Nippon Koma: balanço

A semana passada estive calado que nem Cavaco porque passei seis dias a caminhar para a Culturgest, estilo devoto. O Nippon Koma, festival de cinema japonês que fez a sua terceira aparição na caixa forte lisboeta, teve 12 sessões, e o Animatógrafo esteve presente em 8. De entre muita coisa que meia dúzia de gatos pingados viram fica aqui um mui breve balanço.

Nota positiva para:

Agente Paranóia: Animação criada como série de televisão com quatro volumes (cada um com 4 episódios, aproximadamente), dos quais foram projectados os dois primeiros volumes (os sete primeiros episódios), é um fantástico trabalho em termos de argumento e exploração de técnicas tradicionais de cinema adaptadas a televisão. Partindo da agressão de uma jovem na rua por um puto desconhecido, que é baptizado como Lil'Slugger, toda a série se aproxima do thriller psicológico, introduzindo sempre que possível questões e temas eminentemente nipónicos, como os problemas de identidade por exemplo. O resultado não se recomenda a criancinhas e é óptima animação a todos os níveis. Ou seja, se David Lynch fizesse anime, possivelmente seria algo muito parecido com Agente Paranóia. Toda a série passou na televisão japonesa (por cá seria impossível, digo eu) e está editada em DVD. Encontram mais informações aqui.

Acidman: Um senhor de nome Nishigori Isao decidiu realizar 16 minutos e 14 segundos visualmente delirantes, que deixam qualquer fã de animação extasiado. Acidman não tem história específica e limita-se a construir ambientes visuais a partir de elementos que vão surgindo, rasgando quaisquer noções de figuratividade que podiam subsistir ainda. Utilizando um conjunto de técnicas 2D e 3D, o resultado é cromaticamente vibrante e sonoramente perfeito, sem pretensões a mais do que mostra na realidade. Na génese do projecto estão duas faixas do próprio Acidman (músico japonês) que não só servem de banda sonora como promovem o desenvolvimento visual do princípio ao fim.

YKK AP Evolution: Curta metragem de minuto e meio com função de anúncio para uma empresa de arquitectura, é a prova de que é possível trabalhar em publicidade para televisão sem recorrer sempre a esterótipos ou inventar grandes reviravoltas para abismar o espectador. Durante 90 segundos um conjunto de formas, como um cubo que se expande e cresce, são colocados em cima de imagens quotidianas, como um comboio em andamento ou uma praia deserta. O resultado é visualmente soberbo e de uma simplicidade desarmante. Se um anúncio vende um produto, eu compro só com aquilo. Neste caso, está disponível aqui, com RealPlayer.

Peep "TV" Show: Talvez o mais emblemático filme que passou. É um documentário em regime livre, sem grandes preocupações de estrutura, que se debruça sobre os problemas do Japão contemporâneo: identidade, relacionamento social, auto-estima, expectativas, orgulho. Peep "TV" Show mostra o Japão das lolitas góticas, dos jovens fechados no quarto durante anos, dos profissionais psicologicamente afectados que falam sozinhos a caminho do emprego, dos sem ocupação que se dedicam a espiar os outros para ver "a realidade". O filme segue Hasegawa e Moe entre 15 de Agosto e 11 de Setembro de 2002. Hasegawa é um voyeur que achou as imagens do 11 de Setembro estranhamente belas e que filma vidas alheias para manter contacto com o real. Moe é uma lolita gótica típica, sem identidade definida e à procura de uma noção de realidade que a prenda à vida. É daqueles filmes duros que nos fazem pensar que, apesar de tudo, a Europa ainda goza de uma sanidade mental invejável... Mais informações aqui.

Nota negativa para:

Naomi Kawase: a realizadora japonesa até foi premiada em 1997 em Cannes. E confesso que não vi o filme que lhe valeu a distinção. Mas os dois que passaram em Lisboa, Kya Ka Ra Ba A e Shadow, são piores que o Jackie Chan vestido de Carmen Miranda em dia de Halloween (que até podia ter a sua piada). O primeiro tem quinze minutos iniciais até simpáticos, em que a autora fala com a avó que a criou depois dos pais a terem abandonado e chega a falar com a mãe sobre o assunto. Mas aí uma doença súbita ataca: a idiotice. E os efeitos são devastadores, acabando com tudo o que de cinema minimamente aceitável poderia surgir. O resto são minutos autobiográficos de uma adolescente de 14 anos (que não é) sem nexo, totalmente gratuitos, com muita vontade de agressão por parte do espectador. Dêem uma máquina digital a qualquer adolescente português e vale mais o dinheiro. O segundo filme centra-se numa situação insólita: um homem filma uma mulher e diz-lhe que é o seu verdadeiro pai. O estado de choque que daí decorre e o facto do homem continuar a filmar, faz com que toda a relação obtusa daqueles dois se passe através da camera. Sem nunca explicitar se a situação é real, a realizadora dá o flanco e acaba também por dar a ideia que encena algo chocante só porque lhe apetece. Uma coisa é um realizador utilizar o seu cinema para abordar temas pessoais como forma de lidar com eles, outra é estupidificar e ter a ideia que as suas misérias interessam a quem se senta na sala.

Yusuke Sasaki: Eu já apanhei muita estucha na vida. A sério, a começar na última consulta do oftalmologista em que estive 4 horas à espera e a acabar no Yi-YI, em que estive 4 horas à espera que acontecesse alguma coisa, já apanhei estopadas de primeira água. E Letter, de Yusuke Sasaki, entrou a semana passada para essa fantástica galeria. Ora a ideia do senhor devia ser fazer um documentário sobre a obcessão das mensagens SMS e, simultaneamente, sobre as dificuldades de relacionamento que atinge o Japão actual. Premissas válidas, portanto. E o que é que o senhor Sasaki decide fazer para falar sobre isto? Ora, qualquer um se lembraria do mesmo: filmar um adolescente num quarto sem luz a mandar e receber sms durante hora e meia, em que só se vê a mão a teclar e a luzinha do telemóvel, intercalados com imagens do visor do mesmo dispositivo. Para ajudar à festa, a criatura alvo tinha a mania de chatear os amigos com mensagens como "O que contas?", "pois", "E mais?", "Não dizes mais nada?", "Yeah! Yahoo!" e outras que tais. Aos 10 minutos, eu já sabia que aquilo ia durar até ao fim. Aos 20 bocejei longamente e olhei para o relógio. Aos 36 martelei a minha consciência por ter a mania de não sair a meio dos filmes. Aos 42 bocejei o relógio e verifiquei se a pilha tinha mesmo energia. Aos 58 procurei por moedas antigas nos bolsos do casaco, só encontrando lenços ranhosos e uma caneca sempre-em-pé. Aos 69 comecei a olhar para as pessoas, à procura de uma gaja boa que assim se sentisse incomodada com o meu olhar e deixasse também de olhar para a tela. Isto demorou 5 minutos, sem resultados, altura em que uma mão por certo divina acendeu as luzes e libertou a minha consciência para ir apanhar arzinho frio na rua. Tão bom.

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