Artrose

Dias de férias passam e muita coisa surge para postar. Aquele sentimento de "ah, se eu tivesse aqui um portátil" invade-me o cérebro a cada 15 minutos. Mais ainda, o delírio no sentido de "ah, se postar fosse cosa mentale". Depois chega-se à frente do monitor e os dedos ganham uma artrose súbita, qual quadro do orçamento rectificativo com "falha técnica", e não sai nada. Pior, os olhos assumem a consciência que não olharam para um monitor durante dias e veem tudo meio turvo, como se a radiação luminosa emitida pelo LCD fosse o beam do Scotty (sem segundas intenções, atenção) em dia de nevoeiro. Isto das férias é tão saudável que dá-me cabo da saúde.

Férias

É verdade: vou de férias. Aliás, já estou de férias. Mas isso não quer dizer que o Animatógrafo esteja de férias também. Pelo contrário, continuará a sua tarefa de calúnia desmedida e atenção incomensurável (ou não...). De qualquer forma, é possível que os posts sejam mais espaçados (ou não...). E há a promessa de tentar postar da Bélgica, onde vou visitar o amigo do blog aqui ao lado, o "Portugal a 2500 Kms". De qualquer forma vão passando por cá, que para preguiça já chega durante o trabalho, nas férias quer-se é actividade mental intensa! (ou não...)

Chupa no dedo

"A tentativa de erguer o maior chupa-chupa do mundo numa praça de NOva Iorque acabou numa cena própria de um filme de Hollywood, na quinta-feira. Com 7,5 metros de altura e mais de 17 toneladas de peso, o chupa-chupa feito de compotas geladas acabou por sucumbir ao calor mais rapidamente do que se esperava, inundando a Union Square, no centro de Manhattan, com fluidos de kiwi e morango. "Já planeávamos que isto acontecesse... só não esperávamos que acontecesse tão rápido", explicou a porta-voz da empresa de chupa-chupas que patrocinou o evento."

Público, 25 de Junho, pag. 50

Oiçam





Bloc Party, "Silent Alarm"
LCD Soundsystem, "LCD Soundsystem"

Ainda Cunhal

Ainda no espírito da posta de sexta-feira, limito-me a transcrever o texto de Vasco Pulido Valente no Público do mesmo dia. Subscrevo por inteiro. Ora o Vasco diz que:

“Parece que Álvaro Cunhal foi uma figura “importante”, “central”, “ímpar” do século XX português. Muito bem. Estaline não foi uma figura “importante”, “central”, “ímpar” do século XX? Parece que Álvaro Cunhal foi “determinado” e “coerente”. Hitler não foi? Parece que Álvaro Cunhal era “desinteressado”, “dedicado” e “espartano”. Salazar não era? Parece que Álvaro Cunhal era “inteligente”. Hitler e Salazar não eram? Parece que Álvaro Cunhal sofreu a prisão e o exílio. Lenine e Estaline não sofreram? As virtudes pessoais de Álvaro Cunhal não estão em causa, como não estão as de Hitler, de Estaline, de Lenine ou de Salazar. O que está em causa é o uso que ele fez dessas virtudes, nomeadamente o de promover e defender a vida inteira um regime abjecto e assassino. Álvaro Cunhal nunca por um instante estremeceu com os 20 milhões de mortos, que apuradamente custou o comunismo soviético, nem com a escravidão e o genocídio dos povos do império, nem sequer com a miséria indesculpável e visível do “sol da terra”. Para ele, o “ideal”, a religião leninista e estalinista, justificavam tudo.
Dizem também que o “grande resistente” Álvaro Cunhal contribuiu decisivamente para o “25 de Abril” e a democracia portuguesa. Pese embora a tradição romântica da oposição, a resistência comunista, como a outra, em nada contribuiu para o fim da ditadura. A ditadura morreu em parte por si própria e em parte por efeito directo da guerra de África. Em França, a descolonização trouxe De Gaulle; aqui, desgraçadamente, o MFA. Só depois, como é clássico, Álvaro Cunhal aproveitou o vácuo do poder para a “sua” revolução. Com isso, ia provocando uma guerra civil e arrasou a economia (o que ainda hoje nos custa caro). Por causa do PREC, o país perdeu, pelo menos, 15 anos. Nenhum democrata lhe tem de agradecer coisa nenhuma.
Toda a gente sabe, ou devia saber, isto. O extraordinário é que as televisões tratassem a morte de Cunhal como a de um benemérito da pátria. E o impensável é que o sr. Presidente da República, o sr. Primeiro-ministro e dezenas de “notáveis” resolvessem homenagear Cunhal, em nome do Estado democrático, que ele sempre odiou e sempre se esforçou por destruir e perverter. A originalidade indígena, desta vez, passou os limites da decência. Obviamente, Portugal não se respeita.”

Pra refrescar...

Cunhal

Ok, o homem levou muita pancada, era um tipo fixe, resistente, convicto. Mas alguém se lembra do 25 de Novembro? Alguém sabe o que é ser "leninista"? Caraças, tenho-me na pessoa de um tipo de esquerda, mas o camarada quiz fazer um golpe de Estado! Alguém tem dúvidas que se tem conseguido, hoje Portugal seria como Cuba? Ontem ao almoço um muito bom amigo meu dizia "ok, mas já não há politicos assim, é o preço da coerência". Mas quando as ideias em que acreditamos estão provadamente desajustadas da realidade e conduzem à falta de liberdade, não passa de coerência a teimosia? O editorial do Diário de Notícias de ontem assumia que a multidão e as manifestações de respeito eram em virtude da derrota. Na prática, Cunhal foi um derrotado: no Estado Novo porque sofreu tortura e não tinha liberdade, no 25 de Abril porque foi feito pelos militares, no 25 de Novembro porque não tinha força suficiente, e na democracia porque acabou como eremita de si mesmo, como fantasma permanente do partido. E os portugueses são pródigos em louvar os derrotados, especialmente depois de mortos. Aliás, os portugueses são pródigos em louvar os mortos. É uma espécie de "coitadinho, até não era má pessoa, pronto tinha lá o seu feitio, mas morreu novo". E o morreu novo vale até aos 80 anos, mais ou menos. Quanto a Cunhal, e como disse Mário Soares, foi um homem do século XX.

21€

Estive para postar sobre o tratado constitucional na noite do "Non" francês, e depois na do "Nee" holandês. Das duas vezes, uma vozinha chata da minha cabeça martelava-me: "não fales sem ler, tens que ler primeiro o tratado, senão não faz sentido, não fales do que não sabes, lê primeiro". Fraco como sou, não disse nada, porque tive aquela que seria uma ideia feliz: comprar o tratado na Feira do Livro, juntando o útil ao agradável. Ontem desloquei-me à dita, que agora começa no pirilau do Cutileiro e alarga-se até às gruas do marquês (alguém repara na ligação gráfica?). Em dia de jogo da selecção, e com o IVA prestes a passar para 21 por cento, não eram muitos os que se arrastavam entre a "barraquinha das bíblias" e seccção infantil. Objectivo n.º 1: comprar o guia de Bruxelas, Gand, Antuérpia e Brugges mais barato que na FNAC. Ao fim de 10 minutos: conseguido. Objectivo n.º 2: comprar a versão portuguesa do tratado constitucional europeu. E aqui a porca torce o rabo (não costuma vir torcido de nascença? não tenho visto a Quinta das Celebridades, não sei...). Meus caríssimos amigos, neste país, um documento sobre o qual muito possivelmente seremos chamados a opinar (ainda que de forma maniqueisticamente democrática) custa 21€ na Feira do Livro, e só há uma edição! 21 EUROS EM PROMOÇÃO! UMA EDIÇÃO! e ninguém reclama! Aliás, não vi ninguém minimamente interessado. Caramba, ninguém quer ler aquilo? Só o Pacheco Pereira é que tem uma? Quantos deputados leram o documento? CARAÇAS, QUE PAÍS É ESTE? Como bom português, vou tentar arranjar o documento na internet, lê-lo, e depois formar a minha opinião. E se arranjarem maneira de não haver referendo, faço como fiz quanto à extinção da editoria de Cultura da Agência Lusa: envio um e-mail ao nosso primeiro. Cujo gabinete até respondeu....

Natureza morta

Feira do Livro de Lisboa, ontem 19:32h: Clara Pinto Correia sentada a uma mesa de madeira de caneta em riste. Ninguém se aproxima durante largos minutos. Uma velha aproxima-se então. Clara sorri e prepara a caneta para o autógrafo. A velha dispara: "ó menina, onde é a barraquinha para comprar as bíblias?"

O Animatógrafo pergunta VI

Porque é que o corpo de uma mulher grávida só é bonito porque nos lembramos da criança lá dentro?

Défice às 15

Não li, como o comum dos mortais não leu, o relatório da Comissão Constâncio. Provavelmente também não compreenderia grande parte. Mas há coisas que convém pensar:

1) – É uma palhaçada (sim, palhaçada) os líderes dos partidos com assento parlamentar virem dizer que estão “chocados” e que “não estavam à espera”. Bagão Félix dizia ontem na RTP que as contas do déficit eram muitos fáceis de fazer, e não eram necessárias semanas de uma comissão especializada. Bastava pegar no déficit previsto pelo orçamento e retirar-lhe as operações falhadas que o governo de Santana Lopes tentou levar a cabo (GALP, etc…) e contar com o crescimento actual neste momento (que é claramente abaixo de todas as perspectivas de Outubro de 2004). O resultado é muito próximo do valor de Constâncio. E portanto sejamos sérios: toda a gente sabia que o déficit era deste tamanho. Nos últimos anos não se tomaram medidas de fundo para resolver a questão (apenas se subiu o IVA para 19%, o que deprimiu a economia de imediato e não resolveu nada) e portanto os déficits apresentados por Manuela Ferreira Leite eram o déficit estrutural menos as medidas extraordinárias. Como Constâncio não conta com quaisquer medidas extraordinárias, o resultado serve-se cru;

2) – É outra palhaçada pensar que isto hoje era tudo muito lindo se se tivessem feito restruturações de diversos sectores do Estado na década de 90. Porque isso era praticamente impossível. E porquê? Porque temos 30 anos de país real (antes do 25 de Abril era virtual, não havia prisões reais, nem denúncias reais, nem miséria real, era tudo “ordem”) e tivemos que começar tudo do zero. Tudo. E não somos noruegueses nem suecos. E, portanto, era praticamente inevitável que o que se passa hoje viesse a acontecer;

3) – Isto não quer dizer que tinha que ser tudo como foi. Cavaco podia não ter dado os benefícios sociais que deu, não teria ganho a maioria absoluta. Guterres podia ter compreendido que era altura de racionalizar a administração pública, não teria ganho o segundo mandato. Mas o problema é sempre a segunda parte da frase. Porque parece que não há ninguém que chegue e diga que “não me interessa o segundo mandato”. E isso é que era preciso, alguém com “espírito de missão”. Haverá?

Daqui por alguns minutos, vamos saber que há aumento de impostos mas que não há despedimentos na administração pública, que há alteração da idade para reforma mas que não há racionalização de procedimentos do Estado. Se daqui por minutos eu tiver razão, já volto.

Desperate Housewives

Ao que parece, a SIC vai estrear em Portugal a série que há meses anda a gerar a loucura nos EUA. Ok, também não é preciso muito para isso. Mas ainda assim, ficam umas notas prévias de quem já viu os 21 episódios que já passaram nos states e que começam a ser transmitidos em Portugal dia 22. Se pensarmos nisso, praticamente todas as séries que fizeram história na televisão norte-americana (e, logo, na nossa) eram sitcoms ou drama. São assim denominadas, aliás, as duas categorias a concurso nos Globos de Ouro, se a memória não me falha. As séries que a SIC Comédia agora anda a repetir são as sitcoms: “Cheers”, “Mad about You”, “Seinfled”, etc, etc, etc. As dramáticas oscilaram entre as iniciais da linha “Lassie” e “Casa na Pradaria” e depois a corrente Sci-Fi. Mais recentemente, nos últimos 10, 15 anos, a indústria compreendeu que eram formatos demasiado estanques e que tinha que arriscar em originalidade: ou no argumento (“Seven Feet Under”) ou em termos formais (“24”). A ABC arriscou num sentido curioso: o da análise da vida moderna e das suas implicações no modo de vida tradicional. Como era demasiado perigoso meter internet em casas amish, decidiu criar “Desperate Housewives”. Não avançando muito em termos objectivos, já que existe estreia marcada entre nós, fica a ideia de que se trata da história de uma pequena comunidade: um bairro. Daqueles tipicamente americanos, estilo Florida, mas sem velhos nem a humidade nem as camisas com abacates: casas iguais ou similares, relvados impecáveis, garagem, sebes pintadas de branco, crianças a brincar na rua, vizinhos que se conhecem. Mais longe: vizinhas que se conhecem, uma vez que são não-trabalhadoras. E aqui acaba a ideia de dona de casa tradicional. São mulheres altamente formadas, extraordinariamente atraentes, e com graves problemas mentais. O formato é um misto de comédia (e não sitcom) com drama. Basicamente, aquela gente não regula bem. Ou são obsessivo-compulsivos, ou sado-masoquistas, ou materialistas extremos, ou hiper-activos, ou infiltrados, ou homicidas.
Nos EUA, até a Primeira-Dama já referiu publicamente que vê. As actrizes, ilustres desconhecidas antes, são perseguidas na rua. E, curioso, os homens norte-americanos, segundo estatísticas levadas a cabo, dizem que não veem, enquanto as mulheres não perdem um episódio (não cheguei a nenhuma conclusão quanto a isto), o que é obviamente mentira. Especulando um pouco, acredito que o sucesso do formato está na forte identificação que o comum norte-americano deve sentir perante os personagens. Ou seja, aquilo podia acontecer no seu bairro. Ou pior, aquilo acontece no seu bairro! A análise do confronto entre o típico bairro norte-americano de relvados cortados e sebes pintadas e as pessoas que lá moram e as suas neuroses dá, para já, à ABC o pódio na temporada televisiva.

O Animatógrafo pergunta V

Se o Ricardo tivesse vindo para o Benfica, quem é que marcava o golo?

Mondovino Vs Sideways

Aos 16 anos, mais coisa menos coisa, defini para mim mesmo que, quando fosse suficientemente abastado e não precisasse de trabalhar, e chegado à crise de meia idade, rumava a Bragança e tirava o meu curso de enologia. A Universidade de Trás-os-Montes é a única com a referida licenciatura aqui no rectângulo e até ser rico e quarentão não tenho grande forma de me conceder tempo e espírito para me entregar à religião pagã. Tudo isto decorre de ter compreendido que há muito mais numa garrafa de vinho que fantasmas das sopas de cavalo cansado ou estatísticas do número de vítimas na estrada a flutuar. Para quem não aprecia vinho, não vale muito a pena tentar compreender. Palavras como terroir ou casta não passam, nesse caso, de sinónimos de Marte engarrafado. É como aquela desculpa feminina para o futebol como “22 homens atrás de uma bola”.
Para o comum dos portugueses (e lá estou eu outra vez a pressupor, mas contradigam-me se não estiverem de acordo), vinho, em sentido global, corresponde a duas realidades: umas quintas lá no Douro com uma paisagem catita e umas garrafas caras no hipermercado, e o tio Joaquim lá da terra que faz uma água-pé de matar castanhas à nascença. Possivelmente, ainda sabem que Bordéus tem “umas boas pingas”, mas a coisa morre por aí. Não sabem que os Estados Unidos da América são, actualmente, o maior player num mercado que se joga a nível mundial. Não sabem que o que nós damos como adquirido em qualquer casa, por menos de meia dúzia de euros, é vendido em Nova Iorque a 100 e 150 euros a garrafa em qualquer restaurante de toalha posta e velas na mesa. Não sabem que há uma indústria turística a promover uma multidão de terceira idade que percorre a costa da Califórnia para provar Pinot e Merlot a torto e a direito. Caramba, não sabem que há vinhas no vale de Napa, ou na África do Sul ou na Nova Zelândia, ou na Índia. Ora eis que surgem dois filmes para falar disto tudo: “Mondovino” e “Sideways”.
”Mondovino”, diz o autor, é sobre cães. Realmente eles estão lá, mas a realidade é que se veem mais uvas e velhos que canídeos. Filmado em digital, estilo Dogma 95 bem disposto, o documentário aposta em duas ideias. Primeiro, a de que existe a tentativa de manipular um mercado à escala global, não só através de marketing, mas sobretudo da manipulação química dos vinhos. Segundo, a de que existem dois lados da barricada, e que os americanos estão do lado do costume. Ora, quanto à primeira parte, parece que os nossos amigos do outro lado do atlântico estão apostados em fazer aquilo que uma das entrevistadas descreve como “vinhos-puta”: dão prazer imediato mas deixam-nos no segundo seguinte. Para os apreciadores, estamos a falar de baixo nível de acidez, muita baunilha, muito carvalho e pouca personalidade. Quanto à segunda parte, basta olhar para a cara dos Mondavi para perceber que aquela mania de controlar o mundo é genética e não olha a meios. Ou seja, não interessa o terroir, mas vender uns quantos milhões de garrafas de Opus One ao preço do ouro, e toda a gente acha o máximo. O documentário vale, como João Canijo dizia no fim da sessão a que assisti, pelas pessoas que lá estão. E como é feliz nas pessoas, nos olhares, no focinho dos cães, ça marche!
”Sideways” chegou a nomeado para óscar, mas ficou-se por aí. A receita é simples: pegue-se num frustrado de meia idade com sensibilidade acima da média, junte-se um actor idiota à beira do casamento, despache-se os dois para a terra das vinhas. Depois de marinar, deixe alourar uns dias de sexo desesperado do actor, junte uns copos de Pinot Noir em cenários turísticos e regue bem com imagens de vinhas. No fim, sirva-se com banda sonora minimalista e final de festa triste. O resultado não vai além do mediano. E porquê? Porque não se pode pegar na imagem romântica das vinhas e pensar que sai um filme do caraças. E, explicação derradeira, porque as vinhas da Califórnia não emanam nada de romântico. Para um europeu (e falo por mim) tudo parece forçado. Tudo denuncia a falta de História, a importação das castas, as salas de prova para turista. Todo “Sideways” perde aos pontos para meia dúzia de minutos em “The French Kiss”, comédia romãntica com Meg Ryan e Kevin Kline, por exemplo. Kline vestia a pele de um francês carteirista que consegue roubar um pé de vinha. Na sua terra, numa encosta por plantar e com a vinha na mão, Kline tem mais terroir na unha do dedo mindinho que todos os planos de copo na mão em “Sideways”. O “terroir” é como o fado: não é quem quer, mas quem pode.

Der Untergang

Posso estar redondamente enganado, mas creio que não há qualquer representação cinematográfica objectiva de Salazar. O cinema português já tentou abordar o período da ditadura algumas vezes, com “Até Amanhã, Camaradas” por exemplo, mas nunca ninguém teve coragem de filmar Salazar. Nunca ninguém pensou: vou filmar o homem que influiu de forma mais decisiva no século XX português (e infelizmente neste XXI, por consequência). Nunca ninguém teve coragem de representar Salazar para uns quantos milhares de espectadores. Claro que de Hitler a Salazar vai uma distância como do Sporting ao título, e é óbvio que Hitler será sempre mais representado que qualquer ditadorzeco que a Europa não conhece, mas mesmo que assim não fosse estou em crer que os alemães não compreenderiam qualquer ausência de representatividade como os portugueses parecem aceitar.

Trudl Jurgen tinha 22 anos quando esperou dias dentro de um comboio, atravessou um bosque e entrou num bunker, de paredes cor de cimento, para conhecer um tipo baixinho e velho. Trudl e outras 4 ou 5 raparigas igualmente sonâmbulas politicamente alinham-se lado a lado, com os nervos na lingua e as pequenas malas apertadas à exaustão. O tipo baixinho e velho sai de uma sala e examina as jovens. E, pasme-se, sorri! Meu deus, que sacrilégio, o tipo sorri! Sorri da mesma forma que um avôzinho sorri quando vê os netos, com um ar simpático, calmo, pacífico. Trata as jovens por “filha” e pergunta-lhes de onde vêm. Trudl tem a sorte de ser a primeira a prestar provas de dactilografia. Quando sai da sala, é secretária de Adolf Hitler.
O primeiro pensamento, intoxicado pela imprensa alemã e pelos detractores do filme, foi: “caraças, este gajo está mesmo a tentar limpar a imagem do Hitler! Sacana! É mesmo verdade, tentam apresentar o gajo como um tipo simpático!”. Depois a coisa segue. Mais à frente, Hitler, o “tio Hitler” dos filhos de Goebels, senta uma das crianças ao colo e faz-lhe festas no cabelo, sorrindo, enquanto todos cantam uma canção. Primeiro pensamento: “lá está outra vez! Como é que isto é possível? Sacanas, a tentar limpar o filho da mãe!”. A coisa segue. Mais à frente, Hitler dá um par de berros e uns murros na mesa, numa sala com pouco mais de 5 metros quadrados e muitos mais oficiais nazis de suor no rosto. E o pensamento de limpeza do Fuhrer desvanece-se.
A História, em termos globais, por um conjunto de razões essencialmente baseadas na linha ideológica seguida, classificou Adolf Hitler na categoria de “monstros”. Muito longe daqueles ditadores da América Latina que toda a gente imagina rodeados de mulheres, droga, com um sorriso malicioso na cara. Para a História, e para a esmagadora maioria das pessoas, Hitler era um “monstro”, frio, sem dimensão humana, sem dimensão emocional. Lembro-me dos muitos filmes sobre o III Reich que vi e uma imagem surge sempre: a de um soldado que mata um civil por nada, por não gostar da cara dele, porque simplesmente o pode fazer. Como imagem de marca do regime (o não-valor da vida), esta ideia estende-se a Hitler. Adolf, o “tio Hitler” dos muito loiros filhos de Goebels, seria também daqueles soldados que mata porque pode. Não ama ninguém, não sente nada. Podem cortar-lhe uma perna que não se queixa. Nada mais errado.
Muito antes do filme estrear em Portugal, já eu tinha procurado a expressão de Bruno Ganz para a camera em fotografias. “Der Untergang”, assim se chama no original, dá a Ganz a oportunidade de um Hitler sorridente, desesperado, maníaco, eugénico. E dá a oportunidade de recentrar a discussão sobre o regime nazi e o seu criador. Por várias razões:

1) – Como é óbvio, muito se escreveu sobre “Der Untergang” na Alemanha. E muito se escreveu tentanto atacar aquilo que seria uma tentativa de branqueamento do regime nazi e de Hitler, humanizando-o. O realizador respondeu publicamente dizendo “é isso mesmo”. E acrescentou que a ideia era fazer com que as pessoas compreendessem que Hitler era um homem, e que, assim, o Mal Supremo (as maiúsculas são minhas, e discutíveis) pode chegar a qualquer homem. Ora, nada mais correcto. E aqui chegamos a discussão sobre o conceito de humanidade que, creio, foi mal feita (ou não foi feita) no pós-guerra;

2) – Faça-se um inquérito de rua, daqueles que depois aparecem no SIC 10 Horas, e rapidamente se vai chegar à conclusão que o conceito de humanidade é comummente associado com valores da moral cristã: respeito pelo próximo, compaixão, perdão, sacrifício, etc. Ou seja, para o Zé Pinto “humanidade” transcende “existência”. Ser humano não é existir, mas antes ter compaixão, ter respeito pelos outros, e por aí fora. Como herança da moral cristã, e da semi-teocracia que reinou durante séculos no Mundo Velho (eram monarquias, mas não convém esquecer o papel da Igreja), o “humano” foi constantemente percebido como um “existente” valorizado, seja positiva ou negativamente. E daqui decorre a monstruosidade de Hitler: não tinha compaixão, respeito pelos outros (e, logo, pela sua existência), etc, etc.

3) – Mais além, podemos ainda partir da ideia que o homem assume determinados valores positivos para conceber “humanidade” porque tem uma necessidade de se afirmar diferente entre os seres. E como parece que a capacidade de linguagem organizada não chega para fazer a diferença, vai de se afirmar de outras formas: acha-se “humano” (ou então anda por aí a picar touros em cima de um cavalo e foge).

4) - Ora, na acepção judaico-cristã, que se tornou dominante no mundo ocidentalizado, Hitler nunca podia ser humano, seria sempre um monstro. Por todas estas razões, e porque a Humanidade (aqui entendida como representação simbólica da totalidade de seres humanos) não podia aceitar que um dos seus tivesse feito o que fez. Aliás, não pode ainda. É demasiado traumático conceber que se tratava, de facto, de um homem. Porque isso mina as ilusões quanto ao nível de “humanidade” básica em cada um. E portanto é muito mais fácil definir como “monstro”, mais saudável psicologicamente. Um pouco, aliás, naquela noção do “quem não está connosco está contra nós”. Voltando a “Der Untergang”, esta noção é extensível aos alemães. Se a um homem é difícil compreender que um dos seus tivesse feito o que Hitler fez, a um alemão essa dificuldade de compreensão cresce exponencialmente. E aqui mais uma vez a distância entre um ditador comum e Hitler: não me é difícil compreender o que Salazar fez, porque o nível de Mal é comum. Quanto a Hitler…

”Der Untergang” mostra um Hitler real, e não mitológico. O filme está longe de ser brilhante, muito longe, mas Ganz assume a tarefa de dizer que a “humanidade” é apenas existência com determinadas premissas biológicas, e não um conjunto de valores de ordem moral que baseiam as sociedades actualmente não-teocráticas. É duro, mas é verdade.