Em homenagem assumida, o Motelx trouxe o Zé do Caixão para Lisboa, não só através dos três filmes que compõem a trilogia, dois antigos e o último actual, mas também o próprio, encarnado pelo brasileiro José Mojica Marins. Ponto alto do festival foi a sessão de Encarnação do Demônio, que traz o personagem de novo aos ecrãs quarenta anos depois da última aparição. E se o Zé do Caixão parou no tempo, o seu cinema nem tanto, o que se saúda. A história recupera o coveiro maldito da prisão, quarenta anos mais velho e com uma enorme vontade de criar herança, nomeadamente através do "filho perfeito". Assim, Zé vai procurar a mulher superior em quem depositar a criança dos infernos, e no processo trucida, tortura e mata tudo o que aparecer. Encarnação do Demônio não mete medo a ninguém. E isto poderá ser, possivelmente, a pior coisa que se pode dizer de um filme de terror. Mas ainda assim é um excelente filme, por uma variedade de razões. Primeiro, porque se Zé aparece quase como há quarenta anos, ainda que mais barrigudo e envelhecido, não recusa a realidade que lhe aparece nem tenta escondê-la. Por exemplo, a sua cripta fica por baixo, imagine-se... de uma favela. E Zé choca-se com os miúdos da rua a snifar cola. Quarenta anos depois, Mojica Marins recupera o personagem mas enquadra-o na actualidade, mesmo que num filme de terror que não almeja, felizmente, a qualquer verosimilhança. Segundo, porque recupera, de forma feliz e inteligente, imagens dos dois filmes que lhe deram nome. Em jeito de recordação, e como forma de ligação aos factos de agora, o Zé do Caixão tem flashbacks que mais não são do que imagens dos anos sessenta, negras mas estruturantes, sobretudo para um público que, então, não existia e agora olha para o mestre com um misto de admiração e desconhecimento. Aqui o brasileiro verdadeiramente recupera o personagem do esquecimento e não faz fugas para a frente. Terceiro, é precisamente esta memória que está na base dos seus medos e pesadelos, a perseguição de vítimas antigas que agora lhe surgem tremendamente ameaçadoras. Décadas depois, a fragilidade do abominável Zé perante o passado que o confronta através de fantasmas confere-lhe densidade. Não o humaniza, mas antes revela algo mais do que a faceta de exterminador vísceral, e esse é um factor que, agora sim, é necessário no cinema de 2008 mais do que no da década de sessenta. Por estas três condicionantes, Encarnação do Demônio já seria um filme ganho. A questão é que o resto também corre bem. O estilo mais declamado que dito do coveiro é impagável, o humor negro é frontal, o gore é abundante mas não cede a palhaçadas, a filosofia barata é genuína e apela ao terror clássico da morte como antítese da vida. Não metendo medo a ninguém, Encarnação do Demônio é um filme bem pensado e estruturado, com um traço de autor inconfundível e que olha o género com um misto de fascínio e adaptação pessoal. Bem-vindo ao mundos dos vivos, Zé do Caixão.
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