Descobri aos 15, 16 anos que o tempo é uma merda. Consome-se. Por arrasto, o corpo é um depósito. Descobri, então, que o problema era mesmo a acumulação de memórias, e que uma Alzheimer na adolescência seria profundamente bem-vinda. A realidade é que a puta da doença já só vem quando existem décadas de imagens para rever, e o depósito está cheio de merdas que a cabeça vorazmente consome. Aí já existem filhos e netos para esquecer, férias para baralhar nas sinapses mais desatentas, fotografias que regressam à sua origem de imagens objectivamente sem conteúdo para além do atribuído.
Aos domingos, comummente, deprimo-me voluntariamente. A recentralidade do corpo e do tempo depende do enquadramento de um cancro possível, ou de um acidente do qual não se acorda. Os dias passam, lentos, agarrados a um álcool breve, como se em cada domingo renascesse o desempregado possível, desagregado da actividade em volta. Deixei de ler o jornal no café. Não encontro ninguém no supermercado, e o acordar é um processo faseado de adivinhação das horas. A casa tem apenas a luz que foge por entre as janelas altas. O gato dorme aos cantos, conferindo um aspecto ligeiramente homossexual ao espaço, apenas reconhecível a espaços. Há jornais antigos espalhados, agarrados à esperança de serem lidos num acesso de promessa cumprida ou antes da inspecção. Numa pasta menor um livro por publicar. Alguém liga a saber como se está. Não há missa, nem almoços de família. Raramente há deslocações superiores à distância das ruas contíguas, excepto em caso de chuva severa, que obriga a vaguear de carro. Não há consolas, nem jogos, nem visitas inesperadas. Um velho passa rapidamente na rua. Acima duas empregadas lavam loiça com som. A distensão das horas leva a almoços tardios e jantares inexistentes. Há isto.
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