HELP, I need somebody

"O entusiasmo sexual de um casal de britânicos num barco pneumático no sul de Inglaterra desencadeou uma operação de socorro da polícia marítima, que confundiu os seus gritos com pedidos de ajuda. As autoridades só perceberam o engano quando abordaram a pequena embarcação e interromperam o que ninguém gosta de interromper. O homem e a mulher foram convidados a vestir-se e a regressar ao porto de Torbay, onde a polícia lhes deu "alguns conselhos". Segundo o porta-voz da policia local, tudo decorreu com grande calma e boa disposição. "Todos nos rimos e eles regressaram a casa"".

Público, 28/07/2005

Parece que era assim...



Ora reza a lenda que em 1930 o Marquês de Pombal era mesmo assim, pachorrento, com o lago da Estufa Fria ao fundo, um carro a passar de hora a hora nos dias mais movimentados... Coisas do antigamente...

Soares, Cavaco

A primeira vez que fui a um comício (que tenha consciência e memória de tal), Soares discursava de forma enérgica. Uma multidão alargava-se em sorrisos e bandeiras, e, tirando um Benfica-Marselha ou um Benfica-Steaua de Bucareste no Estádio da Luz, raras vezes a minha infância soube o que era a sensação de pertença a um grupo. Na volta, a porta de vidro da varanda encheu-se de “Soares é fixe!”, alguns com a cara do Humberto Coelho de bigode à 70’s. De Cavaco, tenho poucas impressões no neurónio mneumónico. Lembro-me dos problemas com a PGA e das manifestações contra Ferreira Leite à porta da Assembleia da República. Lembro-me dos “secos contra molhados”, das inaugurações, das críticas de autismo. Da história da rodagem do carro contada até à exaustão.
Ora, há um ano atrás, Cavaco era (hipotético) candidato, Guterres (hipotético) candidato era. Quem falasse em Soares era demente. Quem pensasse em Soares era demente. Confesso que mesmo quem pensasse em Alegre não tava a ver bem a coisa. Hoje Cavaco é (hipotético) candidato, Soares também, Alegre anda triste. E há aqui várias coisas que devem merecer reflexão (esta até parecia o Luís Delgado com sono):

1) – Está lançado o debate sobre os “dinossauros”. Que não há ninguém novo, que Soares está caquético, que Cavaco está à espera, que a nossa classe política não tem renovação. Olhando para trás, e pensando bem, vê-se que, à esquerda, Guterres, Sampaio, Constâncio eram experientes e de novos tinham pouco, foram resistentes ao fascismo, conspiradores de sotão, militantes de primeira hora. Só chegaram ao governo ou presidência da república em meia idade, e isso não levantou as vozes que agora falam em falta de renovação. À direita, o sentimento de orfandade adquirido com a morte de Sá Carneiro só terminou com o pulso forte de Cavaco. Depois dele, não há lideranças “novas”, há delfins: Durão, Marques Mendes (de Santana não vale a pena falar…). Não são novos, mas como estiveram com Cavaco e sobreviveram para contar a história, são dados como novos. Além disso, a aura de passado (o maoísmo de Durão, por exemplo) faz com que ganhem legitimidade, dentro da idade que têm. E portanto, se formos sinceros, não há mesmo renovação. Mas também quase nunca houve. E não acredito muito naquela noção que há aí gente nova que prefere estar no sector privado a ganhar balúrdios do que se “entregar à causa pública” (esta imagem sugere-me sempre a ideia de uma virgem que se entrega ao senhor das terras para salvar a aldeia). Se os há, são economistas com visões neo-liberais dessa mesma causa pública, que de políticos não têm nada. Sim, podem ter uma noção diferente e mais progressista das formas de organização social, e podem dar bons ministros da Economia ou das Obras Públicas, mas não têm nada de político. O único político de sangue novo, com uma visão diferente das coisas, que me lembro assim de repente é António Vitorino. Mas por isso mesmo decide não meter o pé em ramo verde. Porque sabe que, para mudar, é preciso mais do que um “animal novo”. E como eles não abundam por aí… E porquê? Porque os políticos “à séria” são forjados em ambientes políticos ideologicamente substantivos. E, enquanto democracia estabilizada, a nossa sociedade vive uma paz ideológica limitadora, em que as questões de fundo sobre a organização política e social e as transformações necessárias à adaptação da realidade não são, simplesmente, discutidas. Daqui se percebe o “regresso dos dinossauros”.

2) – Outra questão, diferente mas interligada, prende-se com a definição do papel do Presidente da República. Não sei o que vai na cabecinha dos tugas, mas na minha o orgão de soberania unipessoal em causa serve para representatividade institucional e uma espécie de reserva moral da nação. Assim se percebe, aliás, que a imagem do Presidente da República tenha sido sempre mais positiva do que qualquer outro órgão de soberania. Assim foram os mandatos de Jorge Sampaio. Pose de estado, bom senso, recados aqui e ali, atenção, e intervenção quando a “moral da nação” assim o exigia. Nos inquéritos de rua a que tenho assistido nas televisões, a primeira resposta à pergunta “quem gostaria para Presidente?” é, em mais de noventa por cento dos casos, “o que eu gostava não pode ser, que é o actual”. Ou seja, e assim é confirmado pelas sondagens, se Sampaio se candidatasse novamente ganharia contra quem quer que fosse. Independentemente das flutuações que resultam de já estar no cargo (enquanto os outros são “uma incógnita”), parece-me correcto afirmar que os portugueses querem um Presidente como Sampaio: calmo mas atento, motivador mas não invasivo, com capacidade de intervenção se necessário. No resto, só é preciso que fique bem na foto e que não faça barulho a comer a sopa frente ao rei de Espanha. Que não nos envergonhe. E, no caso de Sampaio, acerta em cheio naquilo que eu considero o “coração político português”: de centro-esquerda, mas com herança, ao mesmo tempo social e economicamente motivado para o futuro. Foi este perfil, ou a sua imagem projectada, que deu maiorias a Cavaco, governos a Guterres.

3) – A SIC Notícias organizou ontem um debate para discutir a hipótese Soares Vs Cavaco. E por diversas vezes foi referida a especificidade da situação actual, com frases como “o próximo presidente vai ter um mandato difícil, com muita intervenção” ou “é preciso ver como será a interacção entre o governo e o presidente, e isso determina as escolhas que se fazem na eleição” (citações livres). Ora, este tipo de questões só surgem porque Cavaco e Soares são políticos interventivos (um passivo, o outro activo). Porque se os candidatos fossem Alegre e Mota Amaral, por exemplo, ninguém colocava a questão. Assumia-se o cargo como portador de um “sonambulismo”, no máximo, atento. E voltamos à definição do cargo. Como deve ser o Presidente da República português? Deve ser “tipo Sampaio” ou “tipo Soares primeiro mandato”? Deve ser mais interventivo ou mais atento? Deve ser mais “contra-poder” ou mais “poder adormecido”? Eu confesso que gosto muito do “tipo Sampaio”. Porque a tarefa de contra-poder cabe a uma oposição partidária (já que a sociedade civil não existe enquanto força política mobilizadora) responsável e não ao Presidente. E se essa oposição não existe efectivamente, a culpa não é dele. Ora, nem Cavaco nem Soares são “tipo Sampaio”. Têm personalidades e passados demasiado fortes para isso. Terão a tentação de “meter o dedo” quando não devem. E já se sabe que a avozinha não gosta que metam o dedo no arroz doce enquanto está a arrefecer…

PS: Eu acredito que Cavaco não avançará, o que vai ser de morrer a rir...

Oiçam











Mathew Herbert, "Plat du Jour"
Isabelle Antena, "Easy Does It"
Archer Prewitt, "Wilderness"
The Arcade Fire, "Funeral"
Tosca, "j.a.c"

Oiçam



Mia Doi Todd, "Manzanita"

Day After: as imagens











Day After: notas soltas

@) – Primeiro que tudo, a sensação de alheamento. Claro que pode ser mesmo apenas só sensação, mas das quatro cidades que visitei senti aquilo que em Portugal se designa por “paz social”. Também pode significar “qualidade de vida”. Em Gent, tal como em Bruges e Antuérpia, vi muito poucos idosos, e muitos jovens e crianças. Uma boa parte desloca-se de bicicleta, com um ar de tranquilidade de fazer inveja. Dá ideia que têm uma vida simpática, sem depressões nacionais nem rugas de défice. É óbvio que devem existir problemas, mas no dia-a-dia que observei parace existir uma estabilidade de fazer inveja. Tive a mesma sensação, aliás, quando estive em Hanover, na Alemanha. Será uma questão de cidades de pequena/média dimensão na Europa Central ou sou eu que imagino coisas?

@) – Segundo, a sensação de afastamento. Não deve ser confundida com a anterior, se bem que esteja ligada. Estive uma semana sem televisão, sem jornais, sem rádio. O único média foi a internet, e apenas 5, 7 minutos por dia, no máximo (como o lusco-fusco). E, imagine-se, não senti qualquer falta. Acho que é capaz de ser uma boa definição de cansaço: quando não se sente falta de ligação mediática ao mundo…

@) – Terceiro: a sensação de “cabelos brancos” (é nova esta, inventei agora). Ou seja, a ideia de que, em Portugal, ganhamos cabelos brancos com tudo, a começar na depressão nacional e a acabar no chico-espertismo. Claro que falo por mim. E esta é uma sensação mesmo antes de day-after. Ainda não tinha apanhado avião já estava a ganhar cabelos brancos: dois emigrantes, do tipo “trabalhador das obras”, entraram bêbados no avião e, claro, ficaram exactamente na fila atrás. Os muito simpáticos funcionários da TAP não foram de modas e ajudaram mais um bocadinho, fornecendo latinhas de Sagres aos dois convivas até Lisboa. Na chegada à Portela, o taxista espera que se diga algo para perceber se o passageiro é estrangeiro ou não. Dizia a minha anfitriã, na véspera do regresso, que gosta sempre de voltar. Errr…..

@) – Soube de Londres por boca alheia, ao fim do dia. Durante a jornada nenhum sinal nas ruas de Bruges, ou em qualquer conversa. Mesmo depois de ter lido, e já ter visto bastante sobre a questão, ainda hoje tenho dificuldade em compreender o que se passou. A sensação de afastamento provoca destas coisas, uma descolagem do real. Não ouvi “notícia de última hora”, não ouvi comentários, não li o jornal do dia a seguir. Em Lisboa, já só apanhei as reportagens da “ressaca”, entre a identificação dos suicidas e as demonstrações de pesar. Parece que algo escapou. E confesso que o meu primeiro pensamento foi para a Cimeira das Lages, com o cherne a enfeitar a fotografia de família. E o segundo foi para o cherne, e a sua insignificância. E o terceiro voltou à cimeira das Lages… E hoje tudo me parece estranho. Quando leio que morreram quase 60 pessoas, lembro-me do 11 de Setembro. E Londres parece uma brincadeira de adolescentes palestinianos. E logo a seguir a minha cabecinha auto-censura-se por relativizar a morte.

@) – Pelo meio disto, o Luxemburgo ratificou o tratado constitucional (que teve na minha lista para leituras de férias, mas ficou-se por aí). De acordo com diversos líderes (!) europeus, é a prova que o tratado não está assim tão morto quanto isso, ou antes, que o processo europeu de construção política tem uma luz ao fundo do túnel. Se pensarmos bem nisso, e dada a comunidade tuga no pequeníssimo país, somos nós a salvar a Europa! Não consigo comentar sem me rir à gargalhada…

@ - Eu gostava mesmo era de ter vida de estrangeiro em Lisboa…

Dia 6: Gent

Ruas longas e o sol aquece. Um homem passa de calções, com um cadeeiro na mão, art-deco. Numa pequena praça, encostada a uma igreja esquecida por uma manhã, belgas anónimos estendem a manta e encostam o que ocupava o canto da garagem. Telefones, bonecas desmembradas de pestanas compridas, blusas roxas penduradas em cabides. Máquinas fotográficas de fole. Terrinas de porcelana. Ao canto, uma loja pendura tapetes orientais nas paredes, enquanto um copo de vinho regional da Estremadura aguarda a boca da proprietária em cima do balcão. Ao virar da esquina, a pequena praça multiplica-se pela sua raíz quadrada. Uma banda resiste tocando para fãs de cadeira de campismo à frente do palco. Sandálias de presilha gasta namoram um sofá esfolado. Postais sem luz escondidos junto a uma cafeteira aposentada. Uma rapariga de tronco nu e cabelo loiro comprido insinua-se à máquina, que pesava de lente baixa ao pescoço. Outras duas, de idade proporcional em escada de altura, escolhem bonecos antigos espreitando entre prateleiras. Mais longe, um pai sorri nervosamente com a filha em pranto explícito, dentro de um carrocel. Na rua semi-deserta, poucos metros depois, uma criança sorri veloz enquanto o pai pedala e equilibra a dupla. Lojas fechadas, movimento de rua. Esplanadas em crescimento rápido. Barcos percorrem os canais para uma visão aquática do mercado do peixe, ilustrada em holandês e demais línguas. Cartazes nas janelas anunciam casas vagas para estudantes futuros.

Dia 5: Bruxelas

As esplanadas exibem norte-americanas de óculos com correntes. A subida alarga o espaço. Pequenas tendas e candeeiros do século XVII convivem com máscaras tutsis, enquanto as porcelanas defendem o seu espaço de forma corporativa. Uma cómoda de friso dourado encolhe-se a um canto. Tudo respira antiguidade, afastando a ideia de velhice. Mais abaixo, um turco sugere mexilhões, quanto dois sírios apostam na carne. O tacho parece um viveiro, com cheiro apenas perturbado pelo vapor. Mais acima, jovens vestidas de preto defendem o minimalismo de Pierre Marcolini. O símbolo da semente limita-se à presença em embalagens negras com indicação de origem. Pralinés defendem o estilo atrás do vidro. Em frente, morangos mergulham em chocolate branco, loja vazia.

Dia 4: Bruxelas

Estação de Bruxelas Central, qual metro de S. Sebastião antes das obras. Inclinação das ruas, ausência de canais. Edifícios largos, ocupando quarteirões. Um parque, à semelhança de Paris ou Madrid (não de Lisboa) perde-se de vista à porta do palácio, fechado. Alguns homens simulam guarda às portas da fachada, encerrados na sua rotina de gestos lentos e firmes, dir-se-ia hirtos. À Place Royal, uma pequena loja de design faz saldos, com um funcionário ocasional a guardar as peças de artistas aprendizes. Ao lado, um restaurante estende-se da vidraça inicial tapada ao longo de um corredor, arte deco, cheiro a ervas e alcatifa, Beatles em lume brando ao canto da parede. Fotografias do chef e da esposa, ele de barrete a polvilhar o salmão de salsa em imagem real, ela a saltitar de mesa em mesa como se os sessenta fossem à hora de almoço. Chuva. Violinos espreguiçam-se do edifício na curva, enquando três bonecos simulam jam session de costas para a rua. Escadas e a cidade desce para além dos degraus. Uma galeria de toupeiras rés-do-chão de um edifício com vista para relva esconde alfarrabistas. Cachimbo ao canto dos lábios, óculos redondos de Tintim. Chuva a ameaçar. Cheiro a gauffres em cada esquina. Ruas apertadas, edifícios pontiagudos. Chineses a polvilhar o ar. Nas arcadas esfrega-se a perna de uma criatura dourada, deitada sobre si mesma, a oferecer as formas ao tacto alheio. Ao canto, morangos a mergulhar em chocolate branco para turista ver, vidro limpo, frutos perfeitos. Ao fundo, meio metro de bronze urina estaticamente sobre os olhos ampliados de chineses, à esquina. Concubinato de flash e sorriso pepsodent. Cheiro a gauffres em cada narina. O chocolate enche a boca como um vinho, subtil no aroma, a invadir o palato sem rancores. Chuva a esquecer a ameaça.

Dia 3: Antuérpia

Chuva. No comboio verde de um lado, verde do outro. Vacas. Planura total. Sint-Niklaas, alguns edifícios, pouco movimento. Antuérpia pouco depois. A estação uma Santa Apolónia elevada ao cubo. Finalmente uma estação (não um apeadeiro). No centro, praça com esplanadas. Homens de ar holandês amontoam o que será um palco. Torre disparada ao céu na rua por trás. Outra mais ao fundo. Chuva. Seis crianças circulam de bicicleta sem chapéu, passando por baixo dos repuchos de uma fonte. Como se não chovesse. Rua em curva larga, restaurante italiano, tailandês, italiano, francês, italiano. A meio um arco, entrada para um pequeno túnel de acesso a um edifício. Outro túnel à direita, uma porta de jardim, duas cadeiras, uma mesa de ferro, heras. Chuva nos saguões. Duas crianças sentam-se com o pai, pedem um refresco. Cinco e dez anos, talvez. A mais nova apoia a cabeça no braço dobrado sobre a mesa e chucha no dedo polegar, discretamente, de olhos fixos. Sol. Basílica gótica inteiramente pintada de branco, com manchas negras atrás das figuras esculpidas que dão a face à nave central. Vitrais brancos, sem cores. Luz. Junto ao rio, debaixo de chapas de metal, barcos antigos amontoam-se. A vista de rio em curva larga, com Atena amnésica a olhar a entrada em pose firme. Ao fundo torre. Uma chinesa mergulha sozinha, quase virgem, num tacho de mexilhões, cujas cascas vazias assistem ao festim numa travessa centímetros ao lado, com vista frontal desafogada. Um passo ao lado e a vertigem da bicicleta como arma de arremesso. Faces limpas, corpos esguios, olhos claros e pouco marejados. Sorrisos frios, quando sorrisos. Sol.

Dia 2: Bruges

Três norte-americanas trocam comentários no autocarro, entre "oh yeah" e "ahhhh" estemporâneos. "Is this the center?". "I don't think so", calou-se. Curva à direita, curva à esquerda, chão empedrado. Curva à direita, e o mercado abre-se como se para trás fosse terra batida e houvesse fome de legumes. O cheiro a fritos é ambundante, e muitos, espanhóis, norte-americanos, mexicanos, franceses, holandeses, formam fila em frente às roulotes. Cada cliente atendido sai com recipiente de plástico cheio de batatas fritas, mergulhadas inversamente em maionese. Os edifícios crescem. Aponta-se a máquina, enquadra-se o plano, e o relógio está subitamente ainda mais alto na torre. 366 degraus em escada de caracol, os mesmos para subidas e descidas. Bruges afasta-se em todas as direcções, sem planos elevados. No claustro, em baixo, duas crianças de 7 anos espreitam para dentro de um carrinho de bebé. Cabelo loiro das que espreitam. 4 japoneses exibem sorriso tótó como se não houvesse Japão. Nuvens. Um padre, encostado à parede mais discreta, vai ruminando "respeito" por um microfone. Duas cadeiras atrás, a máquina apontada estremece os canais auditivos do religioso. Levanta-se, vai ruminando respeito pelos olhos. Duas quarentonas de calções fazem festas ao sangue de cristo dentro de um frasquinho. Ponte. Mercado de peixe de arcadas ao ar livre com cheiro a guelras silenciadas há pouco. Quatro degraus e o canal. Apontar, disparar. Uma torre, outra, um jardim com arbusto para o canal. Disparar. Nas pontes crianças de olhos claros acenam. Disparar. À direita o antigo hospital, à esquerda o antigo convento, à direita a casa do poeta, à esquerda a janela mais pequena. Disparar. Quatro camisolas vermelhas apontam Ravel, violino, violencelo. Sol. Chuva, disparada, os instrumentos calam-se. Uma igreja, outra, um jardim contornado. Chuva. O cheiro a fritos dissipado, e já não legumes, espaço. O comboio. Sol.

Dia 1: Gent

Aeroporto de Bruxelas, ala nova, em nada relembra a Portela. Espaços amplos, luminosos, enormes. Desce-se dois pisos, anda-se mais 200 metros, sobe-se dois pisos, vira-se à direita, à esquerda, à direita, à esquerda, tapete do fundo, desce-se um andar, comprar bilhete de comboio, desce-se outro. Estação lúgubre, comboios com passado não violento. Árvores, igrejas de cúpulas em bico, Bruxelas norte, Bruxelas Central, apeadeiros cinzentos com o cimento a cair em virtude do peso da meteorologia, Bruxelas Zuid, árvores, relvados, árvores, estrada secundária, árvores. Cabelo claro, olhos azuis, ar pateta ou frio. Casacos de malha grossa. Gent Sint-Pieters. Plataforma idosa não mediterrânica. Centenas de bicicletas. Tram. Entrar em qualquer porta, sair na de trás. Pedras em vez de alcatrão, com passadeiras não pintadas. Olhos claros, cabelo loiro, ar pateta. Símbolos de cerveja, Stella Artois. Igreja de bico apontada a céu. Nuvens. Sol. Nuvens. Chuva.