Natal (2)

Aos 10 anos, fui levado a um padre. Simpático, o senhor explicou, demoradamente, os caminhos do Senhor e como podia ser bom para mim abraçá-lo, no sentido de me interessar por ele. Como podia compreender o mundo de outra forma, e os seres que o habitam. Como podia contactar com meninos como eu, alegres, joviais, inteligentes, interessados. Olhei por instantes para Cristo na cruz, para os olhos do padre. Agradeci. À porta da igreja notifiquei o meu pai que não, não queria ir para a catequese, nem ter aulas de Religião e Moral na escola. Sereno, como que avisado, acenou com a cabeça e sorriu, levemente. Muito possivelmente o Natal perdeu-se aí, porque começou um caminho de não retorno pelo território da consciência de existência pessoal e de recusa do transcendental em forma organizada de credo. Nada ali me convenceu porque tudo ali era demasiado bom. Eu era “uma criança extraordinária”, o mundo era um “caminho”, a vida um “percurso” que pode ser levado com “bondade”. Raras vezes coloquei a mim próprio dúvidas do ponto de vista religioso, ou seja, rapidamente o germe do ateísmo se reproduziu e acomodou, confortável. Embora de esquerda, laicos e republicanos, os meus pais jamais exerceram qualquer pressão no sentido de uma posição. Sendo católicos não praticantes, mas profundos conhecedores do dogma e das escrituras, não é pouco. Pouco depois, quando a breve luminosidade da infância se perdeu para a eternidade, o Natal deixou de ser apenas o que era: época de ofertas. Raras vezes teve a família como pólo central, nunca a religião como guia. O que resta? Em termos globais, recuso forçar-me a estados de espírito, por imersão numa orgia social imposta por convenções com diversas origens. Sobram talvez as luzes, na madrugada, que criam ambiente a si mesmas, assombrando os indómitos ou as vítimas da insónia. Então gosto da luz. Na paz do senhor. [continua]

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