Forreta?

Recuperando a frase inicial de muitos posts deste blog: eu tenho graves problemas mentais. Um deles, nunca antes aqui explorado, tem a ver com dinheiro. Ora, a definição de forreta é: "pessoa avarenta, sovina, somítica". Este é o sentido clássico. Neste sentido, eu não sou forreta. Pago um almoço aos amigos (?) com muito gosto. Vou jantar fora com a jovem que me atura e não olho para os preços nem me queixo da conta se for bem servido. Como duas empadas de galinha e um café ao pequeno-almoço de sábado, se tiver fome. Portanto, no sentido clássico, não sou forreta. Mas, caraças e aqui é que é a merda, mas custa-me comprar coisas comó caraças. Não sou, longe disso, materialista. Sofro horrores para comprar um par de sapatos de 40 euros. O ritual é bem conhecido: procuro aqueles sapatos durante semanas. Se tenho a sorte de os encontrar, rondo a loja frequentemente, olho para a montra, entro, vejo o preço, saio. Na semana seguinte repito o procedimento, desta feita apenas olhando de longe, sem tocar. Nunca os calço. Rumino a alguém que aqueles sapatos são giros. Dizem-me que sim, que os devia comprar. Calo-me. Outra semana e visito a zona, sem ir à loja. Outra semana e, com a companhia de alguém, entro na loja, sento-me, calço-os e peço opinião. Quando me dizem que sim, que ficam bem, faço caretas e penso longamente. Ando pelo loja, faço posições, dobro as pernas, mexo os dedos. Descalço-os. Olho mais uma vez para a etiqueta com o preço, enquanto o alguém que me acompanha diz "vê lá, leva". Dirijo-me ao balcão com cara de poucos amigos. Pago, e saio tristíssimo com o dinheiro que gastei. 40 euros. 40 euros por algo para andar no chão. 40 euros que davam para ir não sei quantas vezes ao cinema. Mas eu preciso mesmo destes sapatos? Preciso. No dia seguinte calço-os. No outro dia deixo-os a um canto, retomando-os dois dias depois. Passado uma semana a tristeza passou, e são os melhores sapatos que podia ter comprado, são confortáveis, bonitos, ficam-me bem, são úteis, e eram mesmo necessários. Foi assim com o carro, há três anos. É assim com quase tudo, a simples, mera e banal ideia de gastar dinheiro que não tenha um pano de fundo de necessidade, mesmo que emocional, dá-me nauseas. Dilemas, minutos sem dormir. A necessidade, mesmo que emocional, não é, atenção, de comprar algo (característica, creio, tipicamente feminina). É uma necessidade objectiva. Daqui se pressupõe que muito raras vezes me arrependo do que compro. Que compro poucas coisas. Que tenho enorme dificuldade em comprar bens, para os ter. Não me interessa a posse. Não quero as coisas para serem minhas. Quero-as para que façam parte da minha realidade, e para isso têm que ser únicas. Mesmo que sejam iguais a tantas outras. Tem que ser mesmo aquilo. Não admito erros, nada pode justificar que, por 40 euros, os sapatos não sejam mesmo aqueles. Dilema actual: um PC novo. Vou ficar sem este onde escrevo e quero comprar um portátil. Conheço como quase ninguém o mercado, sei precisamente o que é adequado ao meu tipo de utilização. Custa 1700€, mais coisa menos coisa. Entrei hoje na loja, decidido. E a tristeza subiu-me aos olhos. Segundos depois ia ser 1700 euros mais pobre. Eu preciso mesmo de um PC? 1700 euros. Aquilo não vale 1700 euros, eu dava uns bons 400 euros, avaliando o objecto intrínsecamente. Mas é mesmo aquilo. Eu preciso? A necessidade é um valor subjectivo, quando desprovido de humanidade. A vida está cara, mas não me queixo da conta da água, ou da luz. Os menos de vinte euros de água que pago por mês têm um valor centenas de vezes superior. Pago um almoço aos amigos (?) com muito gosto. Vou jantar fora com a jovem que me atura e não olho para os preços nem me queixo da conta se for bem servido. Como duas empadas de galinha e um café ao pequeno-almoço de sábado, se tiver fome. Mas custa-me horrores gastar dinheiro. Querida Maria, sou forreta?

Alkantara

Está confirmado: o Animatógrafo tem presença assegurada no festival Alkantara, mais concretamente em seis espectáculos (para já). Principais espectativas apontadas para The World in Pictures, da forced entertainment, e para tragedia endogonidia, da soìetas raffaello sanzio, sem esquecer an oak tree, com Tim Crouch. Principal desilusão à partida: a impossibilidade de ver Orquéstica, o novo trabalho de Tânia Carvalho, por questões de agenda. Mas, à partida, estão reunidas as condições para serem umas boas duas semanas.

Desabafo mental (IV)

Calor e mulheres, cada um aguenta o que pode.

Notícias da barra: SOCA

Continuando na ideia de explicar porque é que os blogs que estão aqui na barra da direita estão aqui na barra da direita (sim, porque não estão por estar), há os que eu visito de vez em quando, os que espreito uma ou duas vezes por semana, e os que, fatidicamente, leio cada vez que ligo o PC. Nesta última categoria incluem-se três ou quatro e o Sociedade Anónima (SOCA para os amigos) é um deles. É um blog de gajas, para gajas e sobre gajas, e que fala de gajos. Mas, mais do que tudo isto, é magnificamente bem escrito, por mulheres inteligentes. São muitas e fazem da casa uma comunidade dinâmica e bem disposta, sem esquecer frustrações e devaneios. São gajas mas não são gajas. São gajas como as gajas devem ser: de saia, mas morenas (por oposição a loiras). Usam socas quando é preciso, mas ficam bem de ténis. Conhecem os homens à légua, mesmo quando afirmam que não os conhecem. Conhecem-se à légua, mesmo quando se surpreendem. Muitos textos da SOCA metem o Animatógrafo num bolso, outros nem tanto (não podem ganhar todas). A ler, repetidamente, por gajas e machos interessados.

Drawing Restraint 9 (**)

Por falha gravíssima da minha parte, nunca o Animatógrafo viu post mais gordo sobre Cremaster. E devia. Vi três dos cinco filmes que compõem o trabalho mítico de Matthew Barney no King, em cinema, e os restantes dois em casa. É doloroso. E extraordinário. Não, não sou um profundo masoquista à espera de dor para gemer de prazer. Eu explico: Cremaster, tanto na forma como na substância, não é cinema. É performance, é arte, é desenvolvimento estético sobre um dispositivo visual com movimento. Foi criado para ser visto em cinema, mas não tem qualquer relação com o mesmo. Ou antes, tenta romper com o mesmo. A dor de ver Cremaster advém precisamente dos filmes obrigarem a um trabalho constante de desafectação perceptiva. Quando vi Cremaster 3, passei os 182 minutos a relembrar-me, forçadamente, que aquilo não é cinema. Não há história, não se devem procurar personagens definidas, deve-se antes deter no trabalho de construção estética e conceptual de Barney. No fundo, é o mesmo que estar 182 minutos a olhar para um quadro de Jackson Pollock ao mesmo tempo que se circula pela sala. Tudo é construção mental do espectador a partir de uma construção estética de Barney. Por tudo isto (e por muito mais) é que Cremaster é extraordinário e abriu fronteiras novas à arte, quer em termos de forma (raras vezes se serve da imagem-movimento no sentido clássico para se constituir) quer em termos de conteúdo. Em Cremaster, adicionalmente, Barney tinha o bom senso de partir cruamente para um abstracionismo militante, que dava um lugar de excelência ao espectador enquanto criador da sua interpretação, da sua arte. Barney nunca por nunca piscou o olho ao simbolismo. Limitou-se a criar dimensões estéticas, aproveitando ao tutano o dispositivo técnico de expressão eleito, e deixou o resto a quem de direito. Se se quiser, um profundíssimo anti-neo-realista. Por tudo isto, também, é que andava (eu) a salivar por Drawing Restraint 9, o primeiro (em termos cronológicos de criação) filme do novo projecto de Barney. Drawing Restraint, em termos globais, é um projecto artístico de Barney que compreende escultura, cinema, instalação, vídeo e o diabo a quatro. Barney desenvolveu o projecto de 1987 a 2005, e Drawing Restraint 9 é a face visível e mediática. E além disso é um desastre. Ponto 1: Barney perdeu as premissas de Cremaster e deixou-se seduzir por um simbolismo bacoco e idiota, que mistura baleias, petróleo e barcos. O resultado é pouco menos que entediante. O lugar de excepcionalidade que o espectador tinha em Cremaster, como criador do seu próprio objecto artístico a partir de uma definição estética alheia, desapareceu. Barney aposta claramente no cavalo errado, o que é, mais que tudo, triste. Ponto 2: deriva do ponto anterior que esteticamente o filme não tem projecção aceitável. Se em qualquer Cremaster Barney apostou na criação de ambientes cromáticos e de coreografia visual que definiram o próprio filme como objecto artístico, em Drawing Restraint 9 a preocupação simbólica amputa o filme de tudo isso. Ponto 3: a participação de Björk é pouco menos que patética. A senhora, que se perdeu de amores pelo realizador esquizóide, pura e simplesmente não encaixa em nada. O ritmo é desajustado, a conjugação forçada. Parece uma criança a quem deram um rebuçado e o trinca desalmadamente, sem compreender que o doce é para ir derretendo devagar na boca. Acresce a isto, mas aqui a culpa não é dela, que Björk não é compatível com objectos em que se queira uma representação conceptual/abstracta. Porque Björk é concreta. O sorriso é dela e não de uma mulher qualquer num barco. O andar é dela e não de uma mulher qualquer num barco, os olhos são dela e não de uma mulher qualquer num barco. Se Lars Von Trier teve a mestria de aproveitar o que necessitava da islandesa em Dancer in the Dark, criando uma Selma que era Björk na exacta medida em que era necessário, já Barney não separou trabalho de conhaque e meteu a pata na poça. Dos três pontos se infere uma conclusão triste: Drawing Restraint 9 está a milhas de Cremaster, em tudo. Barney parece ter infantilizado e cedido à pressão do simbólico. Fica a curiosidade pelo conjunto de trabalhos que compõem o ciclo por inteiro e um sabor mais que amargo na boca. Pior que não saber fazer as coisas, é ter sabido e desaprender.

Desabafo mental (III)

A auto-censura social é a mãe de todas as virtudes.

Desabafo mental (II)

Mulheres de fio dental e calças transparentes andam à procura de conforto.

Desabafo mental (I)

Não há cu que aguente a brasileirização da sociedade portuguesa.

Este blog é extraordinário!

Não, não é este, o Animatógrafo. É este. Chama-se Vitriolica Webb's Ite e é simplesmente extraordinário. Está escrito em inglês, porque a senhora é inglesa, mas tem origem tuga, na medida em que a autora vive ali na zona de Azeitão. É uma artista gráfica que trabalha para a revista Atlântico e Kulto (aquela dos putos que sai com o Público), entre outras coisas, e a tipa é brilhante. Não só se alonga sobre a sua visão de Portugal e dos portugueses, como destila sentido de humor. E faz tudo isto com uma excelente interacção entre texto e desenhos, que muitas vezes dizem tudo. A capacidade de apanhar coisas é fantástica, e ela transporta-as para o papel com uma enorme facilidade. O tom é confessional, íntimo, ao mesmo tempo para ingleses e portugueses, o que não é fácil. Descobri isto porque foi um dos nomeados para os Bloggies 2006, os óscares da blogosfera, na categoria de Melhor Blog Europeu. Não ganhou, mas bem que podia. Vai passar a constar da barra aqui da direita, claro, e merece visitas contínuas, a bem do humor e da sanidade. É com isto que o Animatógrafo encolhe e sente-se pequenino, como se tivesse passado um dia inteiro dentro de uma piscina. Engelhado. Leiam a Vitriolica.

Horóscopo

Nas coisas da astrologia, há os indefectíveis, os curiosos, os desinteressados e os tangosos. Quem são os tangosos? São os que dizem que sabem que "aquilo é tudo uma grande tanga". E onde ganharam esta ideia? Ora, nas revistas femininas, lendo aqueles quadradinhos que costumam vir nas últimas páginas. Depois de formarem a ideia de que "aquilo é tudo uma grande tanga", os tangosos partem para a origem da tanga e verbalizam "aquilo é tudo inventado". E é aqui, precisamente aqui, que o jornal METRO, sempre o jornal METRO, nos vem revelar a verdade verdadinha dos horóscopos. Ora, o paladino da transparência nos túneis de Lisboa, que nos ilumina o percurso entre o Colégio Militar e Baixa-Chiado, lançou um concurso de escrita criativa. O anúncio, localizado na penúltima página, reza:

"SE...

... já tens nome na praça
... não tens sentido de humor
... não sabes escrever
... já passaste dos 40

NÃO PODES ESCREVER O HORÓSCOPO DO METRO!

Se não jogas com o baralho todo mas queres dar cartas, manda o horóscopo da próxima semana para metro@metroportugal.com"

Cá está. O METRO assume abertamente que o horóscopo pertence ao domínio da criatividade e vai daí democratiza a coisa para quem não "joga com o baralho todo" (esta expressão já teria sido utilizada em termos publicitários alguma vez?). É o chamado horóscopo a METRO. Eu estou seriamente a pensar enviar qualquer coisa. Sobretudo porque preencho os requisitos por completo: não "jogo com o baralho todo", quero "dar cartas" e os CTT não me atraem (ganha-se mal e não tem grande piada), não passei dos 40 (pelo menos a polícia nunca me apanhou), sei escrever (mal mas sei), tenho sentido de humor (mesmo que destorcido, sádico e profundamente inadaptado) e não tenho nome na praça (a Câmara Municipal não dá nomes a gente viva). Ora, pode ser qualquer coisa do género:

Capricórnio: semana propensa a flutuações de humor, sobretudo para mulheres menstruadas e funcionários despedidos. Tenha cuidado com as companhias, nem sempre querem o melhor para si. Boa altura para passeios ao ar livre, sobretudo até à farmácia.

Leão: a Lua na casa seis indica que vai ter grandes insónias se deixar o estore aberto durante a noite. Boa oportunidade para investir numa relação, se acha que o gato já não cumpre os requisitos como companhia e precisa de algo mais interactivo. Cuidado com o fígado e com vodka. Não são compatíveis.

Bebés, para que vos quero?

É verdadeiramente extraordinário que centenas (milhares?) de pessoas protestem contra o encerramento de maternidades de proximidade. Ora, não somos o país da União Europeia com menor taxa de natalidade? Não temos uma taxa de envelhecimento da população galopante? Se os portugueses não querem ter filhos, porque querem que os locais onde não querem ter filhos sejam próximos? Invertendo a situação, se a ordem do governo fosse para encerrar funerárias, as centenas (milhares?) de pessoas viriam para a rua? Não. E é aqui o ponto de toque de tudo isto: a questão não é, de forma alguma, processual ou de resistência à mudança. É simbólica. O nascimento é dos momentos mais emotivos no sub-consciente das pessoas, mesmo as que não desejam ter filhos. A morte é, naturalmente, dos mais negativos. Fechar maternidades provoca uma sinapse específica na cabecinha de cada português, cujo significado, errado, é "o governo é contra a vida, agora não nos deixam nascer". Além, claro, de ideias românticas relativamente à localidade de nascimento, "a nossa terra", que não tem qualquer aplicabilidade e cai por terra quando o adolescente diz não ter qualquer interesse pela "sua terra" e quer emigrar ou migrar com a rapidez possível. Mais uma vez, e desta feita manipulados políticamente por estruturas locais (que a oposição a nível nacional não tem jeito para isso), os portugueses, centenas (milhares?), não conseguem compreender razões de natureza organizacional e partem para a rua em marchas. O facto de uma medida de natureza organizativa num sector específico gerar manifestações é sintomático do Portugal de início de 2006: sem cabeça, à procura de porrada na tasca errada, embriagado apenas com cheiro.

Sem título

Mais pontes

E como se já não bastasse, vai de transformar o Danças na Cidade no Alkantara, que parece querer ocupar à tirano o lugar de maior e melhor festival cultural do ano. Este fim-de-semana folheei longamente o programa da coisa (rapinado na Culturgest por quem me quer bem) e a coisa é de tal forma que só não tiro férias porque não posso. O evento estende-se a tudo quanto pode, abrangendo quantas artes mais, qual festival em estilo polvo para acabar com a monotonia. São 17 dias, de 2 a 18 de Junho, em que os organizadores parecem querer afogar a cidade na originalidade, na procura do corpo, no pensamento sobre a dança, numa utopia quase tornada realidade. As minhas sinapses estão orgásmicas.

Mais cinema

Dá-me ideia que a maior parte das pessoas ainda não se apercebeu que Lisboa vai acolher o Lisbon Village Festival, nada mais nada menos que o primeiro festival europeu de cinema digital. De 21 a 25 de Junho, a coisa é de tal forma que engloba cinema, exposições e performance, numa ideia de troca de experiências com outros eventos lá fora ( como Skip City International D-Cinema Festival) e mostra de produção pouco comum. O programa ainda não foi revelado, mas a coisa estende-se do S. Luiz ao Maria Matos, passando pelo reaberto S. Jorge, para além de uma rede de galerias e outros espaços. Os arautos da desgraça cultural, pelo menos teoricamente para já, têm vida difícil.

Mais dança

Dia 11, próxima quinta, já tenho lugar assegurado para Heróis, nova coreografia de Emmanuelle Huynh, do Centre national de danse contemporaine d’Angers. Porque sim.

Mais bonecos

De 16 a 21 de Maio, há Monstra em Lisboa. O programa não é extraordinário, mas é sempre uma excelente oportunidade.

Mais cansaço.

Não, não abandonei isto. Estou é com um problema grave com a organização do tempo, do ponto de vista convencional. É que o dia só tem 24 horas e eu só tenho um cérebro. Ou assim penso (no caso do cérebro).

Cansaço

E há dias em que é tudo.

[indieLisboa2006]: balanço

Primeiro que tudo, uma ressalva: eu não estive nas duas primeiras edições do IndieLisboa. Pelo que, como é óbvio, não tenho dados de observação directa que me permitam fazer qualquer análise comparativa. Assim, este balanço é deficitário. Ainda assim, vou tentar. Num plano organizativo, enquanto espectador, saio bem impressionado. E atenção que a minha expectativa era já algo elevada: quem está na origem do Indie é a Zero em Comportamento, antiga Geniuzastare, associação que começou o seu trabalho com ciclos no cinema 222, há anos. Acompanho o trabalho dos seus responsáveis desde o início, desde o tempo em que a sala do Saldanha tinha três ou quatro pessoas para ver filmes, inéditos em Portugal, de Peter Greenaway, por exemplo. Desde aí que demonstraram profissionalismo e qualidade no trabalho, quer de organização quer de programação, para além de um compromisso para com o cinema independente e o seu desenvolvimento. Neste indieLisboa 2006 senti o mesmo espírito, numa dimensão vários furos acima. A informação sobre a programação e procedimentos para o espectador foi atempada e explícita. Não dei conta de perturbações nas sessões, e assisti a quase todos os filmes da competição internacional, para além de outros noutras secções. Apenas alguns atrasos nas sessões, devidamente explicados e com correspondente pedido de desculpas por parte de alguém da organização, e perfeitamente aceitáveis. O merchandising era acessível e bem interessante, do ponto de vista gráfico e de variedade. Questão a corrigir é a de não haver aquisição de bilhetes centralizada, sendo necessária a deslocação a cada um dos cinemas para comprar os ingressos para as respectivas sessões, dificultando, por exemplo, a questão dos descontos no preço para compra de bilhetes em quantidade. Porém, em termos quantitativos, o festival bateu de longe o número de espectadores de edições anteriores, o que é, de facto, bom sinal. Do lado da programação, e sabendo o que sei sobre os anos anteriores, este pareceu o ano da adolescência do Indie. Agora dividido entre os cinemas King, Londres e Fórum Lisboa, num total de seis salas, o evento apresentou dezenas de filmes, para todos os gostos, e dividiu-se em secções esclarecidas, para além das de competição. Especial foco para IndieMusic, que mostrou cinema sobre música (rezam as crónicas que com exemplos muito bons) e para Observatório e Laboratório, dedicadas a experiências e cinemas singulares, realizadores a seguir e consagrados, numa programação mais que variada. Observatório, por exemplo, trouxe inúmeras ante-estreias de filmes já previstos para o circuito comercial, o que dá a entender que o Indie não quer ser evento soturno e clandestino, só para melómanos. Em competição, e sublinhando que só podiam integrar a mesma primeiras ou segundas obras, estiveram filmes que oscilaram entre o falhado, o interessante ou o brilhante, o que é positivo. Com cinematografias tão distintas como a canadiana, a asiática ou a sul-americana, foi uma programação atenta e à procura de novos valores, mais do que créditos firmados. Play, da chilena Alicia Scherson, acaba por levar o prémio máximo, e foi um dos três filmes que não vi. The Death of Mr. Lazarescu confirma o percurso premiado e sai de Lisboa com uma justíssima Menção Honrosa. Do lado do Público, parece natural o sublinhado claro a Movimentos Perpétuos, de Edgar Pêra, seguido de perto por À Flor da Pele, de Catarina Mourão, ou Mirrormask, de Gaiman e McKean. Em termos de cinema, concretamente, e a partir do que vi e do que ouvi, ficam-me algumas ideias. Primeiro, a de que o cinema independente, em termos de meios e condições, se mantém claramente nas franjas dos esforços financeiros globais. Praticamente todos os filmes a concurso são de baixíssimo orçamento, assumido sem quaisquer problemas pelos respectivos realizadores. Não se ouviram, felizmente, queixumes ou resmunguices sobre isso mesmo, sendo que todos os realizadores presentes pareceram confortáveis com as situações, o que não deve ser confundido com resignação. Segundo, a de que o cinema independente actual se foca muito na experiência humana no seu percurso individual, ao contrário de uma tendência que reflectia a relação entre homem e tecnologia há uma década, por exemplo. Por reflexo da contemporaneidade ou simples procura de temas não recriminados, os filmes independentes vistos parecem querer deter-se sobre a realidade humana enquanto experiência individual de procura, e não de partilha ou comunicação. Sinal disso mesmo é muitos terem a solidão ou o desencanto como tema central. Terceiro, a de que muitos argumentos se alicerçam num vazio, na mesma medida em que Seinfeld era uma comédia sobre o nada. Parece ser este caminho meio perdido, que simultaneamente é sobre tudo e sobre nada, qua atrai realizadores para construirem os seus filmes. Quarto, uma convergência clara entre ficção e documentário, assumida ou não. Enquanto objectos que reflectem um conjunto de noções, os filmes vistos parecem recorrer ao cinema documental como muleta formal de legitimação, não no sentido científico do termo, mas como forma de sublinhar uma determinada natureza independente e, ao mesmo tempo, veicular de forma menos estética, se se quiser, o que está na base do seu argumento e, assim, conseguir atingir o espectador de forma mais eficaz. No fim e no todo, aplauso ao Indie.

[indieLisboa2006]: The Death of Mr. Lazarescu (*****)

O senhor Lazarescu está condenado. Dói-lhe o estômago, vomita desde manhã, dói-lhe muito a cabeça. É um velho coitado que vive em Bucareste, com três gatos, uns vizinhos pouco prestáveis, um problema com o álcool, uma filha que emigrou para o Canadá, um apartamento sórdido. Está condenado, os médicos vão dizer-nos que tem um neoplasma no fígado e pressão intra-craniana. Cancro e traumatismo, qualquer um dos dois fatal. The Death of Mr. Lazarescu é, por título, literal: são os 153 minutos da literal morte do senhor Lazarescu. E aqui a primeira perfeição do filme de Cristi Puiu, uma ode à mortalidade. O espectador assiste, de forma consciente, literal e completa, à morte do senhor Lazarescu. Em termos abstractos ou filosóficos, se quisermos, no limite, todos assistimos à morte uns dos outros, na medida em que todos estamos a morrer a cada segundo. Mas se quisermos restringir um pouco a coisa, e não caírmos no radicalismo de considerar a morte o singular instante em que o músculo maior pára de bater, chegamos à morte do senhor Lazarescu: duas horas e meia literais em que o personagem está, literalmente, a morrer. A cada segundo o organismo do senhor Lazarescu piora, o cérebro sente a pressão e abranda cognitivamente, o fígado sente o cancro a alastrar e desiste de si mesmo. E isto era o suficiente para matar o senhor Lazarescu em duas horas e meia? Não. E aqui a segunda perfeição do filme de Cristi Puiu: o senhor Lazarescu morre em duas horas e meia porque vive em Bucareste, com vizinhos pouco prestáveis, hospitais surreais, médicos absurdos, uma filha que emigrou para o Canadá, ambulâncias que percorrem a noite de hospital em hospital, o azar de um acidente de autocarro que vitima algumas pessoas e domina as cabeças romenas numa noite. Quando o senhor Lazarescu entra na ambulância para o hospital, já o filme se afastou bem do início e o espectador já percebeu que a Roménia, para além do cancro e da pancada na cabeça, é fatal. Quando o senhor Lazarescu, espirituoso e mal-humorado, chega ao primeiro hospital, já o espectador percebeu que não vai ser o primeiro, nem o último, e que a morte apenas se acelera ao comando do médico estalinista que lhe chama bêbado (o que é verdade) e que o despacha para outro hospital, porque está tudo cheio por causa do acidente de autocarro. Os romenos do acidente têm sangue à vista, o senhor Lazarescu só tem bafo de álcool e mau feitio à vista, a morte é relativa. A morte dos romenos do acidente é um drama, coitados, a morte do senhor Lazarescu nem se vislumbra. Mas nós vemos o senhor Lazarescu a morrer. E antes disso, a descer aos infernos, a perder a capacidade de fala, a não ter capacidade para assinar um termo de responsabilidade para ser operado e, consequentemente, a ser recusado por um médico legalista que o despacha para o próximo hospital, enquanto procura, prioritariamente, um carregador Nokia para o seu telemovel. E o senhor Lazarescu morre? Não. E aqui a terceira perfeição do filme de Cristi Puiu: o senhor Lazarescu não existe. Mas nós vemos o senhor Lazarescu a morrer aos bocadinhos, a vomitar sangue, a entrar e sair de hospitais, a fazer um TAC ao cérebro. E ao fim de cinco, sete minutos (como o lusco-fusco) já nos esquecemos que o senhor Lazarescu não existe e olhamos para o senhor Lazarescu como alguém que está, literalmente, a morrer. Ou seja, Puiu filma de forma brilhante uma ficção com cara de realidade. Não é, assim, Puiu que mata o senhor Lazarescu, mas a Roménia, o sistema de saúde romeno, os vizinhos romenos, as ambulâncias romenas, a noite romena, os médicos romenos, os acidentes de viação alheios romenos. E, assim, Cristi Puiu filma uma Roménia (haverá outras) que mata o senhor Lazarescu. The Death of Mr. Lazarescu é um filme duro, pensado, difícil, literal e ficcional, realista e abstracto, sobre a mortalidade e sobre o absurdo da realidade. Foi premiado em Cannes em 2005, com o prémio Un Certain Regard, e noutros tantos festivais, e não deve sair de Lisboa sem uma menção especial. É cinema independente no seu melhor, com tudo no sítio, incluíndo o espectador. Não há muita gente a fazer filmes assim.

[indieLisboa2006]: Pavee Lackeen (**)

E um dos filmes em que eu depositava maiores expectativas revela-se um fracasso, o que é sempre desagradável. Expectativas porque é irlandês (e eu tenho uma forte costela irish de origens desconhecidas), porque é o primeiro filme de um fotógrafo (o que é sempre interessante), porque segue os Viajantes, comunidade nómada ultra-pobre que vive em roulotes nas zonas industriais degradadas de Dublin. Tudo era potência, e tudo fracassa. O filme é de Perry Ogden, fotógrafo britânico que há cinco anos lançou um trabalho fotográfico sobre esta mesma comunidade. E vai daí, sem experiência cinematográfica, o senhor parte para um filme sobre os mesmos “pony kids” que deram nome ao álbum fotográfico. O resultado é, frontalmente, mau. Primeiro, porque é um falso documentário. E isso raras vezes é bom. Ogden filma Winnie, um dos dez filhos de Rosie, uma miúda perdida que larga a escola e anda por Dublin, à deriva. Nunca assumindo que se trata de um documentário, Ogden prefere filmar em regime ficcional hiper-realista militante. Só que o resultado não é carne nem peixe, e as sandes mistas às vezes têm o fiambre estragado. A convergência entre documentário e ficção, nestes moldes, lembra-me sempre o neo-realismo português, que tentava vender por ficção um conjunto de ideias pré-concebidas sobre o mundo. Os filmes com documentário dentro, penso eu, resultam quando não se preocupam com isso, isto é, quando a parte documental emana do resto. Quando o realizador pensa, à esperto, “pera aí que eu vou tentar mostrar isto através daquilo”, o caldo está entornado. Segundo, Ogden não compreende que um filme não é uma reportagem fotográfica. E isso é a morte do artista. Os longuíssimos 87 minutos do filme têm o mesmíssimo ponto de partida e chegada. Não há qualquer percurso narrativo, apenas um “mostrar” da miséria e pobreza dos travellers. Vemos Winnie a lavar a cabeça numa torneira à beira da estrada, a roubar qualquer coisa numa loja, à pancada com uma colega no recreio da escola antes de ser suspensa. E tudo se resume ao facto de ser uma criança de uma comunidade ultra-deprimida, no sentido social do termo. São tudo faces de um mesmo dado. Ogden parece sempre querer mostrar diversos ângulos de um mesmo problema, todos eles já repisados. E isso é o quê? É fotografia. É foto-reportagem. Não é cinema. Pior ainda, e isto é o que me irrita seriamente, Ogden confunde a forma com a substância. Winnie, por si só, com a sua pobreza e miséria, não é um bom filme. É ele, Ogden, que tem que criar um objecto que aproveite todo o interesse que Winnie pode ter em imagem. Qual vampiro, Ogden devia ter sugado tudo o que pudesse daquelas pessoas e construído um objecto que as revelasse, cumprindo-as. No entanto, limita-se a mostrá-las, numa ideia quase de cinema-verité, apostando numa suposta transparência. É o tipo de filme que se aproveita do facto da maior parte dos espectadores, estou em crer, confundir conteúdo com forma, filme com cinema. Shame on you, Mr. Ogden, shame on you.

[indieLisboa2006]: Shark in the Head (***)

Primeira e mais importante premissa: Shark in the Head é a primeira longa-metragem da checa Maria Procházkóva. E isso vê-se. Não no sentido de ser um filme inconsistente e verde, mas sobretudo o de ser um objecto mais de exploração cinematográfica (sobretudo técnica) do que um trabalho de fôlego. A realizadora elegeu Seman, um esquizofrénico simpático que habita em Praga, como personagem central do filme, e o mesmo nunca descola da cabeça deste. Os dias de Seman são passados à janela do apartamento de rés-do-chão ou na rua, de calções e camisola de alças, com um cigarro ao canto da boca, a meter-se com os transeuntes. Os dias de Shark in the Head, por seu lado, oscilam entre as imagens de Seman a rebuscar o lixo alheio ou composições de animação que reflectem a cabeça do checo, constituindo o filme mais “simpático” da competição. Os 75 minutos de Procházkóva provocam muitos sorrisos, e isso é um dos seus melhores alibis. É um filme de experimentação de caminhos, e muitos deles têm a concretização que merecem, resultam bem, resultam. Seman, enquanto esquizofrénico, emana uma honestidade que apanha qualquer espectador na curva e puxa-o para o seu lado. E, honra lhe seja feita, o filme nunca quer ser mais do que é, nunca se arma ao pingarelho, nunca tenta golpes de asa ao jeito suicída de Ícaro. Mas como um filme simpático não é, por si só, um grande filme, Shark in the Head fica-se pelo patamar que define à partida. Cumpre-se, mas nunca se revela extraordinário. Apresenta-se, mas nunca parte para cima do espectador para lhe dar a dentada fatal. O mesmo é dizer que, para primeira obra, está muito bem, sim senhor, mas no futuro terá mesmo que ser visto como “a primeira obra” de Maria Procházkóva. Não é filme para ganhar prémios, nem coros de elogios, mas tomara muitos terem a respiração que Maria imprime à película. E isso já é de louvar.

[indieLisboa2006]: Snow (****)

Loeffen é um pobre diabo que trabalha numa plataforma petrolífera, em cu de judas, Canadá de cima. Tem um cão, Blackie, que é muito mais que um cão. A aldeia mais próxima é Zama, em cu de judas, Canadá de cima. Loeffen move-se entre a plataforma petrolífera e Zama, onde vai comprar alguma coisa, tomar o pequeno-almoço ou meter conversa. O caminho entre a plataforma e Zama é uma estrada perdida de floresta, onde não passa vivalma e a neve domina por completo. Durante 75 minutos seguimos Loeffen e Blackie pela sua rotina e pela sua solidão, apanhando o solstício de Inverno, o dia mais pequeno do ano e a noite mais densa de uma vida pasmada em cu de Judas. Snow, do canadiano nascido turco Hakan Sahin, é um filme que destila tanto beleza como solidão. Zama existe mesmo, assim como Loeffen, Blackie e restantes habitantes. Sahin, presente na sessão no cinema Londres, explica que trabalhou dez anos em Zama, e que todos os amadores actores são pessoas reais, com aquela realidade. Porém, o filme está, felizmente, longe de ser um documentário ou ter pretensões a tal. Antes centra-se na experiência humana extrema de viver em cu de judas, com paisagens inóspitas em fundo e uma paranóia crescente (que o próprio Sahin diz ter sentido a partir de certo momento). Profundamente melancólico, Snow explora a vivência de Loeffen e demais personagens num tom quase abstracto, mas tocando a realidade de forma dura. Nunca o sentimento do espectador é de pena, pois que Loeffen, ainda que só até ao tutano, aceita o seu quotidiano como a sua própria natureza lhe indica. Ninguém parece deprimido no sentido clínico, urbano e contemporâneo do termo. Porém, há um fundo de solidão em todos os olhares. Não o mesmo que habita os idosos no interior dos países europeus, que se sentem longe de tudo sem culpa própria, mas antes uma ideia de afastamento escolhido por honras da vida, porque um caminho os levou ali. Zama é um cenário aceite por si mesmo, tal como a plataforma. Loeffen, personagem dúbio que tem tanto de modesto como de complexo, oscila dentro da sua própria realidade ao sabor da neve. Snow tem uns pós de Lynch, um cheiro dos irmãos Coen e um pouco de algo mais, e tem um realizador a crescer, com sensibilidade para a imagem que filma e para o que está para além dela.