eleitoral é um jogo que pode fazer o tiro sair pela culatra. O Rei pode ainda vir a ser destronado".

Salman Rushdie

Exclusivo DN/The New York Times Syndicate

Tradução de Cristina M. Queiroz

O Animatógrafo pergunta III

Se o Ribeiro e Castro fazia parte da direcção do Vale e Azevedo no SLB, será que o CDS vai vender o Telmo Correia à Euroárea?