IndieLisboa2007: Analog Days (**)

A onda “jovens norte-americanos à deriva e alucinados por não saberem como lidar com a realidade” foi inaugurada, arrisco eu, com “Kids”, de Larry Clark, há já uns anos valentes. Aí, Clark dava largas à sua veia de voyeur e atirava os putos para o campo da deliquência, drogas e sexo sem piedade, num documento a muitos níveis supérfulo. Em Analog Days Mike Ott tem o mesmo ponto de partida mas tenta dar uma volta menos sexual e deliquente à coisa. O que não corre bem. Trinta milhas a norte de Los Angeles, Newhall é igual a tantas outras pequenas vilas nos EUA: parada, deprimente e sem perspectiva de futuro, onde a intolerância racial é promovida pelo congressista a eleições e a juventude trabalha no clube de vídeo local ou anda de bicicleta até aos 30 anos. Tudo é uma deriva, e as grandes universidades estão demasiado longe, dando origem a eternas candidaturas recusadas. Ou seja, no meio disto tudo, o filme já começa cansado: nós já conhecemos aquela realidade. Nada ali é novo, nada ali obriga a pensar mais do que é suposto. Ott não melhora a coisa de forma nenhuma. Em vez de fazer passar ideias por gestos, coloca-as na boca dos miúdos, que parecem bonecos espanhóis a debitar gravações. Em vez de filmar o vazio, filma os miúdos de forma frontal, quase ingénua, com um olhar espertalhão de “ó pra mim a mostrar que estes putos não sabem o que querem”. Não só o fundo de maneio do filme era fraco, como a forma de concretização é desastrada, aposta na piadola ocasional e serve-se de uma banda sonora emprestada para tentar dar ambiente. Sim, como diz no cartaz, há Bloc Party e Clap Your Hands Say Yeah, mas não passam de jingles de radio que tentam mascarar um mau trabalho de argumento e uma ausência de pensamento cinematográfico. O próprio Ott, presente na sessão, parecia mais interessado em ir beber um balde de café para acordar do que seguir a sessão do seu próprio filme. Na origem da Sound Virus Records, mais vale manter-se por lá do que fazer filmes. O filme está em Competição Internacional, mas se ganhar algum prémio, eu pinto os lábios e saio à rua a dizer “kiss me”, e depois aperto o esguicho de água da flor na lapela.

IndieLisboa2007: Falkenberg Farewell (*****)

E ao quarto dia, uma tremenda surpresa. Falkenberg é uma pequena vila sueca junto à costa, perfeitamente arrumada nas suas moradias com jardins cuidados e bicicletas a passar. O Verão é ameno. Holger, John, Jorgen, David e Jesper cresceram juntos, e são hoje jovens perto dos trinta sem ambições ou projectos de vida. Habitam a casa dos pais, lentamente, e sentem-se, no tempo como no espaço, crianças. Falkenberg Farewell é um belíssimo documento existencialista e holístico sobre a memória e o tempo. Espanta desde o primeiro minuto a recusa de um futuro. David, que se assume como a voz que pensa o filme, cedo nos avisa que quer lembrar-se do passado. Em vez de projectos profissionais, ocupa-se das memórias de infância, pintando o filme com imagens de arquivo de crianças sorridentes e felizes, em atmosferas de conforto. Em vez de Gotemburgo, prefere os canaviais de Falkenberg, por onde vagueia, nu, no desejo que uma essência de infância que os habita não se disperse. Todos, por uma via ou outra, recusam crescer e agarram-se à terra como último habitat de verões compridos e invernos ausentes, numa comunhão com um tempo e espaços essenciais, não perturbados na sua placidez. O limite, naturalmente, é a morte, espaço de permanência da memória tal como está, sem futuro. Falkenberg Farewell é a primeira longa-metragem de Jesper Ganslandt, realizada com uma pequeníssima equipa e praticamente sem orçamento, em que os actores são eles mesmos, Holger, John, Jorgen, David. Os planos são de uma estética desarmante, a fotografia de uma pureza rara, o tom de uma honestidade profunda, o pensamento claramente invulgar. A passar em Competição Internacional, o filme sueco surge como um enorme candidato à vitória do Indie. Volta a passar esta terça, dia 24, pelas 18:45h, no S. Jorge.

IndieLisboa2007: Day Night Day Night (***)

E ao terceiro dia, uma primeira desilusão. Diz a sinopse de Day Night Day Night que “ uma rapariga de 19 anos prepara-se para se tornar bombista suicida em Times Square”. E sim, é verdade, Julia Loktev filma uma rapariga, crente em algo que nos é oculto, em preparação e acto de suicídio. Tudo de início é bem feito: a frieza dos programadores, de cara tapada e procedimentos rígidos, a semi-alienação da rapariga, convicta mas simultaneamente medrosa, humana. Tudo é preparado ao milímetro, mas sem gritos de viva deus, com a encenação que se adivinha no vídeo da praxe, com calma e normalidade, sem “terror pride”. Et voilá, ela vê-se em Times Square com uma mochila cheia de explosivos e um leitor de mp3 que na realidade é um passaporte para terras do Senhor. A coisa não corre bem, e tudo se desmorona, pelo que ela estava já morta antes de carregar no botão, por dentro, psicologicamente, nos gestos, na transpiração, na ausência de passado ou na sua obliteração. A partir daqui, quase tudo se perde. Loktev quis insistir no risco e torceu o pé, minuto atrás de minuto supérfulo, ao limite da caricatura. Grita-se para o ecrã “we get it!”, mas a realizadora insiste, e prolonga, e acaba por se perder no pós-morte desnecessário, anguloso erro de principiante. Pelo meio ficam micromovimentos, planos frios fora do livro de escola, um pensamento sobre as imagens que não se despreza. Mas tivesse parado a tempo e não se tinha suicidado. Dupla morte do artista.

IndieLisboa2007: Life in Loops, a Megacities Remix (****)

Um dos acontecimentos do Indie estava já marcado: a sonorização ao vivo de Life in Loops: a Megacities Remix, de Timo Novotny, pelos Sofa Sorfers. Que os austríacos são um dos projectos mais interessantes no campo da música electrónica feita em território europeu já se sabia. Mas criar uma banda sonora ao vivo para uma remix de Megacities, de Michael Glawogger, é já algo diferente. Primeiro que tudo, uma nota: não vi a versão original de Megacities. O filme passou no Indie 2006, e teve uma enorme aceitação. Desta feita, Timo Novotny, VJ e membro dos próprios Sofa Surfers, pegou no trabalho de Glawogger, aproveitou 30 por cento das imagens, foi para Tóquio filmar ainda um pouco, e regressou com um projecto de remistura de cinema. O resultado é um impressionante documentário sobre a miséria humana nas grandes metrópoles, do chulo agarrado de Nova Iorque ao indiano que recolhe lixo nos canais de esgoto de Nova Deli. Todo o trabalho de imagem é feito como se se tratasse de música, repetido e esgotado, virado do avesso, aproveitado nas cores e despejado nos olhos do espectador em comunhão com sons criados à la carte no momento. No fim, é notório que o trabalho de som dos surfistas austríacos define, por si mesmo, a remix de Megacities e o contrário. Não é uma obra prima do cinema, mas é muito bom. Ou foi, será que é sempre igual?

IndieLisboa2007: The Pervert’s Guide to Cinema (****)

A passar na secção Director’s Cut, dedicada a filmes sobre o próprio cinema, The Pervert’s Guide to Cinema é um dos objectos mais interessantes do cartaz do Indie. Realizado pela britânica Sophie Fiennes, aprendiz de Greenaway, o documentário segue a relação entre cinema e psicanálise, ou como o primeiro pode ser visto à luz da segunda.O anfitrião é o delirante Slavoj Zizek, filósofo e psicanalista esloveno, que vai tecendo as complicadas teias do cinema visto pela lupa de Freud e amigos. A coisa é feita de forma divertida, com Zizek a incorporar-se nos cenários de alguns dos maiores filmes da história. É vê-lo no barco como “Os Pássaros”, de Hitchcock, a falar de como estes simbolizam uma mãe opressora. É olhá-lo aflito face aos comprimidos azul e vermelho em “Matrix”, enquanto reflecte sobre a ideia de um renascimento primitivo. O tom é sempre bem disposto, mas nunca se perde do verdadeiro objectivo: mostrar como o cinema é o meio por excelência de demonstração de teorias psicanalíticas, e como o faz, globalmente, sem consciência. O filme de Fiennes tem três partes, e é precisamente pela duração que peca: Zizek, mesmo com toda a boa vontade, acaba por vezes por tornar críptico, e exigir ao espectador um trabalho de desconstrucção do discurso invulgar. De outra forma, o Zizek filósofo mostra-se, a espaços, mais do que Zizek psicanalista, o que torna o “argumento” um pouco pesado. Ainda assim, The Pervert’s Guide to Cinema é de uma originalidade estrondosa, feito de forma criativa, e cria uma visão atípica do cinema enquanto meio.

IndieLisboa 2007: Preâmbulo

Ora cá estamos: mais uma vez o Animatógrafo vai acompanhar o Indie, o maior festival de cinema nacional e claramente à procura do adjectivo do “melhor”. Desta feita, como em anos anteriores, vamos tentar ver um filme por dia. Desta feita, pela primeira vez, estamos como convidados acreditados, o que nos dá maior liberdade mas também maior responsabilidade. À primeira vista, a organização subiu de escalão: há uma bilheteira central, há quatro salas (com o “regresso” ao S. Jorge), há quase uma profissionalização. Nestes 11 dias o meu grau de satisfação pessoal vai subir consideravelmente. Fico com a ideia de no próximo ano tirar mesmo estes dias de férias. Ainda para mais agora este blog está praticamente no “eixo Indie”, em termos de localização geográfica. Para já vamos tentar seguir a competição internacional mas sem radicalismos, ganhando tempo para outros deleites. Sim, porque fora desta há Edgar Pêra, há Linklater, há Hal Hartley e Takashi Miike, há toda uma profusão de interesse. Let the games begin.

Em Abril a frustração (ou a busca)

Chega-se a Abril e aparecem o Indie e os Dias da Música em Belém. O que pode equivaler a dias de frustração ou à busca da sua extinção. Para já, a expectativa é de ver um filme no Indie por dia, e uns 5 concertos no próximo fim-de-semana no CCB. O Indie começa a 19 (quinta), os Dias esfumam-se entre sexta e domingo. Ou vai ou racha.

BES Photo 2006



Há um ano, sensivelmente, escrevi sobre o BES Photo antes da atribuição do prémio. Hoje, porém, sei que Daniel Blaufuks ganhou a edição de 2006. E isso, dir-se-ia, poderia contaminar este texto. Mas especulando livremente afirmo que não, não podia. Porque o trabalho de Blaufuks patente no CCB desde Janeiro é, de muito longe, o melhor. Augusto Alves da Silva tem uma fotografia exposta e, por ali, é o maior equívoco da mostra que fechou as portas ao público a 18 de Março. A fotografia é frontal, de um arco-iris no mar, fotografado por um curioso à frente do fotógrafo, num barco. Mero fait-divers, é uma imagem banal e sem qualquer proposta teórica ou mesmo lúdica, e espanta pela (neologismo) basicalidade. Já Susanne Themlitz tem propostas de maior fôlego, ainda que não totalmente consequentes. Com um conjunto de imagens a atirar para um mundo imaginário habitado por personagens bizarras, a fotógrafa serve-se da camera para simbolização de uma atmosfera de limbo, onde uma mulher e uma criança se movem numa casa abandonada, fazendo pasta de papel e assumindo uma posição de alienação. Ainda que maioritariamente provocado, e assente numa tónica de quantidade, as imagens de Themlitz têm uma preocupação de composição a partir da banalidade, ou seja, existe um olhar estético sobre o bizarro construído. Vasco Araújo é um segundo equívoco a seguir a Alves da Silva. Ainda que não completamente abstraído de conteúdo, o trabalho de Araújo é muitíssimo mais do campo da instalação do que da fotografia. De base pessoana, com um ponto de partida literário, o trabalho exposto tem a fotografia enquanto sidekick, e não como actor principal. Não existe, assim, enunciado teórico qualquer, mas antes uma colagem de estados de espírito e de letra pintados por fotografias. Simpático ao toque e à vista, o trabalho de Araújo parece mais uma experiência adolescente do que uma plataforma de imagem fotográfica. Já no caso de Blaufuks, a coisa é bem diferente. O fotógrafo que ainda esta semana lançou "Sob Céus Estranhos" (de que falarei aqui) parte de uma imagem encontrada num livro de W. G. Sebald tirada em Terezín, campo de concentração na República Checa, pedra de toque do regime nazi antes da queda em 1945. A imagem, de uma sala com porta aberta e arquivos nas estantes, seduziu Blaufuks, que a procurou. A partir daí o artista constrói um conjunto de elementos que são simultaneamente reflexivos e estéticos. Diversas imagens de pessoas em Terezin são mascaradas com um filtro vermelho. Blaufuks encontrou ainda a sua sala de arquivo dentro da imagem de Sebald, trazendo-a à memória colectiva actual, sublinhando o seu estado de suspensão encenada, que permanece. No que estava disposto no CCB especial realce para o filme, documentário realizado por nazis a glorificar Terezin como o campo perfeito, o projecto sublime do regime, em que a encenação assenta em sorrisos mortificados de quem estava permanentemente a morrer. A farsa alemã à data é ainda dantescamente sublinhada por uma voz-off de pretensão divinatória. Blaufuks recupera a estratégia usada nas fotografias: reduz a velocidade das imagens e aplica filtros vermelhos, dando uma profundidade diferente à peça, assumindo a alteração no dispositivo como forma de lhe conferir um carácter apenas localizado no tempo e na história. No fim, o projecto de Bluafuks é isso mesmo: um projecto, substantivo nos conteúdos e nas formas, em busca de algo que nos toca enquanto humanidade e enquanto seres culturais, ou seja, políticos e livres, mesmo que, por vezes, apenas em expectativa (e não desejo). O site do fotógrafo e realizador dispõe de um PDF com as imagens e uma entrevista onde tudo está mais reflectido, a qual se aconselha leitura atenta. Pode encontrar-se em http://www.danielblaufuks.com/bes.pdf.

Hibernação

Temos estado a hibernar. Ou num estado vegetativo estilo beringela cozida, a marinar. Talvez seja esta a semana em que se acorda e se desata a comer para repor tudo o que gastou durante o sono. Talvez. A ver vamos.