Férias

Pois é, o Animatógrafo (eu) está de férias, que é como quem diz "o Jardel gosta de putas e vinho verde" (ou seja, utilização bizarra da terceira pessoa). Não quer isto dizer que o tasco vai ficar sem textos, bem pelo contrário. É bem previsível que a produção seja mais consentânea com o histórico. Vou, agora sim, para a praia e lá, agora sim, tudo me vai parecer diferente. Pelo menos nos dedos dos pés.

Desabafo mental (VI)

Mais vale ver a dobrar que dobrar a beber.

The Wizard of Beirut

"I happen to live in a residential quarter in Ras Beirut which has been spared so far Israeli air strikes. My next door neighbour is Nabih Berri, the Shia speaker of the House of Deputies, and a close ally of Hezbollah. There are only three families still living in our building of nine floors. All the others have gone up to the mountains for greater security. I don't propose to follow them."

Em forma de diário, aqui.

Siege of Lebanon

"In Beirut, yesterday, I felt that we are living a war. I was walking through the streets of Hamra, usually pretty quiet and empty at night, except for the restaurants and pubs. But last night, the streets were a little crowded with people taking walks. Most of them were the refugees who flee their homes. Since the forced migration is big in numbers (over 500,000 all over the country), and since many of the public schools, originally used as shelters, are packed and full to the maximum, people are being sheltered in very random locations, all over the city, underground parking structures, garages, small homes or old destroyed empty buildings, old closed cinemas, roofs, family friends."

Para seguir, diariamente, aqui.

The Prestige

Ora, aí está: o novo projecto de Christopher Nolan (Memento, Batman Returns) está já a piscar um olho a estreia no Outono. O filme chama-se The Prestige e não tem nada a ver com prestígio, mas sim com prestidigitação. Tem Christian Bale, Scarlett Johanson, Michael Caine, Hugh Jackman e o Sr. David Bowie (vénia, sff) numa história de mágicos na Inglaterra do século XIX. Ao que parece, Nolan volta a mergulhar na onda do realidade/não realidade, magia/não magia, memória/não memória. A coisa, a avaliar pelo trailer, promete. A ver, repetidamente, aqui.

Procura-se

Casa velha para obras, com potencial e capaz de agradar a jovem casal cheio de manias e ideias fora do comum, como partir paredes, pouca mobília e muitas janelas, inexistência de relações de vizinhança (preferencial). Dá-se prioridade a espaços em zonas históricas sem toxicodependentes, sem móveis, sem remodelações recentes, sem azulejos, sem estores, sem cozinha equipada, sem cachet (seja o que isso for), sem rodapés, sem tectos trabalhados, sem anexos, sem tanque da roupa, sem ser no Cacém, Queluz ou Cruz Quebrada ou Odivelas, sem inquilinos, sem proprietários idiotas que pensam que sabem mais do que o papa, sem mediadoras a tentar aumentar a comissão, sem escadas até ao quinto andar sem elevador, sem vista para o cemitério, sem restauro de arquitecto, sem janelas pequeninas em enormes paredes, sem poliban, sem roupeiros, sem armários em faia e balcões em granito, sem acabamentos em mármore, sem tecto falso com lâmpadas de halogénio embutidas, sem palhaçadas.

Eu não

Eu não sou uma mulher. Eu não quero ser uma mulher. Porque as mulheres têm algo que eu nunca podia ter, uma mistura de neurose com estética psicológica, melange muitíssimo mais interessante de ser observada de um ponto de vista masculino do que participada por dentro. Eu não gosto de lulas. Nada na lula é bom, se pensarmos bem nisso. Têm diversos cornos. A consistência é um misto de borracha com latex, criando uma sensação divergente de tudo na boca. O sabor concreto da lula tem que ser mascarado com outros ingredientes, seja um recheio, seja um molho de tomate, seja o óleo da frigideira. Estou perfeitamente convencido que, na prática, ninguém gosta mesmo de lulas. Pensam que gostam, mas na realidade gostam é do recheio, do molho de tomate ou do sabor a óleo. Eu não suporto o calor. Pragmaticamente, com o frio é sempre possível vestir mais uma camisola, umas calças por cima de umas calças, mais um cobertor, mais um aquecedor, umas meias por cima de umas meias. Com o calor tudo se pode despir e a sensação é exactamente a mesma, a humidade a trepar pela pele, a sensação de perda de compostura, a transpiração mental, a noção de incapacidade para controlar o ambiente e a situação. Estou perfeitamente convencido que, na prática, ninguém gosta mesmo do calor. Gostam da praia, da practicidade de andar com tecidos leves e menos peças de roupa, da ideia de uma vida menos intensa e mais desportiva. Assumem que o incómodo é menor. Associam o calor a maior nível e duração de luz, o que é humanamente compreensível enquanto factor decisivo. Eu não penso em festejar a vida. E não considero que este facto seja, em si, negativo. A questão da atitude perante a passagem do tempo e o “tempo de vida” de cada ser humano é pertinente. Eu não sou gótico. Mas não me peçam para festejar o envelhecimento, a decadência permanente do corpo, a compilação de memórias, como se uma velha biblioteca condenada ao fogo fosse, em si, suficiente para se festejar permanentemente, na sua existência. O existir não é, por si só, razão para festejo. O desenvolver do existir, esse sim, pode merecer formas agendadas de celebração. Mas isso é com cada um. Eu não tenho uma atitude negativa perante o tempo. Mas coloco-o no seu devido lugar, onde pertence: no das coisas que existem para além de mim. Eu não menosprezo o respeito que lhe devo, e se me quiser celebrar, será no interior de mim mesmo, por imposição orgânica mais do mental. Eu não compreendo a dificuldade de controlo sobre a linguagem. Tendo noção que tudo parte de um patamar neurológico, porém foge-me desde sempre a competência engasgada da esmagadora maioria das pessoas, sobretudo das que, linguísticamente competentes, não o são quando necessário na prática. Há algo no sistema de linguagem que sempre me pertenceu, a capacidade de verbalização estruturada e concreta das coisas que existem, ou das dimensões dos factos que podem existir no que digo. Eu não discuto com qualquer pessoa. Partindo do princípio de que nem todas as existências me merecem atenção, pois que seria um qualquer deus se assim o fosse, arrasto a minha perceptividade apenas quando o interlocutor se mantém consciente no seu lugar, seja competente na matéria em causa ou não. A maior parte não são conscientes de si. Eu não fujo de pessoas. Mas dificilmente as procuro no seu espaço humano. Erradamente, conjecturo à partida um formato para cada um, e apenas com base nesse plano decido a jogada de aproximação ou fuga. A maior parte das pessoas são pessoas, e, gregamente, eu gostava de me dar com os deuses.

Notícias da Barra: Blogzira

Lembram-se da Vitriolica? Pois é, a senhora fechou o tasco e abriu um novo ao lado. Chama-se Blogzira, tem o mesmo sentido de humor e ponta de caneta afiada, mas é mais gráfico e está mais arrumadinho. E é novo, vamos ver como evolui. Para já, os bonecos continuam a ser do melhor que conheço na blogosfera. Veja-se o último "usos para tias" ou a série "pointless food". Eu não costumo ter inveja de mulheres, mas esta merece.

The Squid and the Whale (****)

Noah Baumbach é cúmplice muito íntimo de Wes Anderson e isso cheira-se logo nos primeiros minutos de The Squid and the Whale ("A Lula e a Baleia", em versão tuga). Corria plena década de 80, andavam os Abba na berra na Europa e o festival da canção ainda era visto por alguém, quando em Brooklin um casal com dois filhos homens assume a separação. A coisa não é fácil para ninguém e já então, pasme-se, os EUA assumiam enorme taxa de divórcios, algo que só chegou em força a este cantinho à beira-mar plantado já perto do fim do milénio. Até aqui The Squid and the Whale podia ser um filme banal. Mas eis que entra o dedo de Baumbach, que deve sonhar com Wes Anderson todos os dias, e surge algo bem diferente. É um divórcio sim, mas entre dois aspirantes a intelectuais, com total verbalização emocional, em sentidos diferentes. É Brooklin sim, mas uma Brooklin romântica com árvores nas ruas e fins de tarde de aspecto ameno. São dois rapazes sim, mas claramente perdidos emocionalmente perante a avalanche de referências e comportamentos dos pais, e não desligados da realidade pela criação de uma outra. O sabor independente do filme mantém-se na boca de princípio ao fim, e todo o argumento se alicerça num fluxo de culpas e desculpas de todas as partes. Não há o bom e o mau da fita. Não há o provocador e a vítima. Não há o são e o doente. Existem dois seres de profunda bizarria que baralham com igual profundidade a cabeça já formatada de dois jovens em puberdade aberta ao mundo. Ao jantar diz-se que livros de Dickens são maiores ou menores. Escondem-se livros debaixo de camas com a real convicção de posse. Fala-se abertamente de sexo como um beatnik, para no minuto seguinte não se saber responder a uma agressão por silêncio. Baumbach tem ainda outros primores, a começar na capacidade de recreação de uma época sem referências sociais ou culturais explícitas e a acabar no espantoso desempenho de Jeff Daniels, sempre tido como actor menor e protagonista de alguns dos piores filmes dos últimos 15 anos. Muito mais do que um filme sobre o Divórcio, é um filme sobre o divórcio de um casal de escritores nova-iorquinos nos anos 80, com as suas manias, vícios, dificuldades e sorrisos, o que tem claramente muito mais interesse que estuchas europeias sobre a noção de família e casais frios onde o amor "desapareceu". Em The Squid and the Whale não interessa o porquê psico-somático da situação nem a desagregação da família clássica. Interessa quem fica com o gato às terças, quintas e sábados. Porque o gato é família.

Lisboetas (****)

Ora, o único filme que eu tinha visto de Sérgio Tréfaut era Outro País: Memórias, Sonhos, Ilusões... Portugal 1974/1975, que nunca teve estreia em sala, infelizmente. Vi-o na exposição de fotógrafos estrangeiros sobre Portugal patente no CCB em 2005. Numa sala pequena, numa televisão de igual dimensão, o documentário debruçava-se no imediato pós-25 de Abril de forma brilhante. Redescobri agora a mesma visão curiosa e esteta no Lisboetas em exibição (ainda?) no Nimas, documentário aberto sobre o novo fluxo de emigrantes que assola a sociedade portuguesa a alguns anos a esta parte. Primeiro: Tréfaut filma de forma brilhante. Não se rendendo à ideia de um documentário como uma peça fílmica menor, do ponto de vista do estilo, mas tendo noção da necessidade de uma certa crueza como forma de legitimação, o realizador tem a atitude salutar de procurar a estética dentro do plano, ou o plano estético dentro da realidade. Mais do que ser feliz com imagens, Tréfaut procura a felicidade com a lente. Segundo: não há documentário que resulte sem ser feliz com quem encontra. E os novos lisboetas que Tréfaut encontra são de enorme felicidade, nos seus rostos, nas suas dificuldades, nos seus olhares perdidos e um segundo depois encontrados, nos ângulos das faces com o Tejo em fundo, nos silêncios baseados em fricções linguísticas internas quando a mente fala em ucraniano, brasileiro, romeno, moldavo, marroquino, estrangeiro. O resultado é um documento cinematográfico que ao mesmo tempo apresenta e representa uma nova realidade num país específico, mas apela a todos os emigrantes do ponto de vista simbólico. Nunca se esquecendo que é cinema.

Barcelona: em breve também as fotos

Dia 4: Barcelona

[5 de Julho] Quatro da tarde e a Rambla alonga-se a norte como um boulevard. As lojas admitem clientes de passagem de sorriso franco. Entro na Colmado e as latas antigas de atum sublinham o tempo. Ao balcão homens com mais de meio século, contemporâneos da casa, dão respeito ao ambiente. Pergunto por Priorat e alguém me indica uma prateleira ao fundo, passando a balança, junto à montra do fundo. Demoro-me. Leio rótulos, analiso castas, procuro o conforto visual com a expectativa de um sabor a uvas que não me faça pensar no Douro. O empregado dá-me espaço, ruminando silenciosamente pelo canto do olho. Tomo uma decisão e um leve sorriso acolhe-me no seio catalão. Mais abaixo, uma loja de chocolates obriga-me a entrar por uma caixa de cerâmica desenhada por Gaudi directamente da cripta. O castelhano sai fluente, dentro do erro comum. Por baixo dos seus perto de sessenta anos, a senhora baixa os óculos de corrente, antes amparados no nariz, e reconhece o interesse pelos produtos. Refiro que sou de Lisboa quando me pergunta se é a minha primeira vez na cidade. Elogio a lindíssima loja com o olhar perdido nas avelãs cobertas, ao fundo. Indica-me que Mauri, assim se chama o estabelecimento, é a irmã mais nova de Mauri, do outro lado da rua. "Esta é nova, tem cinquenta anos. Aquela tem mais de cem." A novidade só vende veludo gustativo, a outra é uma das pastelarias mais finas da Catalunha. Oferece-me um chocolate a provar antes que me decida, com a delicadeza de uma princesa velha. No final, oferece-me uma pequena caixa com talvez dez dos tradicionais Mauri, "para o caminho". Saio e atravesso a rua, como que para cumprir uma promessa. No balcão, pequenas bolachas cobertas por amendoas fazem primeiro plano a três senhoras maiores, de idade. Perguntam-me "qual o pastis" e recrudescem ao som do castelhano que tento articular. A escolha é colocada numa forma de cartão, sem tecto, por forma a formar uma pirâmide, encimada por uma fina folha de papel vegetal, para não ferir a face visível da arte e deixar a maçã com a imagem que merece. Não me agradecem a visita. Era minha obrigação estar ali. Elas sabem-no.

Dia 3: Barcelona

[4 de Julho] Os quarteirões sucedem-se. Do Passeig de Gracia percorro o Carrer de Mallorca refugiado na sombra da margem esquerda, enquanto o calor se abate sobre o fim de tarde. Os cruzamentos dão lugar a pequenas praças, com estacionamento aos cantos. Os edifícios cheiram a Paris, entradas com escadas douradas, portas trabalhadas sobre a data que atesta a passagem do tempo. O olhar vertical denuncia-me. Dois homens de estomâgo pronunciado reparam levemente na minha passagem, sem se deixarem perturbar. Ninguém nas janelas. Uma mulher de ar inflexível sai à rua e dirige-se decidida no mesmo sentido que eu, com diferentes intenções. Após uma esquina, árvores ladeiam a praça e apenas os picos se mostram, numa surpresa redundante. Velhos abandonam-se nos bancos, como em qualquer parte, trocando palavras com intervalos de segundos. Vencendo os caminhos naturalmente serpenteados do jardim, as três torres da fachada da Paixão convivem com figuras angulares. A Sagrada Família junta-se na quadratura do círculo, aqui num beijo de Judas, ali na ternura de Maria, além numa crucificação privada de lágrimas. Todas as figuras desafiam abertamente a estética cristã e revelam-me, pela primeira vez, onde estava o génio de Gaudi quanto o eléctrico o privou de oxigénio. O baldaquino, anormalmente dourado, espera pelo seu altar. Entro, e a ideia de uma catedral inacabada ganha nova forma. Os pilares laterais erguem-se sem destino, enquanto as abóbodas são janelas para o céu, sem intermediário de pedra. Ao centro, milhares de andaimes aninham-se para preencher o espaço, instalação pós-moderna ou a justificação de surrealismo como um murro no estomâgo. O percurso está definido, percorro o espaço pelo perímetro interno do projecto. No lado oposto, a fachada da Natividade diz ao Papa que durma descansado, pois que a Fé, Esperança e Caridade têm a sua forma como a história dita, guardando o espírito católico dos catalães. O espaço religioso com a maior prova de que a ausência é a melhor construção simbólica da completude.

Dia 2: Barcelona

[3 de Julho] Na Plaça de Angels, o cheiro a marijuana é abundante. Dezenas de jovens circulam em pequenas distâncias, praticando manobras mentais em skates reais, que se apoiam em muros e pedras que surgem à medida da necessidade. Grupos unidos pela despreocupação aguardam sentados por qualquer nova ideia que os mova. Estão bem com a vida. Atrás, o MACBA assiste impávido, como se adoptasse como seus os filhos da cidade. O edifício alarga-se, mais do que se aprofunda. A enorme frontaria em vidro esconde rampas cruzadas totalmente de branco, com um enorme fosso a separar caminho de arte. Uma mulher jovem, de saia rodada, permanece atenta no seu interesse e não olha para trás. Duas outras, de jeans, entretêm-se a tirar fotografias que atestam a visita a um qualquer edifício, que se perderá perante o desejo de memória. Uma oriental passeia um interesse ocidental pelas salas. Ao fundo, um filme de Sokurov alonga-se para plateia inexistente, como se o inverno siberiano e o relato da morte da mãe de Mozart não tivesse lugar ali. Sento-me e o tecto cobre-se de uma forma rectangular, sob a penumbra quebrada dos passos do segurança que activa a circulação agitando as chaves no bolso e olhando desconfiado as fotografias que habitam as paredes. Deito-me e o mesmo tecto é já um chão, em que os passos tem uma voz russa e a consciência de apenas estar me atinge como um grão de pó. A mãe de Mozart morre. O segurança afasta-se.

Dia 1: Barcelona

[2 de Julho] No avião, ligo o laptop. Coloco os headphones e Daniel Blaufuks conta-me a história dos judeus que, fugidos à guerra, decidiram ficar em Portugal. Poucos. A voz do fotógrafo não vai mais além, pois que se desce. Da janela, de súbito, uma massa de água anuncia-se para depois desaparecer. Pouco passa das quatro e meia da tarde e o taxista perguntará daí a minutos por Cristiano Ronaldo. Como se os temas fossem universais dentro de um taxi. O calor anuncia um fim de tarde sonhado em filmes e brochuras por estrangeiros de escaldão orgulhoso. Plaça de Catalunya e a multidão nasce onde começa a Rambla, disforme, poliglota, de camisola de alças e um leve torpor sobre a pele, que não chega a suor. Um homem de ar concentrado na realidade empunha um enorme letreiro sobre a fúria de Deus. Mais abaixo, dois diabos pintados riem à gargalhada de forma natural, como se a personagem só tivesse uma forma de mostrar os dentes e não precisasse de motivo. A Plaça Reial abandonada a si mesma. Uma velha sentada num banco espera pelo tempo fresco. Empregados solícitos agitam-se na entrada de restaurantes olhando o arco por onde hão-de passar clientes ávidos, leitores de guias que falam num jantar tardio. Subo o Carrer de Férran e uma música com cheiro a autonomia desce em sentido contrário. Na Plaça de S. Jaume dezenas de idosos dão as mãos em grandes rodas e dançam uma enorme valsa colectiva, lenta, torpe, orgulhosa, como se não houvesse outro sentido para a vida para além do sangue que lhes corre nas veias. Contorno a catedral por trás para descobrir uma fachada coberta, em face lifting. À porta um segurança de aspecto sul-americano impede a passagem a jovens com os ombros descobertos, fechando os olhos a ombros de maior idade com iguais alças veranis. O pecado tem idade, ou a tentação é jovem. Em frente, uma velha de cara fechada aguarda pelo passar do tempo do alto da sua cadeira de rodas e do seu aprumo, maquilhagem, brincos de pérola, cabelo arranjado em suaves canudos para senhoras de respeito, rugas de orgulho catalão. Atravessando a rua a multidão dissolve-se na ditadura dos percursos pré-determinados e as ruas ganham ar de domingo urbano. No mercado de Santa Caterina, duas mulheres de sensualidade pacífica e terrível conversam ao balcão do restaurante, enquanto cinco empregados circulam com guardanapos na mão e olhos no relógio pendente, ao fundo. Duas crianças passam de bicicleta. As duas mulheres sorriem levemente, com as palavras nos cantos dos lábios, de forma sexualmente transmissível. Irão para casa, quando o domingo acabar ou o calor deixar de fazer sentido.

Ellipse

Citando descaradamente o Le Cadavre Exquis:

"Cerca de 78 obras de Julião Sarmento, Cindy Sherman, Douglas Gordon, Richard Prince ouThomas Hirschhorn na Ellipse Foundation Contemporary Art Collection, exposição inaugural do espaço da Ellipse em Cascais, abrem o ‘apetite’ para uma actividade que se pretende inovadora no panorama cultural português. Infelizmente, peças de Pierre Huyghe, Shirin Neshat e Matthew Barney não chegaram a tempo para serem incluídas nesta primeira mostra".