Do melhor de 2006 - o texto

Do melhor de 2006 é o fim. Todos os anos são bons desde que tenham um fim. Ou, de forma mais concreta e anglo-saxónica, closure. Muito em breve, o Animatógrafo terá origem de outro local. Muito em breve o Animatógrafo poderá ter outras visões. Muito em breve, tudo poderá ser diferente. Muito em breve posso ter insónias, programadas há anos, que poderão resultar em algo público. Ou púdico. Ou púbico. Muito em breve tudo poderá ser igual, sendo diferente. Muito em breve toda esta brevidade poderá redundar em languidez. Não tenho cancro. Não sou espírita. Não sou de direita. Não vou emigrar. Não vou permanecer. Não me esqueço. Não me fico. Não resisto. O ano está morto. Viva 2023.

Do melhor de 2006 - She Wants Revenge

Do melhor de 2006 - Sufjan Stevens

Do melhor de 2006 - Family Guy

Do melhor de 2006 - Carnivàle

Do melhor de 2006 - Clap Your Hands Say Yeah

Do melhor de 2006 - The Departed

O Natal está morto


Ou pelo menos moribundo. Venha o Ano Novo, agora morre tudo mais rápido.

Natal (2)

Aos 10 anos, fui levado a um padre. Simpático, o senhor explicou, demoradamente, os caminhos do Senhor e como podia ser bom para mim abraçá-lo, no sentido de me interessar por ele. Como podia compreender o mundo de outra forma, e os seres que o habitam. Como podia contactar com meninos como eu, alegres, joviais, inteligentes, interessados. Olhei por instantes para Cristo na cruz, para os olhos do padre. Agradeci. À porta da igreja notifiquei o meu pai que não, não queria ir para a catequese, nem ter aulas de Religião e Moral na escola. Sereno, como que avisado, acenou com a cabeça e sorriu, levemente. Muito possivelmente o Natal perdeu-se aí, porque começou um caminho de não retorno pelo território da consciência de existência pessoal e de recusa do transcendental em forma organizada de credo. Nada ali me convenceu porque tudo ali era demasiado bom. Eu era “uma criança extraordinária”, o mundo era um “caminho”, a vida um “percurso” que pode ser levado com “bondade”. Raras vezes coloquei a mim próprio dúvidas do ponto de vista religioso, ou seja, rapidamente o germe do ateísmo se reproduziu e acomodou, confortável. Embora de esquerda, laicos e republicanos, os meus pais jamais exerceram qualquer pressão no sentido de uma posição. Sendo católicos não praticantes, mas profundos conhecedores do dogma e das escrituras, não é pouco. Pouco depois, quando a breve luminosidade da infância se perdeu para a eternidade, o Natal deixou de ser apenas o que era: época de ofertas. Raras vezes teve a família como pólo central, nunca a religião como guia. O que resta? Em termos globais, recuso forçar-me a estados de espírito, por imersão numa orgia social imposta por convenções com diversas origens. Sobram talvez as luzes, na madrugada, que criam ambiente a si mesmas, assombrando os indómitos ou as vítimas da insónia. Então gosto da luz. Na paz do senhor. [continua]

Natal (1)

Era uma mesa comprida. Ao fundo, de costas para a noite, sentava-se o avô. Os filhos, há muito desavindos, ladeavam-no, depois os netos. No quarto da tia escondiam-se embrulhos, atrás de uma porta fechada com cheiro. Momentos antes da entrega, enquanto se ouviam conversas de circunstância na cozinha, alguém transferia os objectos para a varanda que emoldurava o avô, num sexto andar com vista para a cidade industrial abandonada. Liam-se pequeníssimos cartões com os nomes, apenas agarrados a um cordel dourado. Na parede contrária, uma televisão castanha escura, arrumada dentro de um movel concebido para bar doméstico, destilava imagens lentas. Anos mais tarde, era já um AVC que tentava balbuciar algumas palavras, enquanto a realidade lhe fugia, estampada no embaraço de um neto distante de visita ao domingo. As minhas memórias de Natal, se quiser ser sincero, apenas brilham na breve reminiscência da infância primária. Depois vieram noites a quatro num segundo andar da periferia, quase que a cumprir calendário, a sensação terrível de algo que passou, de um ano que se fecha sobre dias vividos, de algo que se perde antes que se ganhe. Jamais a felicidade das ofertas e da revelação se sobrepôs à desilusão da sala vazia de cor no dia seguinte. Jamais as semanas de espera se redimiram perante os minutos em que a casa adormecia e tudo parecia uma cerimónia de consagração de existência. Nunca, dizem, me comportei como uma criança convencional. Tive sempre décadas desnecessárias. Talvez por isso sempre soube que a celebração da vida não é muito mais do que o desespero pela visita, correcta e formal, da morte, em potência. O copo cheio, o copo vazio. A água a meio caminho.
Dia de Natal e interessam-me os espaços invadidos pelo frio, junto ao rio, abismados. Dia de Ano Novo e comove-me o frio desesperado à procura de corpo, manhã cedo, ignorando por repulsa as reuniões domésticas. Da mesma forma que há sofás mais quentes em dias de trovoada, quando a cidade se encolhe nas suas formas e se expande na potência de si mesma, há um recrudescer da necessidade de estar, mais do que atravessar o tempo. O copo vê-se como se queira, a água está lá. Na mesma exacta contida proporção do olhar existente. Ou na mesma quantidade de consciência, cheia, vazia. [continua]

Some days require

Eu detesto o Natal

porque quem gosta é toné. Mai nada.

Mário Cesariny de Vasconcelos


Para o mal e para o bem, tive uma infância e adolescência estáveis. Um núcleo familiar constituído de forma sólida (que havia de se desintegrar mais tarde), uma educação em escolas públicas (com todas as vantagens e desvantagens integradas), um acompanhamento regular na vida quotidiana. Na adolescência recrudesceram os factores comuns: isolamento, dificuldade de adaptação a uma realidade que se auto-modificava à velocidade da luz. Bom aluno, sempre me refugiei numa personalidade introvertida, mergulhando numa intelectualidade crescente. Rapidamente surge-me a mim mesmo uma definição existencialista dos objectos constitutivos do real. Infelizmente talhado para uma excessiva racionalização do mundo, de tendência teórica, rapidamente encontrei três mestres de conduta, que acabaram por formatar em larga medida uma forma de ver o mundo.
Aproximei-me de Vergílio Ferreira no dia da sua morte. Em corrida acelerada para uma juventude perdida no meio de palavras, sem álcool para além de provas demasiado amadurecidas, rapidamente assimilei a obra do beirão como guia espiritual. Discuti as dimensões da existência vezes sem conta com base nos seus pressupostos, evoluindo ainda mais rapidamente para Sartre e Camus. Com demasiado peso sobre os ombros, não raras vezes procurei a solidão pública para reler "Para Sempre" ou "Manhã Submersa". Pesquisei (e encontrei) primeiras edições de "Rápida, a sombra" ou "Aparição". Conheço hoje ainda alfarrabistas de Évora, ou da R. do Século, a quem exigi edições de vida breve no mercado. Tornei-me lúgubre, certo da inutilidade de tudo.
Escolho livros, conscientemente, por instinto. "Alexandra Alpha", de capa cor-de-rosa e espessura contra-natura, veio parar-me às mãos sem grande explicação. Viria a conhecer José Cardoso Pires mais tarde, já depois de "De Profundis". Durante meses investiguei a vida do autor, para pouco antes de um contacto o mesmo ser internado em virtude daquele que viria a ser o AVC mais conhecido no Portugal contemporâneo. Guardo uma primeira cópia de "Histórias de Amor", obra extinta cujo título foi a forma de Pires fazer passar "a coisa" pela censura. Procuro, sempre que a rotina me permite, "Os caminheiros e outros contos", estreia ainda próxima dos neo-realistas de quem, a bom tempo, se viria a afastar. Dotado de uma destreza ímpar, cortante, José Cardoso Pires mitigou-me as olheiras e recuperou um sentido de marialvismo genuíno, que se arrastou muitas noites pelas esquinas da Calçada da Bica à procura de água gaseificada para matar a azia da idade. Profundamente ignorado nos seus pressupostos literários, sobretudo pelo país, o homem que comprou um andar na Costa da Caparica, frente ao mar, para estar só acabou por marcar uma adolescência terminal.
Por interpretação de uma fotografia, interessei-me por André Breton em meados da década de 90. O francês tinha muito pó nos bolsos, herança de uma militância desnecessária, mas acabou por emitir respiração a Mário Cesariny de Vasconcelos. Contemporâneo de O'neill, Vespeira, Ventura, Oom, António Maria Lisboa ou Cruzeiro Seixas, Cesariny esteve na origem do Grupo Surrealista de Lisboa e do movimento artístico de maior interesse e valor do século XX português. Qual vampiro habitante do Café Gelo, o poeta, ensaísta, dramaturgo, pintor, fotógrafo definiu de forma pessoal a tentativa de vanguarda cujo maior objectivo era uma intervenção social através da criação artística. Durante semanas requisitei "Pena Capital" ou "Manual de Prestidigitação" na sala principal da Biblioteca Nacional de Lisboa, assimilando as noções de liberdade criativa emanadas das folhas. Viria a conhecer Cesariny em 2001, numa exposição na Câmara Municipal de Lisboa e, como antes, o temor de contacto afastou-me rapidamente. Viria ainda a encontrá-lo nas mais diversas apresentações do seu trabalho, na exposição no Museu da cidade, num encontro no Martinho da Arcada. A última, no teatro nacional D. Maria II, na apresentação de uma peça escrita por si anos antes. Entrou de luzes apagadas, blusão cinzento, cheiro a tabaco, e sentou-se, sozinho, na primeira fila. Frente a si mesmo. O Animatógrafo curva-se triste perante a sua memória.

Eu detesto o Natal

e hei-de repeti-lo sempre que me lembrar. Preparem-se.

De novo

O cansaço. Como se de uma inevitabilidade se tratasse. Já não sei o que é dormir convenientemente, sem amanhã. Que cante. Ou não.