Infelizmente não existe em Portugal grande tradição biográfica. Aliás, nem pequena. Ainda assim, ninguém ousa afirmar que os portugueses não sabem lidar com a sua história mais recente, nomeadamente do último século. A Alemanha ainda hoje tem problemas (e graves) em digerir o seu século XX. Lembro-me, por exemplo, que numa conferência em Hanover há uns cinco anos senti que todos os intervenientes alemães do meu grupo fugiam de qualquer discussão como o diabo da cruz. Cheguei a confrontar um deles com essa questão e limitou-se a encolher os ombros e abanar a cabeça, como se a dificuldade de confronto, ainda que meramente retórico, fosse algo inconsciente. Nós por cá, ao que parece, não. Todos lidamos bem com os quase cinquenta anos de ditadura. Sabemos o que foi e não temos problemas em falar disso. Aliás, lidamos tão bem, parece, que até integrámos ex-ministros de Salazar, como José Hermano Saraiva ou Adriano Moreira, como figuras distintas da cultura e política portuguesas. É uma das minhas irritações de estimação: a falta de memória dos portugueses. A maior parte não se lembra ao lanche o que almoçou. E portanto, esperar que se lembre que aquele tipo careca e baixinho armado em doutor foi Ministro da Educação Nacional de 19 de Agosto de 1968 a 15 de Janeiro de 1970 é mais utópico que pensar no Benfica a ganhar Liga dos Campeões. E parece que também não há grande interesse em promover a memória colectiva recente. Lembro-me que, nos meus anos de liceu (expressão bonita esta), o século XX português ocupava umas duas, talvez três aulas, enquanto a idade média durava meses (esta também é gira). A onda editorial, hoje, navega a espuma dos Dan Browns que apareceram nos escaparates, encontrando policiais nas páginas da Biblia ou em épocas em que a dita ainda era dita em Latim (e "O Nome da Rosa" do Eco que já tem tantos anos...). Contra tudo isto, aparecem nas livrarias dois esforços que se aplaudem. Primeiro, a "Autobiografia" de Maria Filomena Mónica, eminente catedrática da praça que foi possivelmente a única pessoa a quem ouvi a coragem de afirmar que faltam elites a Portugal (e isto dará para outro post). Ainda não li mas já comprei, e só o esforço biográfico desencantado da própria já vale os euros. Depois, o terceiro volume da biografia de Cunhal, do Pacheco Pereira. Um acto de contrição: já tenho os três volumes e ainda não comecei a ler o primeiro (como dezenas de livros, aguardam nas estantes um dia luminoso que os faça respirar). E portanto não vou aqui fazer considerações sobre os mesmos. Mas é, diria, fantástico o esforço do homem. Não sou, nem de perto nem de longe, da área política de Pacheco. Aliás, tenho pela personagem uma relação de amor-ódio: todo o crédito para o Pacheco analista e literato, bílis verde para o Pacheco político candidato (como nas Europeias). Mas é extraordinário o esforço de trabalho de investigação, análise e tratamento da vida de Cunhal feito por Pacheco. Pacheco defende, e bem, que Cunhal foi uma personalidade chave no século XX português e que tudo o que se consiga iluminar sobre o seu percurso é saudável para a recuperação e manutenção da memória colectiva portuguesa. Ou melhor, para a sua construção. Posto isto, o homem leva a coisa tão a peito que, já com o livro nas prateleiras, decidiu criar um blog dedicado aos livros. E para quê? Para "errata, correcções, adendas, notas suplementares, críticas, referências". Pacheco Pereira não se limita a editar os livros, prossegue depois todo um trabalho de polimento da obra, corrigindo à medida dos dias, reunindo impressões, desenvolvendo um trabalho de feedback que não se esgota no livro objecto impresso mas que se encaixa no seu projecto real: o da investigação sobre Cunhal. Pacheco aproveita notas de leitores, correcções quer de estrutura (como errata) quer factuais (muitas por indicação de leitores), recolhe críticas de qualquer índole. É obra. Curiosidade maior, está já disponível o comunicado do PCP sobre este terceiro volume agora publicado. É história em directo. O blog chama-se "BLOGUE DO LIVRO ÁLVARO CUNHAL - BIOGRAFIA POLÍTICA" e está aqui.
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