Mary (*****)

Abel Ferrara não filmava desde 'R Christmas, de 2001. E Mary (que deu um constrangedor "Maria Madalena" em Portugal) tinha, logo à partida, dois grandes atractivos: Juliette Binoche e a religião. A primeira tem andado perdida em projectos menores, a segunda também. Aqui, declaração de interesses dupla: eu considero Juliette Binoche uma das grandes actrizes mundiais de cinema, e sou um agnóstico por cobardia. Neste último caso, eu explico. Em termos efectivos, eu não acredito em qualquer tipo de transcendência. Porém, não tenho coragem de afirmar que uns biliões de pessoas, ao longo da história da humanidade, estiveram totalmente erradas. O que dá num agnosticismo particular, e particularmente desviado. Posto isto, regresso a Mary de Abel Ferrara. E, meus amigos, Mary é um filme soberbo. O ponto de partida é, em si, desde logo difícil: Marie, actriz de cinema, protagoniza um filme sobre Jesus na pele de Maria Madalena, e nunca recupera. Perdida de si e do mundo, enceta uma viagem espiritual à procura do seu "eu" verdadeiro, encontrando a luz e o amor do Senhor. Longe de Israel, Ted Younger (Forest Whitaker) é um apresentador de televisão que faz um programa sobre o Cristianismo, sobre Jesus enquanto personagem história e a implicações dos seus actos. Tony Childress (Matthew Modine), realizou o filme que baralhou Marie e que levanta enorme polémica nos EUA, com estreia a merecer honras de ameaça de bomba. Estes são os três pilares argumentativos de Ferrara para construir um objecto de enorme codificação, arrojo e sedução cinematográfica. Primeiro que tudo, Mary é um filme dentro do filme dentro do filme. A espaços, o filme de Ferrara confunde-se com o de Childress que se confunde com o da história. E isto, não só não é fácil de fazer, como, quando bem feito, é de aplaudir de pé. Segundo, e de forma mais substantiva, Ferrara olha Jesus nos olhos e filma a fé na sua dimensão mais interior, que é também a sua mais exterior. Tentando simplificar (e aqui recordo a minha declaração de interesses acima), a religião não é mais do que o aproveitamento externo das fraquezas humanas e a sua transformação em planos emocionais que regressam ao indivíduo de forma organizada e que lhe servem de base psico-equilibradora. Ora, é precisamente esta ideia que prepassa por todo o filme, a de uma fé que parte do ser humano como fraco e que a ele regressa como força criadora de condições de subsistência emocional. Pelo meio, Ferrara dá umas quantas no cravo, outras na ferradura, baralha e volta a dar, dá uma mão a católicos e outra a anti-religiosos (como eu), e constrói um dispositivo elíptico, denso, que arrebata corações que vejam no cinema a oportunidade de descodificação do real. E do transcendente, nesse mesmo real. O ritmo, pausas, avanços, recuos, olhares, momentos, vozes, planos, são controlados milimetricamente e o filme nunca perde um centímetro de oportunidade nem gasta um minuto. A crítica recebeu-o de forma fria, o público praticamente ignora, e porém aqui temos um dos grandes filmes do ano, mesmo à mão de semear. Para mentes inquietas e sedentas de conceptualização à volta de fantasmas. Próprios ou alheios.

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