A primeira vez que fui a um comício (que tenha consciência e memória de tal), Soares discursava de forma enérgica. Uma multidão alargava-se em sorrisos e bandeiras, e, tirando um Benfica-Marselha ou um Benfica-Steaua de Bucareste no Estádio da Luz, raras vezes a minha infância soube o que era a sensação de pertença a um grupo. Na volta, a porta de vidro da varanda encheu-se de “Soares é fixe!”, alguns com a cara do Humberto Coelho de bigode à 70’s. De Cavaco, tenho poucas impressões no neurónio mneumónico. Lembro-me dos problemas com a PGA e das manifestações contra Ferreira Leite à porta da Assembleia da República. Lembro-me dos “secos contra molhados”, das inaugurações, das críticas de autismo. Da história da rodagem do carro contada até à exaustão.
Ora, há um ano atrás, Cavaco era (hipotético) candidato, Guterres (hipotético) candidato era. Quem falasse em Soares era demente. Quem pensasse em Soares era demente. Confesso que mesmo quem pensasse em Alegre não tava a ver bem a coisa. Hoje Cavaco é (hipotético) candidato, Soares também, Alegre anda triste. E há aqui várias coisas que devem merecer reflexão (esta até parecia o Luís Delgado com sono):
1) – Está lançado o debate sobre os “dinossauros”. Que não há ninguém novo, que Soares está caquético, que Cavaco está à espera, que a nossa classe política não tem renovação. Olhando para trás, e pensando bem, vê-se que, à esquerda, Guterres, Sampaio, Constâncio eram experientes e de novos tinham pouco, foram resistentes ao fascismo, conspiradores de sotão, militantes de primeira hora. Só chegaram ao governo ou presidência da república em meia idade, e isso não levantou as vozes que agora falam em falta de renovação. À direita, o sentimento de orfandade adquirido com a morte de Sá Carneiro só terminou com o pulso forte de Cavaco. Depois dele, não há lideranças “novas”, há delfins: Durão, Marques Mendes (de Santana não vale a pena falar…). Não são novos, mas como estiveram com Cavaco e sobreviveram para contar a história, são dados como novos. Além disso, a aura de passado (o maoísmo de Durão, por exemplo) faz com que ganhem legitimidade, dentro da idade que têm. E portanto, se formos sinceros, não há mesmo renovação. Mas também quase nunca houve. E não acredito muito naquela noção que há aí gente nova que prefere estar no sector privado a ganhar balúrdios do que se “entregar à causa pública” (esta imagem sugere-me sempre a ideia de uma virgem que se entrega ao senhor das terras para salvar a aldeia). Se os há, são economistas com visões neo-liberais dessa mesma causa pública, que de políticos não têm nada. Sim, podem ter uma noção diferente e mais progressista das formas de organização social, e podem dar bons ministros da Economia ou das Obras Públicas, mas não têm nada de político. O único político de sangue novo, com uma visão diferente das coisas, que me lembro assim de repente é António Vitorino. Mas por isso mesmo decide não meter o pé em ramo verde. Porque sabe que, para mudar, é preciso mais do que um “animal novo”. E como eles não abundam por aí… E porquê? Porque os políticos “à séria” são forjados em ambientes políticos ideologicamente substantivos. E, enquanto democracia estabilizada, a nossa sociedade vive uma paz ideológica limitadora, em que as questões de fundo sobre a organização política e social e as transformações necessárias à adaptação da realidade não são, simplesmente, discutidas. Daqui se percebe o “regresso dos dinossauros”.
2) – Outra questão, diferente mas interligada, prende-se com a definição do papel do Presidente da República. Não sei o que vai na cabecinha dos tugas, mas na minha o orgão de soberania unipessoal em causa serve para representatividade institucional e uma espécie de reserva moral da nação. Assim se percebe, aliás, que a imagem do Presidente da República tenha sido sempre mais positiva do que qualquer outro órgão de soberania. Assim foram os mandatos de Jorge Sampaio. Pose de estado, bom senso, recados aqui e ali, atenção, e intervenção quando a “moral da nação” assim o exigia. Nos inquéritos de rua a que tenho assistido nas televisões, a primeira resposta à pergunta “quem gostaria para Presidente?” é, em mais de noventa por cento dos casos, “o que eu gostava não pode ser, que é o actual”. Ou seja, e assim é confirmado pelas sondagens, se Sampaio se candidatasse novamente ganharia contra quem quer que fosse. Independentemente das flutuações que resultam de já estar no cargo (enquanto os outros são “uma incógnita”), parece-me correcto afirmar que os portugueses querem um Presidente como Sampaio: calmo mas atento, motivador mas não invasivo, com capacidade de intervenção se necessário. No resto, só é preciso que fique bem na foto e que não faça barulho a comer a sopa frente ao rei de Espanha. Que não nos envergonhe. E, no caso de Sampaio, acerta em cheio naquilo que eu considero o “coração político português”: de centro-esquerda, mas com herança, ao mesmo tempo social e economicamente motivado para o futuro. Foi este perfil, ou a sua imagem projectada, que deu maiorias a Cavaco, governos a Guterres.
3) – A SIC Notícias organizou ontem um debate para discutir a hipótese Soares Vs Cavaco. E por diversas vezes foi referida a especificidade da situação actual, com frases como “o próximo presidente vai ter um mandato difícil, com muita intervenção” ou “é preciso ver como será a interacção entre o governo e o presidente, e isso determina as escolhas que se fazem na eleição” (citações livres). Ora, este tipo de questões só surgem porque Cavaco e Soares são políticos interventivos (um passivo, o outro activo). Porque se os candidatos fossem Alegre e Mota Amaral, por exemplo, ninguém colocava a questão. Assumia-se o cargo como portador de um “sonambulismo”, no máximo, atento. E voltamos à definição do cargo. Como deve ser o Presidente da República português? Deve ser “tipo Sampaio” ou “tipo Soares primeiro mandato”? Deve ser mais interventivo ou mais atento? Deve ser mais “contra-poder” ou mais “poder adormecido”? Eu confesso que gosto muito do “tipo Sampaio”. Porque a tarefa de contra-poder cabe a uma oposição partidária (já que a sociedade civil não existe enquanto força política mobilizadora) responsável e não ao Presidente. E se essa oposição não existe efectivamente, a culpa não é dele. Ora, nem Cavaco nem Soares são “tipo Sampaio”. Têm personalidades e passados demasiado fortes para isso. Terão a tentação de “meter o dedo” quando não devem. E já se sabe que a avozinha não gosta que metam o dedo no arroz doce enquanto está a arrefecer…
PS: Eu acredito que Cavaco não avançará, o que vai ser de morrer a rir...