Aurora (*****)

Nosferatu é um filme soberbo. De 1922, é considerado como a primeira adaptação cinematográfica do Drácula de Bram Stoker e, assim, o filme determinante para todo o cinema de terror e, mais especificamente, todo o cinema centrado no conde terrífico. Ainda que por mera sorte, Nosferatu chegou aos dias de hoje. Mera sorte porque as pouquíssimas cópias que existiam nos anos 20 estiveram em efectivo risco de serem destruídas, em virtude de uma quezília entre a viúva de Stoker e Murnau sobre os direitos sobre a história. A viúva felizmente perdeu, senão a História do Cinema era hoje narrada com outras histórias. Tive a felicidade de ver Nosferatu em tela, por generosidade da Cinemateca Portuguesa, nos tempos não longínquos em que esteve no Palácio Foz. Mais: vi Nosferatu com acompanhamento de piano ao vivo (e a preto e branco), acompanhamento esse determinado pelo que se ia passando na tela, experiência que recomendo a qualquer interessado por cinema. Nosferatu, além de um filme seminal, marca ainda uma visibilidade maior de F.W. Murnau, realizador alemão que viria a tornar-se mítico. Muito longe do cinema mudo refém dos personagens e das suas acções, constrangido por ter que suprimir a falta de som, o cinema de Murnau aproveita essa falha técnica para a expressão máxima da imagem. Muito longe da preponderância da expressão facial ou do argumento de Chaplin ou Buster Keaton, o cinema de Murnau pauta-se pela criação de ambientes, sensações ou emoções através da manipulação imagética no seu expoente máximo. O Nosferatu de Murnau é, assim, o mais perigoso e aterrorizador de todos, ainda que sem toda a carga dramática que lhe foi conferida no cinema moderno e contemporâneo. Em 1927, já com alguns filmes em carteira, o alemão F.W. Murnau é convidado pela Fox para fazer o seu primeiro filme norte-americano. O germânico colocou um enorme conjunto de imposições, entre elas a parceria com Carl Mayer, que viria a escrever o argumento. Sunrise (Aurora) estreou nos Estados Unidos em Novembro de 1927, apenas alguns dias antes da Warner Brothers estrear The Jazz Singer, o primeiro filme falado. Sunrise ganhou três óscares da Academia mas foi um enorme desastre nas bilheteiras. Mas muito mais que isso, ficou para a história como, possivelmente, o maior filme mudo de sempre e um dos maiores filmes da História do Cinema. A história é muito simples e não tem nenhuma originalidade por maior: um homem do campo casado é aliciado por uma mulher da cidade que se encontra na aldeia de férias. Tentado a matar a esposa e ceder, não consegue e reencontra o amor com essa mesma esposa, que o destino acaba por tentar matar da mesma forma que ele o havia pensado. Mas muito mais do uma trama irónica sobre pessoas, Sunrise é um objecto formal e substantivamente perfeito. Formalmente, Murnau fez muito mais do que um filme mudo. Quando se fala em afogar a esposa, são as legendas que também se "afogam". Quando o homem pensa na mulher da cidade, é ela que aparece em imagem sobreposta a afagar-lhe o cabelo, como um fantasma. Quando o homem se agita, a música marca compasso, numa antítese que sublinha a acção e cria um ambiente muito acima da imagem concreta. Os planos acompanham as personagens sem as cortar, num movimento que não depende do seu próprio movimento. Muito do trabalho de montagem, aliás, sobretudo na sequência de abertura, lembra O homem da camera de filmar, de Vertov, que apenas surgiria em 1929. Substantivamente, Sunrise filma um enorme conjunto de paradoxos. A aldeia versus a cidade, a cidade versus ela mesma, sendo que pode ser lugar de perdição ou de reencontro, a esposa versus a amante, a morte versus a vida, o destino versus a escolha. Não há, em qualquer acção ou imagem de Murnau, qualquer milagre. Todos os olhares contribuem para um Cinema que se eleva do filme, todos os movimentos geram algo que os transcende, todos os sorrisos partem de uma angústia que se supera. Num lirismo absoluto, a história daquele homem e daquela mulher estão continuamente a gerar uma história superior, que se forma na cabeça do espectador como algo sem âncoras e de carácter divinatório. Como se não fosse possível. Como se não existisse.

Nota: Sunrise (Aurora) está em cartaz no cinema Nimas, em Lisboa.

Frases demasiado boas para existirem II

"E até há uma ingenuidade que não é desagradável na ideia de querer absolutamente desviar os outros de balas perdidas."

Mafalda Ivo Cruz, Vermelho, D. Quixote, pag. 103

Cox & Forkum



John Cox e Allen Forkum são dois caricaturistas norte-americanos que se dedicam há anos ao cartoon editorial, sobretudo político. Forkum escreve e Cox ilustra. Ao contrário das práticas tugas neste aspecto, Cox e Forkum assumem que existe uma carga ideológica no seu trabalho. Mas não, não são democratas nem conservadores. São objectivistas, isto é, seguem o trabalho de Ayn Rand (de que falarei em breve). Os autores publicaram Black and White World e Black and White World II, e além disso mantêm um blog desde 2003. O Cox & Forkum Editorial Cartoons apresenta os ditos cartoons mas também a notícia ou informação, e respectiva fonte, que os inspirou. Ou por vezes aproveita cartoons antigos para novas notícias, fazendo, assim, uma interpretação da realidade a partir de material gráfico já existente. Conjugam assim a actualidade com o seu trabalho, quer actual quer anterior. O blog acaba por ser um óptimo site de informação e análise política, trazendo à liça (que termo tão bonito) textos que não nos chegam de outra forma. Sugere-se fortemente a consulta compulsiva, mais que não seja para ver os "bonecos". Ah, e é tudo a preto e branco, claro.

The Librarian

Keep you head down
Keep you head down
While they're firing low
You're too young child
To know the difference

Oh my pretty
Oh my sweet girl
It's a marvelous place
They put weights down
In your coat tails to burn you out

Lest you fly
Lest you take off
And show whomever what's what.
It's one outrageous lie after another

Turn their lights out
Change the channel
Before we lose the heart
To fight against belief in what they're saying

There's a hotel
With a dark room
At the end of a corridor
I will meet you
To the strains of Allah

We will lie back
On a pillow of the whitest snow
And the silence we were promised
Will engulf us

Lay your head down
Keep your head down
While they're firing low
You're too young child
You're too young child

We will wake up
From the dreams that bury us
We will tunnel our way out
By moonlight

From the dark room
To the white streets and the snow banks
We'll invest in one another's future

Oh my pretty
Oh my sweet girl
It's a marvelous place
She designed it
With escape routes
For you and me

So to the library
With your new card
Grab your favorite books
Look for blueprints
To the strains of Allah
Here we go.

Benevolence is in back
Of everyplace you look
It's not a monstrous face she is hiding

If I see her
I will tell you
You'll come quickly
If you see her
Don't hesitate just go

But til then

Keep your head down
Keep your head down
While they're firing low
You're too young child
You're too young child

You're too young child
Here we go.

The Librarian, Nine Horses, in Snow Borne Sorrow

Há 30 anos

Oiçam



Nine Horses, Snow Borne Sorrow

Emigrar

Recentemente almocei com uma familiar que não conhecia. Sabia da sua existência mas por golpes de sorte e azar nunca tinha ido à sua procura. Em fase que me obriga a maior proactividade, para não me armar em caracol no Inverno, marquei almoço via SMS. E ao longo de duas horas em que conversei com alguém que não conhecia como se conhecesse ficou uma ideia chave. "Queres um conselho? Emigra. Vai-te embora. Se queres fazer alguma coisa de ti mesmo, vai. Isto não merece. Vai-te embora. Mesmo que voltes, mesmo que seja só durante um tempo, mesmo que não vás fazer algo perfeito. Vai-te embora. Não penses mais nisso. Mandas beijinhos por telefone, vens cá no Natal, aguentas-te, mas vai." Claro que já tinha pensado nisso. E claro que já me tinham dito algo semelhante. Mas não igual. Tinham-me dito "não quer pensar em fazer alguma coisa lá fora?" e não "vai-te embora". Não tinham acendido o cigarro com um ar triste, reflectido no vidro, com um fundo de copos a encontrarem lugar no armário, com o empregado a olhar em volta para a ausência de início de tarde, com um ar de ameaça, de raiva chuvosa, que se apega à película brilhante que se forma nos olhos, em certos dias, com ar de claustrofobia a céu aberto, com ar de quem vê gaivotas e pensa no para-lá da tempestade, naquele espaço que não tem este reflexo aqui, que não tem este cigarro aceso automático, que não tem os ângulos rectos que habitam esta cidade e lhe promovem as arestas, que não tem esta vontade de ir mas de já ter ido, e já tudo tão tarde.

Gaiman, McKean



Esta é Helena. Tem 15 anos e trabalha para a família, no circo. Um dia pira-se e entra nas Dark Lands, zona de gigantes, pássaros-macaco e esfinges animadas. Este é o ponto de partida de Mirrormask, filme já estreado nos EUA e que aguarda por melhores dias para Portugal. Mais do que isso, filme que reúne dois dos mais interessantes nomes da literatura e banda desenhada actuais: Dave McKean e Neil Gaiman. McKean é ilustrador e criador de imagens extraordinárias, com tanto de bizarria como de ternura. Gaiman é escritor, autor de American Gods ou o novo Anansi Boys. Mas são os dois sobretudo conhecidos pelos projectos que desenvolveram em conjunto, sobretudo a premiada banda desenhada Sandman, que no original tem uns dez volumes e em português saiu agora o segundo, pela mão da editora Devir. E além disso, McKean e Gaiman editaram O dia em que troquei o meu pai por dois peixinhos vermelhos, livro infantil do melhor que se edita mundialmente. Se está a pensar no que é que há-de oferecer àquele sobrinho ou quer impressionar o filho da vizinha que está a tentar engatar (e assim impressionar a vizinha mesmo), não pense mais. É isto. O texto de Gaiman é soberbo, a começar pelo título, e o trabalho gráfico de McKean deixa qualquer puto parvo de boca aberta. Sintomático no trabalho dos dois é a grande tendência (digo eu, que não percebo nada disto) da BD actual: nada de quadradinhos, viva a liberdade dos rabiscos. Pelo que dá pra ver no trailer de Mirrormask, disponível aqui, o filme segue uma linha aproximada, ainda que menos arrojada (senão também dava em expressionismo abstracto). Mas já dá para ir salivando... E curiosamente, por cá já saiu um livro com todos os storylines e trabalho de concepção de McKean e Gaiman para o filme. Para quem quer saber como se faz um filme, e, no caso, um filme sui generis, é de comprar e ver com atenção. Ou oferecer a alguém lá de casa. Auto-prenda, portanto. E Anansi Boys, já disponível na FNAC por exemplo, parte do mote "God's dead. Meet the kids". Óptimo para mentes inquietas, adeptos do fantástico e especialistas em heranças difíceis.

O Animatógrafo pergunta X

Ficar desanimado depois de um dia que corre bem é paranóico?

Cinanima 2005



Mais uma vez a Culturgest, em Lisboa, teve a amabilidade de projectar os vencedores do Cinanima, festival de cinema de animação que decorreu em Espinho no início do mês. Para quem, como eu, era impossível ir passar uma semana a Espinho ver bonecos (ah, era bom...), ontem foi uma oportunidade de ouro. Mais a mais os bilhetes eram gratuitos e as duas sessões tiveram lugar no Grande Auditório, pelo que não havia desculpas. Ainda assim, na sessão das 17 horas estavam umas 50, 60 pessoas talvez. Número de crianças na sala: 4. É impressionante como os pais, pelo menos os pais da zona de Lisboa, perdem oportunidades destas. Muitos, de certeza absoluta, devem preferir que os meninos e as meninas fiquem em casa a ver a TVI ou então vão ao Colombo fazer tempo, porque está a chover. E depois fala-se à boca cheia da massificação dos media, da invasão da cultura anglo-saxónica, da violência dos desenhos-animados na televisão, da falta de eventos ou oportunidades para estimular os jovens cérebros com algo diferente. Vou repetir: estavam 4 crianças. Eram 17 horas, os bilhetes eram de borla, a sala tem óptimas condições e excelentes acessibilidades, nem chovia àquela hora. E aquela desculpa dos filmes não serem dobrados também não pega: a esmagadora maioria nem tinha falas, apenas som e música. Mas não, as crianças portuguesas não devem precisar disto. Pelo que apenas 4 crianças viram, por exemplo, um pequeno filme feito por outras crianças, de 12 escolas do concelho de Viseu, numa iniciativa de cariz privado mas com o apoio do Ministério da Cultura e da autarquia. O Animatógrafo aplaude todos os paizinhos que ontem levaram os seus petizes para o Colombo a tarde inteira, ou ficaram a dormir em casa enquanto os pequenos viam aquele DVD do Nemo pela décima quarta vez. Parabéns! Assim é que isto anda para a frente! Mas adiante: dos filmes premiados em Espinho que ontem passaram na Culturgest, em duas sessões, sublinho cinco. Primeiro Vent (Melhor Banda Sonora), não tanto pela dita banda sonora mas pelo que faz: brinca com os planos de profundidade e largura, mudando a percepção do espectador do espaço animado. Tem pouco menos de 5 minutos e duas personagens apenas desenhadas a preto, que combatem o vento forte que se faz sentir. Mas primeiro é uma porta que não quer abrir (largura) e depois uma janela que não quer fechar, por onde o espectador está a espreitar sem saber (profundidade). Depois As misteriosas explorações geográficas de Jasper Morello (Menção honrosa na categoria C), 27 minutos de ar gótico e origem australiana. O mundo é de dirigíveis de ferro e computadores que funcionam a vapor e Jasper Morello é um navegador que inicia uma viagem para tentar encontrar a cura para a peste que assola a comunidade. Marcado pelos cenários dantescos e as figuras apenas como mancha preta delineada, o filme cria uma atmosfera pesada mas não violenta, muito em virtude da estilização da imagem. Para fazer brilhar olhos, claramente. Mais curto mas ainda assim não menos substantivo, Overtime (do qual se retirou a imagem acima, prémio Melhor Primeiro Filme) apresenta dezenas de marionetas de ar sapudo que não compreendem a morte do criador e tentam mantê-lo no limite do possível, criando uma imagem triste mas afectuosa simultaneamente. Também com cinco minutos, Maestro (Prémio do Público) aposta na animação 3D pura e dura com um único cenário e uma câmera que roda sobre o mesmo de forma constante e cortada. No centro está um pássaro que é preparado para o grande momento por um braço mecânico que faz tudo, veste, limpa, penteia. Só que o grande momento não é nada do esperado e a surpresa gerou a maior salva de palmas da sala. Por fim, Milch (Grande Prémio Cinanima 2005) mantém uma bizarria constante durante 15 minutos, com personagens no limite da desfiguração e relações no limite da sexualidade. Brilhante trabalho sobre a luz (utilizando imensos planos contra-luz ou de grande contraste interior/exterior), o filme norte-americano pode merecer a distinção maior, mas é no mínimo perturbador e a prova de que o cinema de animação não tem as crianças como público-alvo preferencial. Para o ano, esperemos, há mais.

Oiçam



Gilles Peterson presents The BBC Sessions - Vol. 1

Howl's Moving Castle (****)

Há vários tipos de pessoas no mundo (é uma frase brilhante para começar um texto). Há as que gostam de Cinema e as que não gostam. E atenção, a maiúscula é propositada. Ou seja, não vamos falar das pessoas que gostam de filmes. Essas são a esmagadora maioria. Agora as que gostam de Cinema já são bem menos (das que não gostam nem de uma coisa nem de outra não vale a pena falar). De entre as que gostam de Cinema, há as que gostam de Cinema de Animação e as que não gostam. Uma boa amiga minha, por exemplo, não compreende o conceito de Cinema de Animação. Para ela, vai tudo no saco de "Desenhos Animados". Mas estes estão para o primeiro como os telefilmes para o Cinema. Estas distinções, aliás, dão casos curiosos na história do cinema, como X-Files, o filme, que era um excelente episódio para televisão mas de cinema não tinha absolutamente nada (partiu de um equívoco, portanto). Mas voltando atrás, este texto fará muuuuuuito mais sentido para quem gosta de Cinema de Animação, e não de Desenhos Animados. É assim como ter óculos: quem tem progressivos não tem simples, quem tem simples não tem progressivos. E portanto falar de progressivos a quem usa simples não serve de muito. A não ser que o pitosga tenha interesse em ter progressivos, e aí podemos explicar as vantagens (este exemplo era óptimo se não estivessemos a falar de um produto necessário, cuja escolha de uso ou não uso não é grande). Ora, para os que usam progressivos vamos falar de umas lentes do caraças, para os que usam simples vamos falar de progressivos, se um dia quiserem pensar nisso... Ora, os que usam progressivas das boas (isto é, gostam de Cinema e de Cinema de Animação) sabem porque é que gostam. Não, não é pelos bonecos. Não, não é pelas cores. E não, também não é por ser uma boa forma de ter os putos entretidos a olhar pro boneco durante duas horas. É porque o cinema de animação (globalmente, agora com minúsculas) cumpre um dos objectivos do Cinema: o da criação de Imagem (mais uma vez, diferente da crianção de imagens). Ou seja, a manipulação imagética que está na base da constituição do filme, seja desenho 2D, programação 3D ou plasticina, cria, efectivamente, um campo estético que não existia. É tal como a diferença entre Cinema e Filmes. No Cinema falamos do cinema de Godard, Eastwood ou Cronenberg, nos Filmes nem sabemos quem é o realizador, só sabemos o nome do filme, dos actores, etc. Como é óbvio, há correntes, nomes, estéticas. E a corrente, chamemos-lhe assim, mais conhecida e forte do Cinema de Animação é a japonesa, verdade de La Palisse. Não falamos, amigos das não-progressivas, do Dragon Ball Z, mas de Akira, não de Heidi, mas de Blood: The Last Vampire, não de Pokemon, mas de Spirited Away. Falamos de Howl's Moving Castle, que em tuga deu um literal mas não ofensivo "O Castelo Andante" (Spirited Away tinha dado um idiota "A Viagem de Chihiro"). Falamos, no caso concreto, de Hayao Miyazaki. O senhor Miyazaki nasceu a 5 de Janeiro de 1941. Em 1963 começou a sua carreira de animador no estúdio Toei Douga. Depois de muito trabalhinho, fundou o estúdio Ghibli, referência hoje mitológica no Cinema de Animação. O senhor Miyazaki criou Princesa Mononoke em 1997. O senhor Miyazaki criou Spirited Away em 2001, para depois criar Howl's Moving Castle em 2004. Spirited Away é possivelmente o que, dos três, mais incorpora todas as premissas da corrente do cinema japonês que o senhor Miyazaki criou ao longo de décadas: desenvolvimento gráfico arrebatador, com uma definição de personagens principais de aparência frágil mas substantivos na acção, cenas aéreas a torto e a direito, aproveitamento da mitologia nipónica panteísta, uma obsessão privada por porcos, visão optimista sobre a vida, espelhada no desenlace dos argumentos e na tentativa de um fundo pedagógico (e não pedagogo). O senhor Miyazaki, distinguido este ano no Festival de Veneza, repete a dose em Howl's Moving Castle, se bem que de forma não tão perfeita (o que poderá ser explicado pelo facto do projecto não ser originalmente seu e só o ter assumido quando o realizador inicial o abandonou?). Howl é um feiticeiro jovem, com uma enorme importância no reino. Para fugir a inimigos criou um castelo que se move, qual locomotiva sem necessidade de carris e com pernas de galinha, alimentado por um pequeno demónio do fogo que sobrevive na lareira acesa. Quem está dentro do castelo roda uma maçaneta, abre a porta e está ora na cidade real, ora no meio do nada, ora numa ruazinha da zona histórica. Em cada localização Howl tem um nome diferente, em cada localização vende feitiços para diferentes situações, como uma mercearia. Na multiplicação de egos, Howl perde-se do seu e é apanhado por uma guerra entre nações. No meio de tudo há Sophie, alvo de feitiço alheio que a deixou como velha de nariz pontiagudo e costas dobradas. Nos filmes de Miyazaki nada é o que parece: novos parecem velhos, alter egos pululam por todo o lado, rios parecem ruas, demónios parecem fogo de lareira. A estrutura dos argumentos baseia-se sempre na ilusão como factor primordial, em como essa mesma ilusão gera angústias, e essas angústias são superadas pela consciencialização da ilusão e pela recuperação de um estado "puro", inicial, "correcto". Sobre as antagonias dentro do seu trabalho, dizia o senhor Miyazaki em Maio deste ano que "this film is intended for a sixty years old little girl". E, portanto, é uma óptima oportunidade para as meninas de 60 anos que andam por aí deixarem as lentes fundo de garrafa e comprarem umas novinhas progressivas, para abrirem bem os olhos e fazerem aquele conhecido movimento de pescoço: "sim, sim, é isto".

Facto histórico indiscutível de quinta-feira à tarde

Está dia de terramoto.

Oiçam

Constança e o bicho

Acabou há segundos a entrevista de Constança Cunha e Sá a Cavaco Silva (à hora que escrevo este texto) e estou perfeitamente extasiado. Há dias assim: um tipo senta-se à mesa do jantar com uma sopa à frente e olha para a Constança, aquele ar levemente agreste, a puxar a um centro direita levemente idiota, e pensa "pronto, lá vai ela fazer um favorzinho ao cabrão". Ainda a colher não chegou à boca e o feijão não atingiu o palato e ela dispara. PUM! E engasgo-me antes de começar a comer só com o som que sai do televisor a precisar de um condensador novo. Segundos depois PÁS! e começo a sentir um formigueiro nos dedos dos pés, o sangue a correr livre sem varizes, um leve sorriso forma-se na sinapse que me comanda os músculos da face e evolui para um brilho vagamente demente nas meninas dos olhos, que dormiam. A coisa arranca e Constança não perdoa: PIM!, PRUMF!, TAU!, SPLASH! Ouve-se o bicho estrebuchar, primeiro engasga-se com o provincianismo acumulado nas gengivas a querer evitar uma ida ao dentista, depois ira-se e puxa de uns galões que não queria usar, depois perde reacção e vai dizendo que "passaram anos" ou um arrasado "não creio que tenha dito isso". Constança flui como uma ligação a 16Mbps reais, recorda frases de 1985, 1996, 1979, conversas antes dos governos de Soares e depois, textos desconhecidos, imagens criadas, tudo lhe sai como se tivesse estado décadas à espera do momento, como se fosse uma sombra que o tivesse seguido e agora gritasse todas as veias que se entrecruzaram, todas as incongruências, desmontando o tabu matemático que de tão abstracto escorre para o catatónico. Constança sente-se maior, é ali que tem que derrubar o monstro, é ali que sai da carcaça e o obriga a irritar-se, a lembrar o passado, a ir a jogo, não a dizer algo de substantivo mas a repetir o nada que lhe sai e que assim surge visível, como uma novem de fumo que se liberta de um pulmão condenado. E agora, aqui sentado, depois de meia hora ou mais em que o tempo se suspendeu e cada pergunta era mais perfeita que a anterior, em que bastava pensar no próximo ataque que ele já havia sido lançado, ao extremo de ter saído o que ainda não pensámos nem viríamos a pensar, agora, que gostávamos de ser uma grama do cérebro económico que habita aquele algarvio que pensa em si como Dom. Sebastião para assistir à ira irrevogável que o vai assolar durante largos minutos, agora dá vontade de transcrever tudo, todas as palavras, todos os olhares de indiferença de Constança, todos os esgares do bicho, todos os finais de frase sorridentes quando se lembrava o que o assessor lhe disse, "não se irrite, sorria, fale no bem dos portugueses, não se envolva emocionalmente, não lhe responda directamente", todas as memórias que acorriam para atacar, todas as memórias que não acorriam para defender, tudo, e imprimir milhares, milhões de cópias para ensinar as crianças portuguesas sobre: "como fazer uma entrevista a um filho da puta".

Sample



Ao trabalhar no Paint Shop Pro 9, quando queria clickar no botão Open enganei-me e clickei no botão ao lado, Browse, o qual nunca tinha utilizado. Abriu-se uma janela e surgiram miniaturas de umas dez imagens, o conteúdo da pasta "Sample" do próprio Paint Shop Pro. No meio de um cacho de uvas e de um balão de ar, estava esta imagem, identificada como "photo3". O que faz esta imagem numa pasta de samples? Quem são estas crianças? São sample de quê? E porque é que a imagem não tem identificação objectiva, estilo "oldpicture" ou "children"? Onde foi tirada a fotografia? Quando foi tirada a fotografia? Como surge agregada a um dos mais conhecidos softwares de imagem a nível mundial? Porque é que as crianças têm fato de cerimónia, com laço, e estão num descampado com arame? Onde estão hoje? São coisas destas que perturbam o dia de uma pessoa. Ao ver a imagem no TFT de 19 polegadas que tenho à frente, o rato dirigiu-se quase automaticamente ao Media Player e fez play em "Concerning the UFO Sighting Near Highland, Illinois", tema de abertura de Illinoise, obra perfeita de Sufjans Stevens. Aquelas crianças haviam de gostar.

Nippon Koma



Aos interessados se anuncia que entre 28 de Novembro e 3 de Dezembro a Culturgest apresenta Nippon Koma, festival de cinema japonês nas suas vertentes de animação e documentário. As sessões são às 18:30h e 21:30h, os bilhetes a 2 euros, o espaço é o do Pequeno Auditório e os filmes são legendados em inglês. A curiosidade é vossa.

Alice (****)



Há algo de assustador no consenso. Ou seja, quando milhares de portugueses vão ver um filme português e toda a gente diz bem, eu desconfio. Porquê? Porque estou habituado à ditadura da cultura de massas, até estudei a coisa, Adorno, Benjamin e alter. E também já me habituei (não me conformei, atenção) aos baixíssimos padrões de exigência dos portugueses face aos objectos culturais. Dizem-me: "não são só os portugueses, o resto da Europa é assim". Ok, ok, até pode ser, mas no resto da Europa os padrões serão TÃO baixos? Se calhar é a nossa (minha) mania de achar que lá fora é que é bom... Tudo isto para quê? Para dizer que fui ver Alice, de Marco Martins, com um misto de desconfiança e curiosidade. Estilo sobrolho franzido mas olho bem aberto. Primeira observação: a média de idades dos espectadores, que ocupavam meia sala, devia ser superior a 50 anos. O que é curioso, na medida em que deve ter relação directa com o tema: a perda de um filho deve chamar muito poucos jovens ao cinema, o que diz bem da visão redutora que os espectadores têm do cinema, em termos globais. Segunda observação: a primeira imagem de Alice é soberba. O que é mau. É mau porque das duas uma: ou a partir daí é sempre a descer, e "queimou-se" o olhar de quem vê logo de início, ou a partir daí se mantém o padrão, o que é improvável. E a felicidade dos dias é o improvável dar em possível. Alice é um olhar estilizado sobre a perda de um filho, não no sentido de desaparecimento efectivo e completo, de morte, mas antes como um fade out demasiado rápido para ser controlado ou desejado. Alice, a criança ausente/presente em todo o filme, já não está quando Marco Martins nos introduz aos dias cinzentos da segunda circular. Alice, a ideia de criança que ocupa a rotina de Mário (Nuno Lopes), é um fantasma que ocupa um espaço crescente no filme, da mera ausência à presença sentida pelo pai na baixa de Lisboa. Muito para além de um filme sobre uma criança desparecida, a primeira obra de Martins lança um olhar praticamente inédito sobre Lisboa, uma cidade cosmopolita contemporânea, com uma indiferença real, com multidões que enchem e esvaziam gares, sem romantismos de colinas ou de luz. Muito para além de Alice, a criança, Alice coloca a cidade debaixo de mira, filmada pelas cameras de Mário, num fluxo de imagens que se compõem e decompõem pelos olhos de quem vigia. Se a carga dramática estava assegurada pelos princípios básicos do argumento, a sua efectivação é conseguida pelos elementos que a devem carregar: pelos actores (Beatriz Batarda ao seu nível, Nuno Lopes a um nível surpreendente para uma estreia), pela banda sonora (Bernardo Sassetti sublinha todo o filme de forma crua e simples) e pela fotografia, retirando à cidade o que lá está mas raramente se vê, colocando na tela a indiferença que usualmente apenas tem olhos individuais. O facto de Marco Martins filmar algumas cenas sem figuração organizada, por exemplo, é sintomático: a indiferença perante um folheto com a imagem de uma criança desaparecida é real, é de portugueses reais, é uma multidão espontânea que vira a cara. É o outro lado do espelho.

Vidas Difíceis VI

"Um norte-americano que teve um ataque de pânico quando descobriu que estava colado à sanita da casa de banho de uma loja de materiais de construção vai processar a empresa em causa por negligência. O homem, oriundo do Colorado, afirma que o pessoal da loja ignorou os seus pedidos de socorro. O engenheiro eléctrico de 57 anos, Bob Dougherty, contou na quinta-feira passada que, dois anos depois do incidente, estava a sofrer de stress pós-traumático, que produziu complicações tão graves como a diabetes e problemas cardíacos, refere a Reuters. Desde os 20 minutos que passou colado à sanita que Dougherty reporta "pesadelos todas as noites, em que me vejo fechado num quarto escuro, sem janelas, portas, ar livre ou forma de escapar. Acordo coberto de suor". A empresa Home Depot Inc. não comentou o processo que foi interposto na semana passada em Boulder, Colorado. Dougherty disse que pensou estar a ter um ataque cardíaco quando se apercebeu que as suas nádegas e pernas estavam coladas ao tampo da sanita na casa de banho da loja Home Depot em Louisville, no Colorado".

in Público, pag. 62, 06/11/2005

Para ouvidos atentos a Antony recomenda-se...

que abram os olhos e vejam também Mysteries of Love e The Lake.

Depois do silêncio...

cá estamos. Eu e a minha esquizofrenia aguda.