Aurora (*****)

Nosferatu é um filme soberbo. De 1922, é considerado como a primeira adaptação cinematográfica do Drácula de Bram Stoker e, assim, o filme determinante para todo o cinema de terror e, mais especificamente, todo o cinema centrado no conde terrífico. Ainda que por mera sorte, Nosferatu chegou aos dias de hoje. Mera sorte porque as pouquíssimas cópias que existiam nos anos 20 estiveram em efectivo risco de serem destruídas, em virtude de uma quezília entre a viúva de Stoker e Murnau sobre os direitos sobre a história. A viúva felizmente perdeu, senão a História do Cinema era hoje narrada com outras histórias. Tive a felicidade de ver Nosferatu em tela, por generosidade da Cinemateca Portuguesa, nos tempos não longínquos em que esteve no Palácio Foz. Mais: vi Nosferatu com acompanhamento de piano ao vivo (e a preto e branco), acompanhamento esse determinado pelo que se ia passando na tela, experiência que recomendo a qualquer interessado por cinema. Nosferatu, além de um filme seminal, marca ainda uma visibilidade maior de F.W. Murnau, realizador alemão que viria a tornar-se mítico. Muito longe do cinema mudo refém dos personagens e das suas acções, constrangido por ter que suprimir a falta de som, o cinema de Murnau aproveita essa falha técnica para a expressão máxima da imagem. Muito longe da preponderância da expressão facial ou do argumento de Chaplin ou Buster Keaton, o cinema de Murnau pauta-se pela criação de ambientes, sensações ou emoções através da manipulação imagética no seu expoente máximo. O Nosferatu de Murnau é, assim, o mais perigoso e aterrorizador de todos, ainda que sem toda a carga dramática que lhe foi conferida no cinema moderno e contemporâneo. Em 1927, já com alguns filmes em carteira, o alemão F.W. Murnau é convidado pela Fox para fazer o seu primeiro filme norte-americano. O germânico colocou um enorme conjunto de imposições, entre elas a parceria com Carl Mayer, que viria a escrever o argumento. Sunrise (Aurora) estreou nos Estados Unidos em Novembro de 1927, apenas alguns dias antes da Warner Brothers estrear The Jazz Singer, o primeiro filme falado. Sunrise ganhou três óscares da Academia mas foi um enorme desastre nas bilheteiras. Mas muito mais que isso, ficou para a história como, possivelmente, o maior filme mudo de sempre e um dos maiores filmes da História do Cinema. A história é muito simples e não tem nenhuma originalidade por maior: um homem do campo casado é aliciado por uma mulher da cidade que se encontra na aldeia de férias. Tentado a matar a esposa e ceder, não consegue e reencontra o amor com essa mesma esposa, que o destino acaba por tentar matar da mesma forma que ele o havia pensado. Mas muito mais do uma trama irónica sobre pessoas, Sunrise é um objecto formal e substantivamente perfeito. Formalmente, Murnau fez muito mais do que um filme mudo. Quando se fala em afogar a esposa, são as legendas que também se "afogam". Quando o homem pensa na mulher da cidade, é ela que aparece em imagem sobreposta a afagar-lhe o cabelo, como um fantasma. Quando o homem se agita, a música marca compasso, numa antítese que sublinha a acção e cria um ambiente muito acima da imagem concreta. Os planos acompanham as personagens sem as cortar, num movimento que não depende do seu próprio movimento. Muito do trabalho de montagem, aliás, sobretudo na sequência de abertura, lembra O homem da camera de filmar, de Vertov, que apenas surgiria em 1929. Substantivamente, Sunrise filma um enorme conjunto de paradoxos. A aldeia versus a cidade, a cidade versus ela mesma, sendo que pode ser lugar de perdição ou de reencontro, a esposa versus a amante, a morte versus a vida, o destino versus a escolha. Não há, em qualquer acção ou imagem de Murnau, qualquer milagre. Todos os olhares contribuem para um Cinema que se eleva do filme, todos os movimentos geram algo que os transcende, todos os sorrisos partem de uma angústia que se supera. Num lirismo absoluto, a história daquele homem e daquela mulher estão continuamente a gerar uma história superior, que se forma na cabeça do espectador como algo sem âncoras e de carácter divinatório. Como se não fosse possível. Como se não existisse.

Nota: Sunrise (Aurora) está em cartaz no cinema Nimas, em Lisboa.

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