O óbvio: Pina Bausch é uma criadora incontornável da Cultura do século XX. A alemã mudou por completo a dança contemporânea e o campo da representação ao apresentar uma visão fundida das duas. Adicionalmente, Pina mudou o próprio campo da Cultura, da mesma forma que Fellini, ou Cartier-Bresson, ou Picasso. São personagens charneira da produção cultural de um século que foi a época de todas as rupturas. Dos citados, apenas Pina vive. Os outros jazem cristalizados na memória humana (sobretudo da Europa), Pina mantém a frescura de uma visão particular da vida, que assenta a expressão e comunicação dos seres humanos nos movimentos do corpo e nas imagens que estes podem gerar. De tudo isto se obtém a necessidade de não deixar passar um festival sobre Pina Bausch, em Lisboa. Pina está em Lisboa (e devia ser para nós uma comoção respirar o mesmo ar que ela). O Animatógrafo assegurou, há meses, a presença nos dois espectáculos que não tivemos ainda o privilégio de ver: Nefés e Café Muller. Sobre o último teremos oportunidade de falar depois de sexta-feira, se conseguirmos, tal será a emoção. A pista: são minutos que mudam vidas, e a minha mudou apenas com uma gravação do mesmo. Como nunca esperei ver ao vivo, vou perder-me a olhar para a figura frágil de Pina. Sobre o que não veremos desta feita, é Masurca Fogo, extraordinária visão sobre Lisboa. A criadora passou cá uns tempos a olhar para a nossa cara e criou um espectáculo tão verdadeiro como crítico, que nos atira a "portugalidade" à cara. Ontem, na ressaca do Indie, vimos Nefés, que parte do mesmo princípio acima descrito, mas tendo Istambul por base. Data de 2002 e tem por base a estadia de Pina na Turquia, sobre a mesma declaração de interesses. O resultado é verrinoso. Nefés é assumidamente um trabalho de Pina Bausch: criativamente elevado, visualmente imaculado, com coreografias trabalhadas sobre pedaços da cultura do país e cidade mas que as extravasam para algo muito maior, que envolve o espectador num espanto. A sala do CCB, que a espaços petrificou, viu ontem Pina mostrar também toda a sua veia crítica, homens que tanto bajulam mulheres como as dominam, a ancestralidade no centro da existência quotidiana, uma cidade tanto tradicional como contemporânea, tanto urbana como perdida em visões pastorais do existir. Pelo meio os bailarinos falam com o público (em português), conversam entre si, repetem sequências por serem seduzidos, dançam sob uma torrente de água que surpreendentemente invade o palco vinda de um céu imaginário, fogem do trânsito caótico projectado numa cortina, trabalham o ar ao som de jazz ou música tradicional turca. O olhar de Pina é venenoso e materno, como que afirmando "és assim, é assim que te vejo, és, em algum lugar, em algum momento, assim". E no fim aplaude-se porque ela é assim.
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