"Desmarcar depilação"

Colocou-se este estimado autor (por alguns) na tarefa de organizar e indexar em base de dados os breves volumes existentes cá em casa. A mudança havia-os deixado na onda da "boa vizinhança", ou seja, no acaso. Lobo Antunes ao lado de Rushdie, Cardoso Pires paredes meias com Kafka, Borges a segurar Bruce Chatwin. É preciso arrumar a casa, e sobretudo saber o que existe, uma vez que já se chegou ao ponto da compra de exemplar em desconhecimento da sua existência prévia. Duas cópias, portanto, e um coçar de cabeça à banda desenhada. A tarefa implica, então, desalojar todos os volumes do seu lugar actual, inserir os detalhes na base de dados, limpar estantes com a aranha Beatriz a passear (assim rompendo a sua mais recente armadilha), e depois casar livros por estilos e autores, queimando as feridas da situação anterior, alcólicos e abstémios agora separados por existencialistas, para quem vinho pouco fala. No meio de tudo isto, e no meio de uma edição de Sophia lida na infância, uma folha de filofax para indexação de cartões de crédito, coisa antiga, cuidadosamente dobrada na longitudinal. Abro, e a surpresa: "desmarcar depilação". Assim, a frio, sem mais, a lápis, também na longitudinal, em caixa alta, sem pontuação. "Desmarcar depilação". Como que à sombra da morte (dizem) revejo a minha existência, em ritmo acelerado, passando frames. Nada. Olho-me ao espelho. No meio de Sophia e dos seus Contos Exemplares em edição Figueirinhas gasta pela gordura de mãos pequenas e pela secura do tempo, um recado, curto, sem temperatura ou hesitação, como uma acção que se escreve e que quando escrita existe já por si, sem esperar pelo real que a concretize. Revendo, agora em camera lenta, tudo o que é passível de rever, não encontro nada nem ninguém nem coisa alguma intimamente ligada a tal expressão. Nenhuma memória. Nenhum vestígio. Nenhuma recordação ou potencia de. Olho-me ao espelho e nada me vem, para além da imagem de mim mesmo.

1 comments:

  Anónimo

12:39 da manhã

só para experimentar aqui uma coisa