Antony de volta

Agora com os Hercules and Love Affair. Lá para o final do Verão de novo com os Johnsons.

Este homem é um monstro

A minha palavra favorita da semana V


Mugenga


Eu Vou

... ver England, de Tim Crouch, na Culturgest. Tinha que ser.

There Will Be Blood (****)

Paul Thomas Anderson é homem de história pouca em termos de realização. Ainda assim, é claramente reconhecido como promessa concretizada do cinema dos últimos anos, em grande medida por estar na origem de Magnolia e Boogie Nights. Em 2002 trouxe também o alien Punch Drunk Love, parábola sobre o sentimento maior pelos olhos de um completo misfit. E agora, a idade maior. There Will Be Blood é cinema do grande, do bom, sólido como uma rocha, com um actor do outro mundo e uma visão sobre a origem da América. Baseado em Oil, de Upton Sinclair, o filme roda todo à volta de Daniel Plainview, prospector de petróleo no início do século XX que consegue um império à custa de determinação própria. Enquanto documento seminal sobre aquela que viria a ser a maior potência mundial, o projecto de P.T. Anderson não deixa nada ao acaso, desde o surgimento da indústria de petróleo e as suas ligações à religião, até ao sonho americano concretizado na ambição quase desmesurada do indivíduo, passando por noções de moral laica apoiada num conceito de família intimamente ligado ao de continuação de espécie. Anderson aproveita ao máximo o trabalho de Sinclair e parte claramente para uma realização de fôlego, com imagem pensada em grande medida e focalizado em colocar todas as ferramentas do cinema ao serviço de um projecto (uma banda sonora extraordinária, por exemplo, criada por um dos elementos dos Radiohead). E depois de tudo isso, apesar de tudo isso, acima de tudo isso, há Daniel Day-Lewis. O homem que fez quatro filmes em dez anos, que deu corpo à Irlanda em In the name of the Father, em 1993, e corpo ao manifesto em The Boxer, em 1997, arranca a pele e a alma a Plainview de uma forma soberba, de tal forma que parece, enquanto ele mesmo e extra-cinema, ele sim uma personagem. Tudo na interpretação de Day-Lewis é pesado em balança de precisão, e tudo é formatado de acordo com a sua visão da realidade. E será aqui, talvez, que P.T. Anderson perde o pé e navega em águas demasiado fundas, concretizando algo que é refém de si mesmo. Porque There Will Be Blood é Daniel Plainview e Plainview é Day-Lewis. E, assim, o filme, ainda que não se reduzindo a, é refém do actor de forma inevitável. Porque se fosse de outra forma ter-se-ia perdido um pedaço de cinema que vai marcar de forma clara a produção de 2008. Este é um dos filmes da década e não é perfeito porque tem lá dentro quem seja. E raras vezes dois absolutos convivem sem a vitória, em sangue, do mais forte.

Lavagante

São duas notícias numa. Primeiro que tudo, e que todos: um inédito de José Cardoso Pires. Reza a história que o texto nunca foi publicado em livro, e que uma versão reduzida terá visto a luz do dia em Dezembro de 1963, na revista "O Tempo e o Modo". A versão que agora chega aos escaparates foi revista pela filha do escritor e é um excelente mote para Nélson de Matos. Cardoso Pires, autor maior da literatura lusa contemporânea (a par de Lobo Antunes) volta a mexer nas mentes que estejam disponíveis para o ler. O Animatógrafo curva-se com respeito e saudade do autor (que chegou a conhecer e cuja obra investigou profundamente, com resultado disponível aqui). Segundo, o mesmo Nélson de Matos ataca assim como prometido: está lançada a Edições Nelson de Matos, editora nova do ex-responsável da D. Quixote. A ideia parece ser apostar em qualidade, claro está, e é de saudar num tempo em que as editoras entraram na idade adulta do capitalismo, geridas como máquinas de precisão de um mercado cada vez maior. Parece ser o regresso do editor, contra o cada vez mais comum gestor de catálogo. A ver vamos. O projecto dispõe de um blog, aqui.

Nono regresso



A minha palavra favorita da semana IV


Abrenúncio

In The Valley of Elah (****)

Eu não sou um fã de Paul Haggis, verdade seja dita. O canadiano fez toda a carreira na televisão (chegou a escrever Walker, Texas Ranger), e chegou há pouco ao grande ecrã. Se Million Dollar Baby é um filmaço, já Crash é um projecto redundante, que conseguiu ir à Academia buscar carecas dourados em ano de seca. Quanto a Flags of Our Fathers e Letters from Iwo Jima, confesso que estão em pipeline para visualização próxima no recanto do lar. Isto para dizer que Haggis parece ser bem mais escritor para filmes do que realizador. Do seu olhar são apenas Crash e agora In the Valley of Elah. Se o primeiro é um filme oportunista a piscar o olho a uma sociedade à procura do acaso como redenção de um destino personalizado, já este último tem bem mais que se lhe diga. Mas claramente Haggis parte de argumentos à prova de bala para filmar, e isso condiciona muito os filmes que, assim, não deixam grande prova de vida visual. In The Valley of Elah será, à partida, um dos grandes filmes vistos em 2008. Porque a história é a primeira grande respiração sobre a guerra do Iraque e a repercussão que tem na América do dia-a-dia. Porque Tommy Lee Jones chamou a si os espíritos de John Wayne, Cary Grant ou Gary Cooper e cobre tudo de um negrume realista de quem sabe o que é preciso fazer e faz. Porque não há gorduras e tudo é filmado na base da face e do visível, sem dramas para além do absurdo do real. Por tudo isto, Haggis merece aplausos. A história parte do regresso de um soldado após campanha no Iraque e do seu desaparecimento, e da procura de paradeiro e explicação por parte do pai (Tommy Lee Jones), ex-polícia militar abatido pela realidade dos dias. E ao longo de 121 minutos, descobre-se rapidamente o que aconteceu ao soldado, lentamente como aconteceu, e, em fade-in fade-out, a guerra aparece a espreitar por entre ficheiros corruptos gravados com um telemóvel ou relatos descolados da realidade, como se a morte fosse apenas uma expressão comum dos dias destacados. O filme de Haggis desafia, pela primeira vez que me recordo, o status quo da guerra tal como a sociedade americana o vê, patriótica nos seus homens e crítica (agora) nas determinações políticas. Em In The Valley of Elah discute-se, sem militância de qualquer espécie, a legitimidade de qualquer guerra, pelos seus efeitos no ser humano ao nível do consciente/inconsciente. E até ao fim é a personagem de Jones que quer acreditar numa ética belicista que se prova, por fim, ausente, quer nos homens quer nos espaços. Depois de muitos filmes menores, Jones prova ter sempre estado à espera do "seu filme", do espaço que lhe daria espelho a uma face envelhecida e uma representação de carreira. E Haggis colocou-o precisamente no centro de um objecto de cinema paradoxal, não épico mas realista, que não só aproveita tudo isso como extrapola para onde o cinema deve extrapolar. Haggis não é um mago da camera, mas também ninguém disse que é preciso sê-lo para fazer bom cinema. E isto é, definitivamente, bom cinema.

Anima-dinner 4: o aviso

Por mares nunca antes navegados. Dia 29.

A verdade é que

A verdade é que devia estar a trabalhar na área da cultura, e não estou. Devia ser programador, ou técnico de luz, ou assistente de comunicação, ou promotor. Olhando para trás, dir-se-ia que falhei na coragem para assumir que o queria fazer não me daria, objectivamente, o que queria de material na vida. A verdade é que o que faço hoje está longe das minhas inquietações mentais, do que me interessa efectivamente, do que me realiza nas entranhas. Sim, poucos são os que fazem o que querem. E poucos ainda o que os efectiva na realidade que constroem. A verdade é que o quotidiano é hoje uma mentira mascarada de necessidade, e um dia, do alto dos meus 50 ou 60 ou 70 anos, vou desejar acreditar em qualquer força metafísica que me traga de novo ao tempo da oportunidade. A verdade é que o antropocentrismo a que aderi é bonito, mas fode-me o juízo.

A minha palavra favorita da semana III


dondoca

Das mulheres filhas da puta

A raça é antiga. Remonta aos idos da carne junto ao osso, e quando eram formatadas à porrada de cacete. Comiam e calavam, e foram apurando uma genética própria, derivada da adaptação ao meio e do desenvolvimento de noções quinéticas profundamente enraizadas no cerebrelo. Uma mulher da filha da puta tem os olhos vermelhos. Acorda, de manhã, sozinha e recrimina tudo o que sabe para se vestir com um objectivo específico, mesmo que narcísico. Durante os seus dias cheiram o musgo alheio com nariz tísico e procuram as presas mais susceptíveis de serem afectadas. Na sua impossibilidade, conformam-se em afastar estas e providenciar lugar a outras que tais, dóceis, sejam homens, filhos, sogros ou gajas. Usualmente ignorantes para além do seu scope, focalizam-se na tarefa corrente de tal forma que tudo o resto é-lhes desfocado da vista, mesmo fisicamente, e assumem uma pose central numa cena imaginada, onde a face e as articulações parecem desenhadas por Paula Rego. Uma mulher filha da puta é um homem com tomates, mas sem pénis. Compensa assim a ausência do membro com braços extra-longos, pele destratada pelo ar condicionado e, por vezes, vitimização interior. Espécimen em expansão sobretudo em países em vias de desenvolvimento, onde acreditam existir território virgem, quando são são de forma inteira, não dando lugar a dúvidas ou ensaios de consciência. As mulheres que se dizem filhas da puta, essas, não passam de produtos frescos de uma sociedade com baixa auto-estima, que se tentam afirmar pela negativa quanto a negativa é positiva, a seu ver. As verdadeiras desconhecem o estatuto pessoal e acreditam ser verdadeiros prodígios de entrega e dedicação a uma causa, seja profissional, pessoal ou futebol de cinco. Bons exemplos são artistas que, colocando a filha da putice ao serviço da arte, não poucas vezes se revelam seres de atracção fatalista para alguns homens. As mulheres filhas da puta são o futuro dos anões.

Cultura, Saúde

Já tardava a substituição de Isabel Pires de Lima no Ministério da Cultura. Desde cedo, a senhora ministra deu sinais de ser um profundo erro de casting. Aparentemente desconhecedora dos dossiers, partiu para a ignorância ao substituir a directora do Museu de Arte Antiga e o director do Teatro S. Carlos, dois óbvios elementos preponderantes na (parca) dinâmica cultural portuguesa. Em adição, foi totalmente inábil na condução do dossier “Museu Berardo”, deixando “fugir” Mega Ferreira quando finalmente se tinha assumido à frente de um dos maiores pólos culturais nacionais, o CCB, e aceitando que ficassem a pairar enormes suspeitas sobre o negócio com o comendador. Pires de Lima terá sido, de forma clara e transparente, a pior escolha de Sócrates para o elenco governativo, e sabia-se há muito que, à primeira oportunidade, seria exonerada. Sócrates cumpre. Porém, a escolha de um economista sem ligações ao meio cultural português e com íntimas ligações a Joe Berardo deixa muito a desejar. José António Pinto Ribeiro aparece do nada, sem trabalho vísivel mas, e aqui pela positiva, sem anti-corpos. A ligação a Berardo será, claro, fortemente vigiada. E, infelizmente, Sócrates dá um mau sinal com um bom sinal. A substituição, boa per si, implica um novo agente que talvez mais não fará que gerir um orçamento inexistente. A indicação deste Pinto Ribeiro é claramente a defesa da Cultura enquanto sector esvaziado de capacidade de investimento e a fazer contas às migalhas. Há quem diga, aliás, que Sócrates prepara assim este Pinto Ribeiro para outros voos, noutras pastas. Curiosamente, quem passou o dia a receber telefonemas de parabéns, de acordo com o Expresso da semana passada, foi o outro António Pinto Ribeiro, programador da Culturgest, académico reconhecido e personalidade há muito vista como possível ministro da pasta. Esse sim teria sido uma aposta para um futuro mais sorridente de uma área esquecida por sucessivos governos desde o tempo de Manuel Maria Carrilho (honras feitas a Guterres).
Do lado da Saúde, de novo Sócrates a dar o pinote. Dias depois de afirmar total confiança em Correia de Campos, Sócrates admite os problemas e troca-o por Ana Jorge. Se a gestão do dossier “encerramento de urgências” foi desastrosa, dificilmente seria possível ao primeiro-ministro dar pior sinal do que demitir um ministro fortemente pressionado pelos media, populações e oposição. Até porque, acredita-se, na génese, o programa de encerramento de urgências hospitalares de menor eficiência e a sua substituição por centros intermédios está correcta.Falhou, de forma demasiado óbvia, a planificação de encerramento das primeiras e abertura dos segundos. Mas demitir um dos ministros mais visíveis do governo, sobretudo no auge das pressões, indica um Sócrates de olho demasiado virado para eleições e no apaziguamento das facções internas do PS, com Manuel Alegre à cabeça. À partida, o efeito foi conseguido: a entrada de Ana Jorge calou as Anadias, pelo menos num “esperar para ver” que dá oxigénio a quem governa. Mas fica o sinal. Se nalgumas matérias Sócrates mantém a posição forte que imprimiu na primeira metade da legislatura, parecem existir sinais suficientemente preocupantes para seguir os próximos meses com atenção redobrada. Assim não, pá.

O Animatógrafo pergunta (XII)

Já não há intelectuais que não sejam politiqueiros no seu pensamento?

Desabafo mental (IX)

Muitas vezes sinto-me desacompanhado nas preocupações teóricas e contagiado nas práticas.

Oitavo regresso

O nojo aquece-te, como as árvores

sabes
que todos os dias crescem no mesmo sentido em que os olhas
e que ao fundo
no fundo

arriscas a cabeleira branca, solene
no limite do fumo, ou da água
enquanto não te dizem algo mais

do
que
quererias alguma tarde saber
ou noite
ou
na franja da fome
chegar a activar o cadastro
desbotado de quem te precedeu no
sangue

Albertina, há minutos

Albertina tinha 3,36€ para pagar, quatro iogurtes básicos, um pacote de biscoitos secos. Olhou para as moedas na palma da mão, poídas, e para a voz impaciente da caixeira do supermercado, e nada fazia sentido. 3,36€, e faltavam moedas. Quatro iogurtes e uns biscoitos, secos, num pacote de plástico ruidoso. Albertina, ou Inês, ou Luísa, 70, ou 76, ou 81 anos, olhava para as moedas e para a menina. 3,36€. Albertina humedeceu os olhos, involuntariamente. Paguei a diferença, e Inês, ou Luísa, agradeceu entre lágrimas. Quatro iogurtes básicos, biscoitos secos num pacote. Perdi a fome.

Palhaço, cabrão

Este Carnaval mascarar-me-ei de palhaço. Por obrigação. Em breve, de cabrão. Por gosto.

Sweeney Todd, the demon barber of Fleet Street (****)

Ora aí está o primeiro dos oito filmes, oito de que falei logo no início do ano. E confirma-se: a coisa é muito boa. Mas não, não é genial. Por partes. A história de Sweeney Todd tem barbas, vem do início do século XIX, e conta que Benjamin Barker, simpático barbeiro na pacata Londres, de família constituída, é enviado para a prisão alvo de vil injustiça. Anos depois Barker regressa em pele de Sweeney, agora demoníaco barbeiro que lança o terror com muitas gargantas cortadas a navalhada certeira e morada assumida em Fleet Street. Ora, Tim Burton, mago de imagem em movimento a criar ambientes, pega em Sweeney e dá-lhe voz por Johnny Depp, que não enjeita a oportunidade e mantém garganta seca ao longo do filme. E em total sintonia, Helena Bonham-Carter tem uma enorme Mrs. Lovett debaixo da pele, autora assumida das piores tartes da cidade e cúmplice temerosa de Todd. Enquanto filme, Sweeney Todd é em tudo Burton. O realizador conseguiu um enorme trunfo sem o qual o filme seria um falhanço: a colaboração de Stephen Sondheim, autor do musical de palco que está na génese do projecto. E por aí Todd ganha quase tudo o que podia: capacidade interpretativa, qualidade sonora e de texto, densidade dramática. Burton, confesso não admirador de musicais, encontrou em Sweeney o canto lugúbre que usualmente povoa os seus filmes e foi à procura da perícia que lhe faltava em Sondheim. Em termos de imagem, o filme é um potento de preto e branco, uma Londres penetrada por fuligem que por sua vez invade os estados de espírito mais incautos. Depois Burton agarra no pincel e faz o que melhor sabe: lança sangue a rodos para a tela, que assim assiste a um confronto cromático sem fim. E onde é que tudo isto não é genial? No ritmo. Sweeney Todd, lamenta-se, demora a arrancar. Ou antes, arranca aos solavancos. A primeira face do barbeiro é já musical e introduz-nos de imediato no contexto emocional e cromático da coisa. E da primeira vez que Helena Bonham-Carter abre a boca é para desbragadamente cantar as maleitas da cidade, alvo de confrontos sociais que estão por dentro de cada tarte. Mas até ambos decidirem o que fazem à vida, e como é que a coisa funciona, o filme marina entre a tela e a Broadway. Burton recupera a veia de cinema mais à frente e conclui de forma operática, mas o ritmo da primeira metade funciona como barba mal escanhoada de um pedaço de cinema que se queria de suavidade suprema. Tem-se, assim, um filme muito muito bom, mas não perfeito. Ainda assim, e confirmando desejos: outra vez de joelhos perante si, senhor Burton. Outra vez.