Vou para casa



Sexta-feira levantei-me à mesma hora de sempre. A rotina, tomar duche, sair, apanhar o mesmo comboio (vazio), tomar o mesmo pequeno almoço no mesmo local (vazio), entrar na empresa (vazia) à mesma hora. Trabalhei como normalmente, telefonemas, material a chegar, papéis em cima da mesa, o aquecimento ligado. Almocei sozinho, por entre escombros de gente. Saí, como usualmente, mais de uma hora depois do encerramento. Fechar estores, desligar o aquecimento, arrumar a mesa. O comboio para casa vazio. A RTP transmitia um documentário sobre dinossauros, ligo quando um cometa atinje a terra e gera uma onda de destruição que pôs termo ao Cretácico. Cozinhei sozinho para mim mesmo, enquanto já eram mais de 120 mil mortos oficiais. Jantei camarões de Madagáscar comigo mesmo, enquanto Acabado Silva dava umas estaladas no bébé da incubadora improvisada do Contra. Adormeci ao som dos The Gift numa Alcobaça gravada para encher hora noticiosa, acordando com foguetes de pouca dura. Uma chamada, duas SMS, "sim, obrigado, para ti também, adeus". Li o jornal até às 2 da manhã, sobre a cama, para me deixar adormecer com a espertina a rezar feita beata.

Em Beijing ainda é 2004. Os rituais que marcam a passagem do tempo são fenómenos culturais enraizados no mais íntimo pessoal das sociedades, antropologicamente e socialmente estudados, assumidos como manifestação necessária à organização mental, motivando a gestão de expectativas que conduz a conduta da maior parte dos seres humanos. Mais do que isso, a definição de períodos de tempo de natureza organizativa (semanas, meses, anos), ainda que baseados em noções científicas da interacção da Terra com o Sol, assumem contornos de necessidade em termos económicos, burocráticos e organizacionais para um funcionamento social mínimo com o própósito de evitar a violência (no sentido abstracto e lato do termo).

Um ano podia ter 364 ou 366 dias. Seria igual. Na China ainda é 2004. A morte não sabe contar.

1 comments:

  Anónimo

2:50 da tarde

que coisa tão parva, tão pseudo intelectual...