Sampedro

Era o Vasco Lourinho um ícone da televisão portuguesa da década de 80, e de início da de 90, quando ouvi falar em Ramon Sampedro. Basicamente a questão despertou-me a atenção, na altura, por três razões diferentes: porque vinha da Galiza, coisa muito rara então (e mesmo hoje, se exceptuarmos o Prestige), porque era impressionante a história de Ramon, e porque o corpo era mostrado de forma anormal para a época. Lembro-me ainda que a notícia era retomada de meses a meses, cada vez que havia uma "não decisão" dos tribunais espanhóis sobre o processo. E também me lembro que tinha a noção que o homem nunca iria conseguir o que pedia. Até que um dia aconteceu. E se bem me lembro, foi uma notícia fugaz, curta, como um fait-divers (mas não juro).
Quando vi o primeiro filme de Amenabar já Vasco Lourinho não passeava na Gran Via. E desenganem-se: foi "Tesis", precisamente a estreia de Aménabar, esquecida e praticamente desconhecida dos portugueses, uma vez que nunc estreou em sala. Não quero jurar, mas tenho quase a certeza que, mesmo em televisão, limitou-se a passar no Hollywood Chanel, transmissão que captei. "Tesis" é sobre snuf movies, outra realidade desconhecida dos portugueses. E já mostrava Amenabar como um realizador bem acima da média, além de ter sido filmado na Faculdade de Ciências da Informação, em Madrid. Vi o filme pouco depois de lá ter estado, e aquela sensação estranha de conhecer os espaços que aparecem num filme captou-me numa tarde de preguiça.
Continuando numa de memórias, também não vou jurar, mas creio que a primeira vez que vi Javier Bardem em cinema, como protagonista, foi em "Antes que Anoiteça" no papel de Reinaldo Arenas. Já o tinha visto em "As idades de Lulu" ou "Entre as pernas", mas nunca com a exposição que teve na pele de um homosexual em Cuba. E a conclusão era muito simples: Bardem era genial. Simplesmente genial.
Juntando isto tudo, quando soube que Amenabar estava a filmar a história de Ramon com Bardem, fiquei a salivar. O que tem os seus riscos. Sobretudo porque da genialidade ao falhanço a viagem é curta. Ramon tinha deixado a história, e pela sua parte estava tudo dito e feito. Mas o resto... E o resto, agora disponível em praticamente qualquer sala de cinema sobre o nome "Mar Adentro", é uma demonstração de genialidade. Atenção: não estamos a falar de nenhuma obra-prima do cinema. Mas era impossível fazer mais. Sobretudo porque o cinema, quando refém de um argumento, não se pode potenciar ao limite. Ou seja, o realismo e a dimensão dramática da história de Ramon não deixam fazer uma obra-prima. Mas, no entanto, move-se. Bardem move-se nos limites da representação. E Amenabar nos da realização. Ou seja, como é que se faz um filme sobre a eutanásia em que o personagem principal está numa cama permanentemente? É simples: arranja-se um actor que tenha mais expressividade na voz e nos movimentos faciais que uma equipa de danças de salão em dia de torneio. Acrescentam-se movimentos oníricos, retira-se o tom de "coitadinho" com muito cuidado, mete-se uns pós de humor negro pela voz do visado e obtém-se um tratado. E o mais fantástico é que, sendo sobre a eutanásia, não é sobre a convencional mas sobre a real. Diferenças? Não é sobre o facto de querer morrer, mas sobre o sofrimento individual. A morte é apenas um pormenor.

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