Primeiro que tudo, breves considerações preparatórias. Não sou um "homem da dança". Isto é, o meu conhecimento do meio, dos coreógrafos, dos artistas, dos métodos, da história, é diminuto. Mais: não era particularmente sensível à questão. Sobretudo porque sempre me fez muita confusão enquanto forma de expressão, quer plástica, quer artística, quer comunicacional. Confusão como? Confusão no sentido da total subjectividade (e estou aqui a falar de dança contemporânea, nao de ballet clássico). Ou seja, porque é que mexer o corpo como um epiléptico significa qualquer coisa? Porque escrever, ou representar, nós compreendemos, o tipo tá ali parado, ok, faz cara de triste, o tipo escreveu que a mãe morreu, ok, percebe-se. Agora o tipo mexeu o braço e depois caiu. E? Pois. Pois é. Pois era. Em termos globais, parece-me que é tudo um problema de media. Palavras, nós percebemos, foram feitas para comunicar ideias. Imagens, ok, é para comunicar, mesmo que seja para comunicarem-se a si próprias. Corpo? Pois, corpo, parece que é para andar, para existirmos. E portanto há uma resistência enorme ao corpo como media. Caramba, se há uma resistência aos livros e lemos pouco, ao corpo então... Pois era. Ora, comecei a interessar-me pela área e a tentar quebrar resistências quando se atravessou no meu caminho (imagem fatídica romântica esta) aquela que hoje é a jovem que me atura as manias, vai para uns anos. A jovem, de sorriso lindissimo, tinha feito dança e tinha uma curiosidade atroz pela mesma. Ainda hoje, felizmente. Vai daí, o meu cérebro ligou umas quantas sinapses e chegou a uma conclusão: ou a jovem é maluca e aquilo são uma cambada de malucos a esfregarem-se no chão, ou eu não percebo nada disto. E como a probabilidade da segunda hipótese era muitissimo superior, fui tentando quebrar barreiras a pouco e pouco. Pois. Hoje, não sendo um "homem da dança", já consigo compreender o corpo como media. Considero mesmo, aliás, que é o media mais complexo e interessante com que se pode trabalhar hoje na área de produção artística. Posto isto, o essencial. Vi "Masurca Fogo" no CCB, nas galerias de pé, sozinho, enquanto estudante universitário, em 1998. O nome Pina Bausch não era mais do que uma referência vaga, um fantasma, uma associação. E "Masurca Fogo" era a tradução de muita coisa: da visão de alguém estrangeiro sobre nós, da dança e das suas possibilidades actuais, da interacção da mesma com o teatro, da visão de Pina sobre o mundo. Lembro-me de me doerem terrivelmente os joelhos e de ter um sorriso idiota na cara, de quem compreende que está perante um objecto artístico e cultural único. Lembro-me da figura giacometiana de Pina no fim. Por tudo isto, cada vez que se fala de Pina Bausch em Portugal, a minha glandula salivar que ainda funciona (a outra ficou irreparavelmente entupida no ano da graça de 1980) lembra-se de um senhor chamado Pavlov e vai disto. Desta feita, Pina não facilitou e trouxe dois espectáculos a Lisboa. Nelken (Cravos) data de 1982. O palco foi invadido por flores cuidadosamente espetadas e uma figura de pernas maiores que tudo surge semi despida com um acordeão que nunca tocará. Um homem de fato e gravata centra-se no palco e traduz "The man I love", de Gershwin, em linguagem gestual. Depois há bailarinos com vestidinhos de menina a fugir pelo palco. Há alguém que insistentemente pára a acção para pedir um passaporte e humilha quem o tem antes de o devolver. Há um homem que mostra posições de ballet clássico e pergunta: "é isto que querem? eu dou-vos, é isto?". Há cães que ladram quando surge um determinado som, rodeando corpos que ora são corpos, ora são actores a jogar como crianças. Nelken (Cravos) é pura Pina Bausch: os problemas de comunicação estão lá, a conjugação de teatro com dança está lá, a reflexão sobre os caminhos da própria dança e as suas possibilidades está lá, a tragicomédia do absurdo está lá, a utilização de outros media está lá, a crítica política e social está lá. Nelken (Cravos está ligeiramente datado, sim, em 1982 ainda havia muro de Berlim, controlo de passaportes, contestação às novas formas de dança emergentes, dúvidas sobre os caminhos a seguir. Nelken (Cravos) é o embrião do que viria a ser Masurca Fogo 16 anos depois. Não vi Ten Chi, não se pode ganhar tudo. Mas parece que quase todas as revoluções se fazem com cravos.
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