Há algo de assustador no consenso. Ou seja, quando milhares de portugueses vão ver um filme português e toda a gente diz bem, eu desconfio. Porquê? Porque estou habituado à ditadura da cultura de massas, até estudei a coisa, Adorno, Benjamin e alter. E também já me habituei (não me conformei, atenção) aos baixíssimos padrões de exigência dos portugueses face aos objectos culturais. Dizem-me: "não são só os portugueses, o resto da Europa é assim". Ok, ok, até pode ser, mas no resto da Europa os padrões serão TÃO baixos? Se calhar é a nossa (minha) mania de achar que lá fora é que é bom... Tudo isto para quê? Para dizer que fui ver Alice, de Marco Martins, com um misto de desconfiança e curiosidade. Estilo sobrolho franzido mas olho bem aberto. Primeira observação: a média de idades dos espectadores, que ocupavam meia sala, devia ser superior a 50 anos. O que é curioso, na medida em que deve ter relação directa com o tema: a perda de um filho deve chamar muito poucos jovens ao cinema, o que diz bem da visão redutora que os espectadores têm do cinema, em termos globais. Segunda observação: a primeira imagem de Alice é soberba. O que é mau. É mau porque das duas uma: ou a partir daí é sempre a descer, e "queimou-se" o olhar de quem vê logo de início, ou a partir daí se mantém o padrão, o que é improvável. E a felicidade dos dias é o improvável dar em possível. Alice é um olhar estilizado sobre a perda de um filho, não no sentido de desaparecimento efectivo e completo, de morte, mas antes como um fade out demasiado rápido para ser controlado ou desejado. Alice, a criança ausente/presente em todo o filme, já não está quando Marco Martins nos introduz aos dias cinzentos da segunda circular. Alice, a ideia de criança que ocupa a rotina de Mário (Nuno Lopes), é um fantasma que ocupa um espaço crescente no filme, da mera ausência à presença sentida pelo pai na baixa de Lisboa. Muito para além de um filme sobre uma criança desparecida, a primeira obra de Martins lança um olhar praticamente inédito sobre Lisboa, uma cidade cosmopolita contemporânea, com uma indiferença real, com multidões que enchem e esvaziam gares, sem romantismos de colinas ou de luz. Muito para além de Alice, a criança, Alice coloca a cidade debaixo de mira, filmada pelas cameras de Mário, num fluxo de imagens que se compõem e decompõem pelos olhos de quem vigia. Se a carga dramática estava assegurada pelos princípios básicos do argumento, a sua efectivação é conseguida pelos elementos que a devem carregar: pelos actores (Beatriz Batarda ao seu nível, Nuno Lopes a um nível surpreendente para uma estreia), pela banda sonora (Bernardo Sassetti sublinha todo o filme de forma crua e simples) e pela fotografia, retirando à cidade o que lá está mas raramente se vê, colocando na tela a indiferença que usualmente apenas tem olhos individuais. O facto de Marco Martins filmar algumas cenas sem figuração organizada, por exemplo, é sintomático: a indiferença perante um folheto com a imagem de uma criança desaparecida é real, é de portugueses reais, é uma multidão espontânea que vira a cara. É o outro lado do espelho.
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