Para o mal e para o bem, tive uma infância e adolescência estáveis. Um núcleo familiar constituído de forma sólida (que havia de se desintegrar mais tarde), uma educação em escolas públicas (com todas as vantagens e desvantagens integradas), um acompanhamento regular na vida quotidiana. Na adolescência recrudesceram os factores comuns: isolamento, dificuldade de adaptação a uma realidade que se auto-modificava à velocidade da luz. Bom aluno, sempre me refugiei numa personalidade introvertida, mergulhando numa intelectualidade crescente. Rapidamente surge-me a mim mesmo uma definição existencialista dos objectos constitutivos do real. Infelizmente talhado para uma excessiva racionalização do mundo, de tendência teórica, rapidamente encontrei três mestres de conduta, que acabaram por formatar em larga medida uma forma de ver o mundo.
Aproximei-me de Vergílio Ferreira no dia da sua morte. Em corrida acelerada para uma juventude perdida no meio de palavras, sem álcool para além de provas demasiado amadurecidas, rapidamente assimilei a obra do beirão como guia espiritual. Discuti as dimensões da existência vezes sem conta com base nos seus pressupostos, evoluindo ainda mais rapidamente para Sartre e Camus. Com demasiado peso sobre os ombros, não raras vezes procurei a solidão pública para reler "Para Sempre" ou "Manhã Submersa". Pesquisei (e encontrei) primeiras edições de "Rápida, a sombra" ou "Aparição". Conheço hoje ainda alfarrabistas de Évora, ou da R. do Século, a quem exigi edições de vida breve no mercado. Tornei-me lúgubre, certo da inutilidade de tudo.
Escolho livros, conscientemente, por instinto. "Alexandra Alpha", de capa cor-de-rosa e espessura contra-natura, veio parar-me às mãos sem grande explicação. Viria a conhecer José Cardoso Pires mais tarde, já depois de "De Profundis". Durante meses investiguei a vida do autor, para pouco antes de um contacto o mesmo ser internado em virtude daquele que viria a ser o AVC mais conhecido no Portugal contemporâneo. Guardo uma primeira cópia de "Histórias de Amor", obra extinta cujo título foi a forma de Pires fazer passar "a coisa" pela censura. Procuro, sempre que a rotina me permite, "Os caminheiros e outros contos", estreia ainda próxima dos neo-realistas de quem, a bom tempo, se viria a afastar. Dotado de uma destreza ímpar, cortante, José Cardoso Pires mitigou-me as olheiras e recuperou um sentido de marialvismo genuíno, que se arrastou muitas noites pelas esquinas da Calçada da Bica à procura de água gaseificada para matar a azia da idade. Profundamente ignorado nos seus pressupostos literários, sobretudo pelo país, o homem que comprou um andar na Costa da Caparica, frente ao mar, para estar só acabou por marcar uma adolescência terminal.
Por interpretação de uma fotografia, interessei-me por André Breton em meados da década de 90. O francês tinha muito pó nos bolsos, herança de uma militância desnecessária, mas acabou por emitir respiração a Mário Cesariny de Vasconcelos. Contemporâneo de O'neill, Vespeira, Ventura, Oom, António Maria Lisboa ou Cruzeiro Seixas, Cesariny esteve na origem do Grupo Surrealista de Lisboa e do movimento artístico de maior interesse e valor do século XX português. Qual vampiro habitante do Café Gelo, o poeta, ensaísta, dramaturgo, pintor, fotógrafo definiu de forma pessoal a tentativa de vanguarda cujo maior objectivo era uma intervenção social através da criação artística. Durante semanas requisitei "Pena Capital" ou "Manual de Prestidigitação" na sala principal da Biblioteca Nacional de Lisboa, assimilando as noções de liberdade criativa emanadas das folhas. Viria a conhecer Cesariny em 2001, numa exposição na Câmara Municipal de Lisboa e, como antes, o temor de contacto afastou-me rapidamente. Viria ainda a encontrá-lo nas mais diversas apresentações do seu trabalho, na exposição no Museu da cidade, num encontro no Martinho da Arcada. A última, no teatro nacional D. Maria II, na apresentação de uma peça escrita por si anos antes. Entrou de luzes apagadas, blusão cinzento, cheiro a tabaco, e sentou-se, sozinho, na primeira fila. Frente a si mesmo. O Animatógrafo curva-se triste perante a sua memória.
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