Posso estar redondamente enganado, mas creio que não há qualquer representação cinematográfica objectiva de Salazar. O cinema português já tentou abordar o período da ditadura algumas vezes, com “Até Amanhã, Camaradas” por exemplo, mas nunca ninguém teve coragem de filmar Salazar. Nunca ninguém pensou: vou filmar o homem que influiu de forma mais decisiva no século XX português (e infelizmente neste XXI, por consequência). Nunca ninguém teve coragem de representar Salazar para uns quantos milhares de espectadores. Claro que de Hitler a Salazar vai uma distância como do Sporting ao título, e é óbvio que Hitler será sempre mais representado que qualquer ditadorzeco que a Europa não conhece, mas mesmo que assim não fosse estou em crer que os alemães não compreenderiam qualquer ausência de representatividade como os portugueses parecem aceitar.
Trudl Jurgen tinha 22 anos quando esperou dias dentro de um comboio, atravessou um bosque e entrou num bunker, de paredes cor de cimento, para conhecer um tipo baixinho e velho. Trudl e outras 4 ou 5 raparigas igualmente sonâmbulas politicamente alinham-se lado a lado, com os nervos na lingua e as pequenas malas apertadas à exaustão. O tipo baixinho e velho sai de uma sala e examina as jovens. E, pasme-se, sorri! Meu deus, que sacrilégio, o tipo sorri! Sorri da mesma forma que um avôzinho sorri quando vê os netos, com um ar simpático, calmo, pacífico. Trata as jovens por “filha” e pergunta-lhes de onde vêm. Trudl tem a sorte de ser a primeira a prestar provas de dactilografia. Quando sai da sala, é secretária de Adolf Hitler.
O primeiro pensamento, intoxicado pela imprensa alemã e pelos detractores do filme, foi: “caraças, este gajo está mesmo a tentar limpar a imagem do Hitler! Sacana! É mesmo verdade, tentam apresentar o gajo como um tipo simpático!”. Depois a coisa segue. Mais à frente, Hitler, o “tio Hitler” dos filhos de Goebels, senta uma das crianças ao colo e faz-lhe festas no cabelo, sorrindo, enquanto todos cantam uma canção. Primeiro pensamento: “lá está outra vez! Como é que isto é possível? Sacanas, a tentar limpar o filho da mãe!”. A coisa segue. Mais à frente, Hitler dá um par de berros e uns murros na mesa, numa sala com pouco mais de 5 metros quadrados e muitos mais oficiais nazis de suor no rosto. E o pensamento de limpeza do Fuhrer desvanece-se.
A História, em termos globais, por um conjunto de razões essencialmente baseadas na linha ideológica seguida, classificou Adolf Hitler na categoria de “monstros”. Muito longe daqueles ditadores da América Latina que toda a gente imagina rodeados de mulheres, droga, com um sorriso malicioso na cara. Para a História, e para a esmagadora maioria das pessoas, Hitler era um “monstro”, frio, sem dimensão humana, sem dimensão emocional. Lembro-me dos muitos filmes sobre o III Reich que vi e uma imagem surge sempre: a de um soldado que mata um civil por nada, por não gostar da cara dele, porque simplesmente o pode fazer. Como imagem de marca do regime (o não-valor da vida), esta ideia estende-se a Hitler. Adolf, o “tio Hitler” dos muito loiros filhos de Goebels, seria também daqueles soldados que mata porque pode. Não ama ninguém, não sente nada. Podem cortar-lhe uma perna que não se queixa. Nada mais errado.
Muito antes do filme estrear em Portugal, já eu tinha procurado a expressão de Bruno Ganz para a camera em fotografias. “Der Untergang”, assim se chama no original, dá a Ganz a oportunidade de um Hitler sorridente, desesperado, maníaco, eugénico. E dá a oportunidade de recentrar a discussão sobre o regime nazi e o seu criador. Por várias razões:
1) – Como é óbvio, muito se escreveu sobre “Der Untergang” na Alemanha. E muito se escreveu tentanto atacar aquilo que seria uma tentativa de branqueamento do regime nazi e de Hitler, humanizando-o. O realizador respondeu publicamente dizendo “é isso mesmo”. E acrescentou que a ideia era fazer com que as pessoas compreendessem que Hitler era um homem, e que, assim, o Mal Supremo (as maiúsculas são minhas, e discutíveis) pode chegar a qualquer homem. Ora, nada mais correcto. E aqui chegamos a discussão sobre o conceito de humanidade que, creio, foi mal feita (ou não foi feita) no pós-guerra;
2) – Faça-se um inquérito de rua, daqueles que depois aparecem no SIC 10 Horas, e rapidamente se vai chegar à conclusão que o conceito de humanidade é comummente associado com valores da moral cristã: respeito pelo próximo, compaixão, perdão, sacrifício, etc. Ou seja, para o Zé Pinto “humanidade” transcende “existência”. Ser humano não é existir, mas antes ter compaixão, ter respeito pelos outros, e por aí fora. Como herança da moral cristã, e da semi-teocracia que reinou durante séculos no Mundo Velho (eram monarquias, mas não convém esquecer o papel da Igreja), o “humano” foi constantemente percebido como um “existente” valorizado, seja positiva ou negativamente. E daqui decorre a monstruosidade de Hitler: não tinha compaixão, respeito pelos outros (e, logo, pela sua existência), etc, etc.
3) – Mais além, podemos ainda partir da ideia que o homem assume determinados valores positivos para conceber “humanidade” porque tem uma necessidade de se afirmar diferente entre os seres. E como parece que a capacidade de linguagem organizada não chega para fazer a diferença, vai de se afirmar de outras formas: acha-se “humano” (ou então anda por aí a picar touros em cima de um cavalo e foge).
4) - Ora, na acepção judaico-cristã, que se tornou dominante no mundo ocidentalizado, Hitler nunca podia ser humano, seria sempre um monstro. Por todas estas razões, e porque a Humanidade (aqui entendida como representação simbólica da totalidade de seres humanos) não podia aceitar que um dos seus tivesse feito o que fez. Aliás, não pode ainda. É demasiado traumático conceber que se tratava, de facto, de um homem. Porque isso mina as ilusões quanto ao nível de “humanidade” básica em cada um. E portanto é muito mais fácil definir como “monstro”, mais saudável psicologicamente. Um pouco, aliás, naquela noção do “quem não está connosco está contra nós”. Voltando a “Der Untergang”, esta noção é extensível aos alemães. Se a um homem é difícil compreender que um dos seus tivesse feito o que Hitler fez, a um alemão essa dificuldade de compreensão cresce exponencialmente. E aqui mais uma vez a distância entre um ditador comum e Hitler: não me é difícil compreender o que Salazar fez, porque o nível de Mal é comum. Quanto a Hitler…
”Der Untergang” mostra um Hitler real, e não mitológico. O filme está longe de ser brilhante, muito longe, mas Ganz assume a tarefa de dizer que a “humanidade” é apenas existência com determinadas premissas biológicas, e não um conjunto de valores de ordem moral que baseiam as sociedades actualmente não-teocráticas. É duro, mas é verdade.
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