Quem quiser que escolha

"Anteontem na RTP, Cavaco fez de repente um comentário que revela o homem. A propósito do perigo de conflito com o primeiro-ministro, se fosse e quando fosse Presidente da República, Cavaco disse: "Duas pessoas sérias com a mesma informação (no caso ele próprio e Sócrates) têm (inevitavelmente) de concordar". Cavaco disse isto com toda a naturalidade e convicção, como quem declara uma evidência, sem uma reserva ou a mais leve sombra de ironia. Acha mesmo que sim: que duas pessoas só podem discordar por ignorância ou falta de carácter. Para ele, a verdade é unívoca e, pior ainda, não custa nada estabelecer. O fanatismo nunca falou por outras palavras e quem conserva um reflexo de independência e liberdade com certeza que as reconheceu pelo que elas são: a raíz da mais cega e absoluta intolerância. Estranhamente, ninguém pareceu dar pela coisa: nenhum jornal, nenhum candidato, nenhum partido, nenhum político - nem sequer uma "consciência" qualquer das que por aí sobrevivem, se de facto sobrevivem, à inanidade dos tempos. Não, ao contrário do que o dr. Cavaco julga, a democracia portuguesa não está "consolidada". Se estivesse, ele não era eleito.
Claro que as circunstâncias não permitem que o dr. Cavaco se torne num pequeno ditador. Mas talvez convenha perceber o indíviduo que dentro de semanas vai chegar a Belém. O velho desprezo pela política (de novo flagrante nesta campanha), sempre rejeitada como pura intriga ou jogo de interesses sem legitimidade ou desculpa, não passa de uma condenação sumária da gente pouca séria (ou incapaz), que desvia ou "bloqueia" Portugal. Para o dr. Cavaco, há um "bem da nação" indiscutível e uma única maneira de governar: a maneira honesta e sabedora que ele aconselha e representa. A divergência é, em última análise, anti-nacional. Se os portugueses tivessem no seu conjunto a sua informação e seriedade, viveriam numa perfeita harmonia, em vez de se deixarem levar para aventuras sem futuro, de se perderem em querelas de facção ou ganância e de servirem inconscientemente fins perversos. De Belém, Cavaco tenciona velar para que isso não volte a suceder. Afinal, se o primeiro-ministro não fizer o que ele manda, confirma automaticamente que é mal-intencionado ou que não estudou o que devia. E nós também, cautela. Se não o aprovarmos, quem somos? Malandros de nascença? Uma cambada de patetas? Quem quiser que escolha."

Vasco Pulido Valente, Público, 04/12/2005

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