Declaração de princípios (eu adoro começar assim): eu votei no Guterres, nos dois mandatos. Estive, aliás, envolvido na campanha para o primeiro mandato. Entusiasmei-me, não podia (não posso) com o Cavaco e era preciso uma lufada de ar fresco. Guterres prometia. Nos comícios, era sentir o envolvimento, o sentimento de pertença a uma esperança, mais do que a um grupo. No fim do primeiro mandato, ainda assim, votei Guterres na ideia do "agora é que é". E porque não existiam alternativas. Hoje não estou arrependido, mas a desilusão foi enorme, a inépcia contagiante, o esbanjar oportunidades uma rotina. Ainda assim, houve Carrilho no Ministério da Cultura, houve a Estratégia de Lisboa, houve uma noção mais humana das questões. Mas ficou-se. Portanto, eu sei que António Guterres foi um mau primeiro-ministro. Porque um bom primeiro-ministros não só pensa nas coisas, como executa. Guterres, e apesar de todos os constrangimentos formais, não tem grande justificação para não ter feito grande coisa. Ele sabia-as, mas não fez nada com esse conhecimento, e isso é fatal. Não lhe nutro ódio, mas não lhe reconheço, hoje, admiração enquanto político nacional de cariz executivo. Mais: conheci António Guterres ia o primeiro mandato a meio. Afável, troquei apenas algumas impressões genéricas sobre questões banais, ao que me respondeu com enorme sentido de humor. Pelo que sei que António Guterres é uma pessoa substantiva, longe do "político profissional". Dentro desta medida, leia-se a entrevista hoje ao jornal "Público", sobre o seu primeiro ano à frente do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Guterres admite erros, admite onde está a falhar e porquê, analisa a Europa e os seus problemas, olha para trás e vê a Estratégia de Lisboa, conhece a situação actual no mundo como poucos. Sabe que as questões demográficas e de falta de consenso no continente são "um factor de instabilidade e de enfraquecimento político indiscutível". Sabe que a acção do ACNUR tem um problema grave de financiamento porque está demasiado dependente dos Estados e que tem que chegar mais perto das pessoas, ganhar visibilidade, atrair outros financiamentos. Sabe que o problema da constituição europeia passa por "uma Europa que não digeriu a sua evolução, que não digeriu as suas contradições, o seu alargamento, e que há uma opinião pública que não se revê nas instituições europeias". Sabe que as questões dos refugiados passam hoje muito pelos deslocados internos num mesmo país, como no Darfur, e que, até agora, não há enquadramento legal e pragmático para aquelas pessoas, à luz das Nações Unidas. Sabe que essas mesmas Nações Unidas têm um problema de reestruturação grave, que tem implicações directas na actuação do ACNUR e na intervenção em situações de conflito. Sabe que há actores que dão maior relevância a determinadas catástrofes em vez de outras, mas sabe também que não vale a pena estar a atacar os media quando a formatação do real é muito mais vasta do que os meios que a compõem. E sabendo tudo isto, criou o Business Council dentro do ACNUR para atrair financiamento e apoio privado e assim reduzir a dependência de apoios institucionais. Sabendo tudo isso, está a modificar a estratégia de comunicação do organismo por forma a criar uma noção de marca com objectivos específicos. Sabendo tudo isto, está a apoiar a formação de ONGs locais, nacionais, que se mantenham no terreno quando as organizações estrangeiras o abandonam. O homem não foi um bom primeiro-ministro, mas há poucos portugueses assim.
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