Andava há já semanas para ir a Sintra ver a exposição de fotografia de Fernando Lemos e hoje matei a bicha (a fome, entenda-se). Fernando Lemos é dos nomes mais desconhecidos do Surrealismo português, infinitamente mais ignorado que Mário Cesariny, António Pedro, Pedro Oom ou Vespeira. Lemos constituiu a sua obra fotográfica em perto de quatro anos, de 1949 a 1952. Nascido a 1926, Lemos aderiu ao "movimento" quando das exposições do 'Grupo Surrealista de Lisboa' e de 'Os Surrealistas', precisamente em 1949. No Sintra Museu de Arte Moderna, espaço com o cunho de Berardo, estão 117 fotografias que resultaram desse fascínio por Cesariny e companhia. As imagens foram compradas recentemente por Joe Berardo e estão em diálogo permanente até 30 de Abril. Do ponto de vista estricto, Lemos herda dos surrealistas a liberdade, que se pressente na ironia em quase todas as imagens, quer formal quer de conteúdo. Na prática, Fernando Lemos aponta à exploração da técnica fotográfica como modo de representação subjectivo, para lá do objecto fotografado. É assim que a solarização e a dupla exposição da película surgem como métodos de alteração primordiais, criando imagens que criam um novo objecto, herdeiro das duas imagens que compõem a fotografia mas que as transcendem. Da mesma forma, aliás, que o todo não é a soma das partes. Particularidade na maioria das fotografias é partirem do sistema clássico de "retrato" para uma noção nova do mesmo: a da criação de outra identidade. Em quase quatro anos, Lemos fotografou faces de Sophia de Mello Breyner, Marcelino Vespeira, Mário Cesariny, Alexandre O'Neill, Maria Helena Vieira da Silva, José-Augusto França, entre muitos outros. Um dos muitos sentidos extra-imagem que ficam é de um grupo dedicado à liberdade nas suas mais variadas formas, gráficas ou literárias, que constituiu uma tentativa de vanguarda portuguesa, aliás pouco valorizada nos dias que correm. Além de tudo isto, Fernando Lemos fixou imagens ainda que se enquadram em duas categorias: nus femininos, aproveitando a carga erótica dos corpos através da dupla exposição da película ou da cenografia de luz no acto de fotografar, e formas, puxando para a imagem impressa o ponto de vista gráfico do quotidiano que, de outra forma, se teria perdido na afeição do olhar comum à natureza real desse mesmo quotidiano. Na prática, ambas estas são caras aos surrealistas, na medida em que tanto o corpo como a forma foram temas centrais na sua actividade, pelo que eram territórios por explorar, pelo menos do ponto de vista de um olhar moderno. Sobre a exposição há a dizer que é particularmente bem estruturada, na medida em que são intercaladas com as fotografias outras obras, de autores surrealistas portugueses e estrangeiros (Cesariny, Vespeira, Man Ray, Dali, etc), que com elas comunicam. Sendo que todas as obras pertencem à colecção Berardo, é um esforço exigente e cumprido de aproveitar um conjunto de criações que têm vasos comunicantes óbvios que permitem compreender o Surrealismo nos seus pressupostos globais. Mais: a instalação da exposição no Museu faz um aproveitamento ímpar do mesmo. O espaço é um palácio extraordinário, onde a gestão da luz natural é pensada e onde as salas se sucedem, permitindo às obras uma interligação muito interessante. No último andar está patente uma pequena exposição de auto-retratos de Miguel Navas, que traz à parede uma discussão interessante: a dos vários eus. Todas as imagens expostas têm um aspecto diferente do autor, quase como que um humor, revelando a noção de que existem vários auto-retratos. Longe do auto-retrato clássico, envernizado no tempo e mumificado, Navas propõe os seus vários eus, mantendo padrões básicos mas modificando feições, gestos, músculos. No fundo, apontanto à construção de identidades outras que surge nas fotografias de Fernando Lemos. Para quem quer aprender a montar uma exposição e gerir cultura.
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